ENSAIO

A música inesperada de Floriano Martins

Imagem: Divulgação.

Thomaz Albornoz Neves
Sant’ Ana do Livramento – RS

O poeta Floriano Martins (1957) acaba de nos surpreender com a gravação de três álbuns musicais. Um inusitado trabalho de parceria com a Inteligência Artificial, onde ele escreve as letras das canções e, a partir delas, utilizando aplicativos com que aprendeu a lidar, programa as vozes, instrumentos, ritmos, timbres, de um modo muito peculiar. Os três álbuns possuem características próprias, a começar pelo idioma, cada um deles por completo em uma língua: inglês, espanhol e português, estabelecendo uma ponte mágica com a tradição musical dos países correspondentes a essas línguas. O primeiro deles, A origem dos desastres (ARC Edições, 2025) – The origin of the disasters no original, surpreende por duas razões: ser uma reunião de 26 canções escritas originalmente em inglês e apresentar esta nova faceta de um poeta que já tem enveredado por inúmeras áreas, dentre elas o teatro e as artes plásticas. Também na música podemos citar suas parcerias com Mário Montaut, Ana Lee e Cássio Gava, canções presentes nos álbuns desses três compositores, cujas letras estão assinadas por Martins. O que temos agora é algo bem distinto, quando o poeta assume os controles de uma mesa de programação de vozes e instrumentos e, com uma pioneira parceria declarada com a Inteligência Artificial, cria um universo musical muito singular que de algum modo presta sua homenagem ao cancioneiro popular de língua inglesa. É também curioso que Floriano Martins, autor de todas as letras, tenha criado esse ambiente fascinante, que o próprio encarte do álbum – integralmente preparado por ele – situe nos seguintes termos: Este é um encontro de quatro músicos imaginários que ocorreu unicamente para a gravação deste álbum. Viajantes incansáveis, eles se encontraram em vários estúdios e palcos ao redor do mundo. Inicialmente, formaram um quarteto improvisado que começou tocando em bares que o acaso sugeria. Aos poucos, foram coletando fragmentos dessas jam sessions, guardados como um código secreto, um segredo que não revelariam a ninguém. As letras surgiram nos hotéis onde cada um se hospedou. Um dia, eles se reuniram para compartilhar o que cada um havia conquistado. Boa parte das letras revelava uma interpretação das condições precárias do planeta e da forma como a humanidade estava perdendo seu brilho. Eles então ajustaram detalhes, harmonias, timbres, andamentos e efeitos vocais. Nesses momentos, também compuseram outras músicas, totalizando 26 peças musicais surpreendentes. O título veio de uma delas, A Origem dos Desastres, escrita pelos quatro com base neste verso que definiu o espírito do álbum: Nunca há uma perspectiva de grandeza humana / quando temos diante de nós as linhas cegas da terra. Nascia o mais secreto de todos os códigos: uma partitura de maravilhas nas linhas cegas da Terra. Este relato, tão fantasioso quanto o próprio conceito de autoria que define esta nova experiência musical, evidente que nos lembra várias afirmações do argentino Jorge Luís Borges de que a autoria não é um dado tão interessante quanto o julgamos. Se queremos nos sentar para ouvir este álbum, este é o momento. Ele existe, é real, possui uma densidade estética, uma unidade surpreendente, uma poética ousada, como raras vezes encontramos hoje na música popular. Assim como os demais, ele pode ser encontrado em todos os streamings, bastando colocar o título do álbum ou o nome do autor. Também o encarte, em separado, pode ser acessado por aqui: www.calameo.com/read/007763171673d00a9af33.

Pode-se fazer a audição do álbum através do Spotify:

