Entrevistamos André Timm, que lançou no final de 2024 o seu quarto livro: “Objeto Cintilante: História Sulfúrea”. André é autor de “Insônia” (2011), “Modos Inacabados de Morrer” (2017), romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, também publicado na Itália, e “Morte Sul Peste Oeste” (2020), vencedor do Prêmio Minuano de Literatura 2021. Em 2018, venceu o Prêmio Off Flip, da Festa Literária Internacional de Paraty. Nesta entrevista, André conta um pouco a respeito do livro, suas motivações e repercussões. A seguir da entrevista, reproduzimos o capítulo inicial do romance.
Especiaria – “Objeto Cintilante: História Sulfúrea” é um título sugestivo para um livro cujo amálgama é quase todo virtual, isto é, ocorre em relações mediadas pela tecnologia. Desde as primeiras páginas, aliás, percebe-se a tensão implícita neste meio virtual e sua comunicação truncada. Parece que você quer marcar desde logo um clima inóspito na virtualidade. Mas com o título você quer sugerir que o mundo da internet é sulfuroso, infernal? Quer dizer, tão sulfuroso e infernal quanto o mundo das violências reais ou mais?
André Timm – Quando comecei a pensar este livro, desde o princípio, decidi que queria que esteticamente ele emulasse o modus operandi de como o mundo virtual funciona. Isso dito, na internet, muitas vezes, o que parece ser, é outra coisa. Veja, por exemplo, as redes sociais. Na superfície, aparentam ser meios de expressão onde podemos compartilhar e consumir aquilo que outros compartilham. Entretanto, redes sociais são, na verdade, ferramentas de extração de dados dos quais grandes empresas de tecnologia se valem para monetizar nossa atenção, a qualquer preço, custe o que custar, inclusive nossa saúde mental. Os algoritmos das redes sociais foram sendo modificados de forma a serem tão sedutores que não consigamos parar de rolar tela. Por que? Porque redes sociais se tornaram plataformas de mídia.
Há estudos que mostram que toda vez que usamos nosso celular, seus diversos sensores e câmeras acompanham o movimento de nossos olhos. Acompanham mais reações nossas, mas vamos ficar apenas nessa, a título de exemplo. O movimento dos olhos indica quais elementos chamam nossa atenção, como processamos informações e até mesmo nosso estado emocional. Por exemplo, mudanças rápidas no olhar podem sinalizar nervosismo ou desconforto, enquanto fixações prolongadas podem revelar interesse intenso ou concentração. Além disso, padrões de olhar podem sugerir preferências inconscientes e até antecipar decisões de compra ou escolhas sociais. Desnecessário apontar como isso é antiético, invasivo e como pode ser perigoso. Mas pra ficar só na superfície, essa informação pode ser usada para personalizar conteúdos, melhorar interfaces (eufemismo para reter mais, vender mais…) ajudando a prever decisões de compra ou mesmo estados emocionais.
Considero as redes sociais o equivalente ao pacto Fáustico moderno: nossos dados são nossa alma e o diabo são as big techs. Nos tornamos reféns dentro dessa relação em que amamos algo que nos destrói aos poucos, uma espécie de síndrome de Estocolmo digital.
Com isso, quero dizer que o livro abraça esteticamente esses mecanismos e emula em forma narrativa muitas das estratégias da internet. Em alguns momentos isso é explícito e bem marcado, mas há camadas mais sutis e profundas.
O título, portanto, evoca esse dualismo. Esse objeto cintilante pode ser tanto a morte de Antônia que acontece em um veículo em chamas que cruza a noite escura em queda, mas também as telas e seu brilho inebriante, que nos seduz e nos mata aos poucos. E a história sulfúrea, claro, que é a história de Antonia, mas também a história da maioria de nós hoje, aprisionados nessas jaulas luminosas, vivendo esse inferno figurado em diferentes estágios, mas aqui na Terra mesmo, sem que seja preciso que morramos antes para tanto.
No fim, o que a Internet está fazendo é se sobrepor ao mundo real de forma que, em alguns anos, não fará mais sentido falar em mundo real ou virtual. Tudo será uma coisa só. Óculos de realidade mista, lentes de contato e implantes permanentes sobreporão camadas de dados digitais sobre a realidade, de forma que estaremos, aí sim, conectados 24h por dia. Não estamos tão longe disso quanto pode parecer. Eu estimo 10 anos, no máximo, e sendo conservador.
