ENSAIO

Sinfonia de pedras

Partitura da Segunda sinfonia de Gustav Mahler.

José Francisco Hillal Botelho
Bagé – RS

As relações entre a música e a poesia representam um dos capítulos mais fascinantes na história das literaturas. A gestação milenar dos pés e dos metros, o florescimento da rima e das assonâncias, a proliferação de tantos outros recursos através dos diferentes sistemas poéticos que desabrocharam de continente em continente, semeando ritmos ao mesmo tempo específicos e interligados, são evidências de que a poesia é uma espécie de milagre que ocorre entre o olho e o ouvido, um prodígio que permanece audível mesmo quando é silencioso. Autores como Segismundo Spina e Amorim de Carvalho traçaram a genealogia de nossos versos enraizando-os nas batidas dos trovadores; pois a poesia nasceu acoplada à música, e o desenvolvimento do ritmo é o processo de individuação da métrica: seu gradual e salutar divórcio da irmã gêmea sonora. O nosso venerando decassílabo só desenvolveu sua força de varão assinalado depois que o som dos instrumentos se calou; a música tornou-se interna, tangida na harpa dos acentos ou pausas. Contudo, “o sangue nunca vira água”, como diz um ditado apreciável; as irmandades persistem como traço profundo, e, mesmo no já racionalizado século XIX, o inevitável António Feliciano de Castilho sugeria que seus discípulos, para aprender o ritmo dos versos portugueses, batessem com os pés ou as mãos, na cadência de cada linha. E mesmo eu, pobre diletante que sou, modestamente opino: sem ter bom ouvido, ninguém verseja nem metrifica. As irmãs continuam misteriosamente unas, ainda que separadas – música e poesia; poesia e música: completando-se, desafiando-se, alterando-se em eterno contraponto. E o livro que agora temos em mãos, esta Sinfonia de pedras de Leonardo Valverde, oferece uma peculiar e envolvente interpretação desse tema que os séculos transmitem, ecoam e reelaboram.

Valverde, apreciador e conhecedor de Gustav Mahler, bebeu nas sinfonias do compositor tcheco-austríaco para elaborar versos em que a tradição métrica da língua é ao mesmo tempo interpelada e subvertida. Enquanto Mahler introduz a idéia de conflito em sua musicalidade, rompendo com a sinfonia de quatro movimentos, Valverde desafia o ritmo do verso no instante mesmo em que o estabelece. Observemos, por exemplo, o ritmo do poema “De Intellectus Emendatione”:

Das falsas ideias, fictícias,
fantasmas no espelho, absurdo ou nada,
ideias de ideias sem vestígios,
a fala embaçada nesse espelho
— em proposição já consagrada;

especulações, sem evidências,
o espelho em poeira na parede
não absorve ou espalha a luz reflexa,
reflete o Narciso em imanência
— na própria imagem retrocede.

Aqui encontramos versos que podem ser lidos como octossílabos e eneassílabos (há também um possível decassílabo); porém em todos os casos a disposição dos acentos se fixa no arrepio da métrica tradicional (de Castilhos, e outros). O som mental de cada verso parece dirigir-se a uma determinada solução rítmica, porém subitamente se deixa atravessar por outras cadências: isso confere ao poema um andamento próprio, que não é livre nem métrico, mas – digamos – mahleriano. Pois a poesia de Valverde é uma poesia estranha – no melhor sentido da palavra –, assim como estranha é a música de Mahler.

Se o compositor de “A Canção da Terra” estende seus tons para conferir voz à própria Natureza, os poemas de Valverde, com sua estranheza exemplar, invocam uma dicção que muitas vezes parece transcender nosso dialeto humano, cantando a partir de um posicionamento que é ao mesmo tempo interno e externo ao indivíduo, ao ser. É uma espécie de melodia que assinala seu pertencimento ao humano no mesmo instante em que estabelece a possibilidade de observá-lo como fenômeno. É o que observamos na composição sugestivamente chamada “Ode à Pessoa”:

O indivíduo divisível
em tão pura natureza
não percebe o quanto existe,
isolado, sem destreza,
o indivíduo não aparece,
sendo apenas uma espécie
encenada por monólogo;
entre tantas criaturas
um encontro e acessível,
do convívio mais humano
o indivíduo agora existe
transformando-se em pessoa.

Solitária, com fraturas,
convivendo com assombros,
do sussurro que sibila
à conversa em argumentos,
a pessoa se divide
entre as outras, sendo humana.

Outra estranheza de Valverde (pelo menos no que diz respeito ao mainstream do intelectual brasileiro): temos aqui um poeta que não apenas conhece o sânscrito, como o traduz. Conhecedor profundo dos textos em sânscrito, Valverde confere à sua poesia uma aura de hino, de epifania – embora tais revelações litúrgicas sejam muitas vezes obscuras, como tinham de ser, inspiradas que são em fontes mais ou menos herméticas. De toda forma, é sempre um deleite acompanhar a fuga dos sentidos nesses textos: fuga musical, que também é metáfora do que escapa, desliza e elude.

Ademais, dizem-me (e devo acreditar) que as vogais são muito importantes no sânscrito; e talvez venha daí certa densidade vocálica que perpassa os versos de Valverde. Sem dúvida alguma, o pé na filosofia em sânscrito o aproxima de T. S. Eliot, com o qual Valverde também partilha uma inclinação a intensas iluminações verbais, do tipo que eventualmente nos ofusca e permanentemente nos clareia. Exemplo de todas as observações anteriores é o conjunto de versos abaixo:

Dessa palavra sonante,
três consoantes, vogais,
a labial explosiva
inicia a velha história
de macacos bem sentados
a procura por iguais.
Dos gritos sem sinfonia
à música articulada,
dos passos deselegantes
à dança com harmonia,
pê-é-dê-erre-a, pedra
sobre pedra, sem aurora,
pés dançantes sobre o sal.

Os temas de sua poesia são como que acompanhamentos da forma: é uma forma que se move, abrangendo e transformando. Encontraremos aí tanto reflexões metafísicas e matemáticas (não exagero quando digo que Valverde versificou a existência do zero) quanto deslocamentos espaciais e temporais que nos conduzem ao mundo clássico, ao Japão feudal, e ao nenhures melódico e melancólico do nomadismo moderno. Contudo, em todas as suas páginas, em todas as suas linhas, Sinfonia de pedras é um livro sobre o mistério da palavra, sobre sua condição híbrida de criatura abstrata e sensível, de coisa que diz e que é dita e que, no entanto, sobrevive e se multiplica no silêncio.

José Francisco Botelho nasceu em Bagé (RS), em 1980. É jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema, havendo colaborado com diversos veículos de circulação nacional. Autor de “A Árvore que Falava Aramaico” (Zouk, 2011) e “Cavalos de Cronos” (Zouk, 2018). Como tradutor, recebeu dois troféus Jabuti: um por sua tradução de “Contos da Cantuária” (Companhia das Letras) em 2014, e outro por sua tradução de “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, em 2017.

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