No segundo álbum, é a vez de Floriano Martins visitar o cancioneiro de língua espanhola. Seu título é De volta à terra (ARC Edições, 2025) – De vuelta a la tierra, no original –, desta vez com canções em espanhol e uma novidade, interpretado por uma voz feminina. O novo trabalho reúne 20 canções cujo ambiente conceitual está centrado nas relações amorosas com acentos que tocam em aspectos filosóficos, mitológicos e mundanos. Uma vez mais, Martins dá provas de um domínio das técnicas de programação de vozes e instrumentos, e sua parceria inusitada com a Inteligência Artificial. A aventura lírica nasce das letras cuja voltagem poética nos permite uma maior aproximação da multidão de truques estéticos que caracterizam a obra de Martins. A canção título, por exemplo, destaca essa fascinante visão de mundo: ¿cuántas veces soñé con el mineral grabado / en tu piel lunar, en tus altos visitantes / llevo en mi ser la explosión de tus días / y me hago añicos en tu historia oculta / perdemos las horas de un primer encuentro / bajo el fuego de las tribus y las antorchas de oro / quizás levitar sea la última evidencia / de impedir que las noches revelen / dónde fuimos, en la tierra profunda / cuántas veces el mar nos trajo de vuelta / cuántas veces el hombre olvidó su origen. A surpresa constante em todo o trabalho se amplia diante do inusitado que é a utilização da Inteligência Artificial como apoio à criação artística. Evidente que se trata de programação tecnológica, a máquina sob o domínio do homem, e nisto radica mais uma das características do imenso talento criador de Floriano Martins. Em entrevista que deu ao compositor Graccho Braz Peixoto, ele nos traz observações curiosas acerca dessa perspectiva de se utilizar da Inteligência Artificial em um projeto como este, e nos diz:

“Lembro uma frase que o Hermeto Pascoal costuma dizer: tudo é som. Se a música pode ser feita, como ele defende, de qualquer coisa, ela também pode fluir da relação entre homem e máquina. Se em um ambiente quântico, tudo é vibração, a Inteligência Artificial pode ser um personagem a mais nesse conjunto de vibrações da própria existência humana. Não vejo nenhum dilema moral na utilização da máquina como um parceiro na criação. O que não pode haver é a entrega total da arte ao domínio da máquina ou a afirmação de que a totalidade da criação cabe ao homem, mesmo que a própria máquina seja uma criação humana. Também lembro o Lautréamont com sua máxima de que a poesia pode ser feita por todos. Claro, uma boutade, que até hoje gera certa polêmica. Mas a verdade é que o campo da autoria é imenso, e pode ser tratado de forma responsável, onde o risco único que vejo, inevitável, é a presença da desonestidade intelectual. Para mim, a presença da IA como parceira é legítima e redimensiona inclusive o espectro de difusão da música em si.”

Graccho Braz Peixoto – autor de uma das canções mais populares do cancioneiro brasileiro, Noturno, composta com seu irmão, Caio Sílvio Braz, que ficou mais conhecida como Coração alado, parte de seu refrão e título de uma novela homônima da qual era canção-tema, e se popularizou através de uma preciosa gravação de Raimundo Fagner – indagou a Martins, um velho amigo de adolescência, indaga das pretensões do poeta sobre a continuidade da criação na área musical, e ele responde de modo bastante revelador: “Não creio que haja nada além da criação. O mundo é o mundo que criamos. Recentemente eu utilizei sugestões de imagens dadas à IA para, a partir delas, criar um desenho final que resultou em uma série de ilustrações que fiz para a edição italiana de um livro de contos de Armando Romero. Também acabo de lançar um vídeo, Fábula de la risa, onde conto com a presença da poeta e atriz argentina Candelaria Rojas Paz, onde mesclo poema, colagem, fotografia, animação, música, arregimentando as possibilidades de interferência da IA no projeto final. Mesmo a destruição é uma forma de construção. Estamos sempre nascendo e renascendo. Não contabilizamos a morte porque somos mais fortes do que ela? Não sei. Os desastres são suscetíveis tanto de correção como de recorrência. A mim interessa sempre o renascimento, toda forma de aprender com as perdas, toda a perspectiva de uma eternidade que não pode durar mais do que o instante. O homem só não vai além de si mesmo quando está esvaziado dessa multiplicidade de anjos de que fala Keith Jarrett com toda a força de sua música.”

O encarte deste segundo álbum pode ser acessado neste link: www.calameo.com/read/007763171162c248e2e13

Para ouvir as músicas:

Há poucos dias o poeta lançou também O oceano mais distante, desta vez com 30 canções em português, trazendo a voz de Renata Severo, letras do poetas, assim como a programação de vozes e instrumentos. Para este álbum, Floriano utilizou o Free AI Music Generator, valioso para as modulações e detalhes de arranjos que pretendia. O álbum é uma viagem pelo universo lírico do cancioneiro popular, e traz duas particularidades: a canção em espanhol, Los miedos, onde ouvimos os versos: si acaso otro cuerpo / nos visitará, quién sabe / cuántas noches cambian / de forma hasta que el día / revela un error; e uma preciosa homenagem ao músico universal Hermeto Pascoal, composta minutos após a sua morte. A canção é uma espécie de autorretrato em que o próprio Hermeto declara: eu nunca soube amar de outro jeito / a vida dizendo toque mais um pouquinho / eu fui seu bebê a todo momento / por isso não sei parar de nascer. Este terceiro álbum de Floriano Martins confirma sua consistente incursão pelo ambiente musical, assim como antes já o fizera no teatro, no romance e no vídeo. Trata-se de um poeta pleno que sabe como poucos alcançar as notas mais ousadas em todas as formas da linguagem. E um dos pontos altos de sua ousadia é a criação de uma pianista e cantora, Renata Severo, que interpreta todas as canções. Nascida em 1993, a brasileira Renata Severo cresceu na região do mar Báltico, estudando música em escolas escandinavas, principalmente na Dinamarca, onde acabou fixando residência, ao montar uma casa-estúdio em Zelândia. Dedicou-se ao estudo de piano e considera de grande fortuna haver conhecido a pianista Anne Øland, grande intérprete de Beethoven, que não chegou a lhe dar aulas, mas com a qual teve inúmeros encontros práticos onde aprendeu com suas sugestões inesgotáveis. Renata criou um primeiro grupo de jazz, instrumental, apenas experimental e sem registro, enquanto estudava canto e arranjo. Viajou por um período à América Central, tendo conhecido alguns músicos panamenhos. Seu encontro com o poeta brasileiro Floriano Martins data desse momento, no ano 2000, quando este visitava a capital panamenha. Anos depois eles se reviram em um daqueles bares à beira-rio em Lisboa, onde músicos se reuniam em torno de improvisações. Desde então apenas se corresponderam trocando ideias sobre músicas e viagens. Curiosa por idiomas, Renata incluiu junto às línguas escandinavas o inglês, o português e o espanhol. Um dia enviou para o brasileiro uma fita com algumas melodias, indagando se ele tinha interesse em escrever letras para elas. A partir desse momento deram início a uma grande parceria que desemboca agora na criação deste álbum.

Vejamos um diálogo entre Martins e Severo, reproduzido no encarte deste álbum:

FLORIANO MARTINS | Há algo em tua voz que me recorda a estadunidense Halie Loren. Conheces seu trabalho?

RENATA SEVERO | Sim, nós somos de uma mesma geração espalhada pelo mundo que recebeu muita influência do jazz. Talvez essa mescla da música erudita com uma canção mais intuitiva, a improvisação do jazz, tenha dado ao nosso piano, ela também é muito boa pianista, uma espécie de doçura swingada. Há uma canção dela, Wild birds, que eu gostaria de ter composto. And the wild birds belong to no one. / And the tide turns forever, finding us all in the end. / Are we the only ones who don’t understand / we’re but shadows upon an eternal land? Acho essa passagem tão linda, forte. Todo este seu Álbum, From the wild sky, é de uma beleza rara. Porém eu me sinto mais próxima de uma outra compositora dos Estados Unidos, também de minha geração, que é a Lizz Wright, pois ela também tem uma forte identificação com o blues. Há nela certa melancolia que acho que trago também em minhas canções mais amorosas. Algo entre nós duas eu penso que recorda os versos desse poeta de El Salvador que você traduziu e do qual falamos outro dia: Não com o amor e suas queixas / eu terei que lidar, mas com a dor… Francisco Gavidia, isto é tão forte. Nós temos que agradecer a tantos poetas, tanta riqueza. Para mim, foi uma grande dádiva haver conhecido você.

FM | A rigor o mundo das afinidades parece inesgotável, a própria tecnologia hoje nos permite conhecer certas fontes de distintos lugares do planeta que antes seria impensável. Gostarias de mencionar mais dessas tuas afinidades?

RS | A Susan Wong, chinesa, tem uma bela voz, é mais velha do que eu, mas ela não é música ou compositora. No entanto, é uma bela intérprete e sempre escuto seus discos. Também sou atenta aos arranjos, por exemplo, de um disco como Someone like you. A islandesa Anna Gréta é um mundo de surpresas, uma vez nos encontramos em um desses concertos de que muitos participam, em Copenhague, ela é uma miúda tão doce. Eu queria ter aquele seu piano, é uma viagem fabulosa. Mas independentes de serem compositoras, eu gosto muito de algumas músicas fabulosas, como a harpista ucraniana Alina Bzhezhinska, a pianista sul-coreana Youn Sun Nah e a voz magnífica de minha querida Torun Eriksen, norueguesa. Ah eu também ouço música feita por homens, rs, rs… Mas gosto de citar as mulheres porque estamos em um momento em que são muitas as músicas, cantoras, compositoras, de grande qualidade, algumas bem inovadoras, que vem surgindo por todas as partes.

FM | Muitas mulheres de sua geração flertaram com a bossa nova, mas percebo que tu, mesmo sendo brasileira, não tem muita proximidade. Algum motivo?

RS | Motivo algum. É uma questão apenas de praia. A bossa nova tem um charme harmônico e por vezes me aproximo dela em meus exercícios. Porém na hora de compor eu tenho uma ligação com blues, jazz e a música instrumental caribenha, que aparece na minha música um pouco disfarçada, com uma reduzida intensidade rítmica.

FM | E os músicos, que tocam contigo, como eles foram chegando em tua vida?

RS | A surpresa mais recente foi descobrir que você toca tabla e toca tão bem. Você devia ter participado mais do disco. Bom, vamos falar de Cristiane Medina, baterista portuguesa que conheci em Lisboa e logo nos apaixonamos. Nós às vezes fazíamos uns duetos de guitarra e percussão, ficávamos horas improvisando, era fabuloso. Depois conheci a belga Marie Lindberg, com quem tentei aprender a tocar sitar, mas foi impossível. Graças a ela conheci os dois outros, Lars e Gustav, pois coincidiu que o trio andava pelo Panamá procurando bares para tocar. Tinha viajado para conhecer um pouco do jazz caribenho. Estamos juntos a uns dois anos, e amo que tenha sido possível a feitura desse disco porque eles vinham me perguntando quando gravaríamos algo. Tudo a seu tempo. Acho que agora conseguimos e certamente isto dará um fabuloso impulso ao nosso grupo.

FM | Este álbum, em especial, possui alguma característica que acredites seja um ponto de partida a partir do qual se possa esperar um atrativo singular que se intensifique em projetos futuros?

RS | Eu acho que essa conversa tem início em tuas letras. Se pensarmos nas 30 canções que compõem este álbum – o encarte confirmará o que digo – nós vemos que a densidade poética das letras funciona como um grande desafio para que eu fosse buscar uma voltagem combinatória nas harmonias e melodias. Ao final da canção-título ouvimos: nadamos nas veias da noite / como um mistério que vem de outro mundo / águas profundas, conchas selvagens / eu vou para os céus mais distantes / é lá que eu quero morar / é lá que eu quero te amar. Neste desejo – ou determinação – de fazer coincidir amor e morada, eu tenho baseado toda a minha composição. Compus uma balada para a tua letra, com um solo de trompete, deixando fluir essa ondulação marítima que acaba nos conduzindo a todas as nossas parcerias, como se juntos fôssemos uma grande viagem, pela música, sim, mas também pelo tempo, pelas descobertas de significados distintos no que fazemos. Como a imagem final de um poema seu que escolhi para o encarte: Os tambores fazem a mesa levitar e rugem como uma ribanceira. / Um credo imprevisível na goela de seus ritmos. Para isto caminhamos.

O Oceano mais distante pode ser escutado aqui:

E o encarte: www.calameo.com/read/007763171d1c40da52cd3

Não cabe menor adjetivo do que surpreende à altura estética em que pode chegar Floriano Martins, com suas aventuras desmedidas que representam o que de melhor se pode esperar de um demiurgo, como a seu respeito já se referiu o poeta Claudio Willer, quando a seu respeito escreveu um extenso ensaio. Poeta, ensaísta, dramaturgo, romancista, tradutor, Floriano Martins agora nos revela mais uma de suas inesperadas facetas: a música.

Thomaz Albornoz Neves (1963), nasceu em Sant’Ana do Livramento, RS. Autor de “24 verbetes – Ocidente – Ensaios e Traduções” (TAN/2022), “À espera de um igual” (TAN/2021) e outros.

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