Acho que estamos tão próximos disso que, respondendo mais objetivamente a sua questão, já não faz sentido pensar se o mundo virtual é mais infernal e sulfuroso que o suposto mundo real. Ainda falta alguns anos para que os dispositivos que nos conectarão permanentemente alcancem um estágio de minituarização e popularização, mas as bases já estão aqui. Arrisco dizer que, hoje, toda violência já inicia na internet e apenas prossegue e se concretiza em termos físicos.
Durante as pesquisas desse livro, e de outro, passei um tempo na deep web e as coisas com as quais tive contanto lá me marcaram profundamente. Ainda não consigo descrever o nível de perversidade e violência do que presenciei. Pra citar um episódio, meio que por acaso, caí num fórum onde um grupo e red pills cogitava o assassinato de uma YouTuber que abordava temas de viés feminista, uma das temáticas que red pills mais odeiam. Nem ouso repetir as coisas que os ouvir dizer, é assustador. Eles a monitoravam há meses, sabiam todos seus hábitos e de sua família, tinham muitas informações, fotos íntimas roubadas do celular da menina e planejavam formas de assassiná-la. Uma maneira cogitada foi, por exemplo, interceptar um entregador de iFood (eles podiam monitorar esse tipo de coisa, quando ela pedia delivery) e envenenar sua comida. Importante lembrar que é a deep web, e acessá-la requer um navegador diferente, outros protocolos de acesso, não é algo fácil como dar um Google. Usuários comuns não andam por lá. Caso alguém se pergunte se as intenções deles eram reais e não apenas bravatas, assustado e preocupado pela segurança da menina, entrei em contrato com um amigo promotor de justiça, que por sua vez entrou em contato com o setor de inteligência da polícia do estado onde a menina residia e, para minha surpresa, era algo tão real que a própria inteligência da polícia já estava monitorando o grupo e minha denúncia ajudou a mover o caso.
Portanto, as coisas já estão se fundindo e a violência, da maneira como leio o mundo, já é uma só. O inferno já é aqui.
Especiaria – Pelo menos aparentemente, as pessoas se colocam na internet como forma de ter um outro de si, uma dimensão mais livre de problemas e protegida dos danos relacionais. No livro, há uma visão bem mais negativa deste universo. Em que medida se pode considerá-lo ficção ou um ensaio sobre o impacto tecnológico na vida contemporânea?
André – Como a própria internet, acho que dificilmente consigo dizer que o livro seja um ou outro. Ele é todas essas coisas ao mesmo tempo. Ele é várias abas abertas de um navegador. Nessas diferentes abas, há trechos que emulam um ensaio, em outras, carregam as tintas na ficção, em outras, flertam com um experimentalismo, em outras traz conhecimento quase enciclopédicos, mas no fim, são tudo parte de um conjunto maior, parte de um grande todo. Tentando racionalizar, eu diria que a intenção foi ficcionalizar o zeitgeist, usar uma história como pretexto para falar do espírito do tempo atual, um zeitgeist que me aflige o tempo todo.
Especiaria – Diferente dos teus livros anteriores, Objeto Cintilante é um livro muito rente à forma como vivemos a vida contemporânea. Talvez isso cause um leitura desconfortável, porque podemos no enxergar em muitas situações narradas no livro. Você acha que os leitores estão preparados para um romance que justamente parece desacomodá-los do polo passivo da relação?
André – Creio que tem uma questão que vem antes dessa. Eu não acho que as pessoas nem mesmo tenham a real noção do que está acontecendo. O tema dos inúmeros perigos da internet e das redes sociais até têm estado em voga, mas me parece uma parcela muito pequena das pessoas que, de fato, entende o tamanho do buraco em que nos metemos. Vou dar um exemplo.
Recentemente, um crítico resenhou Objeto cintilante. Em geral, ele não gostou do livro, e parte da crítica girava em torno do fato de que eu, na suposta intenção de realizar uma denúncia e crítica social sobre tecnologia e big techs, criei um mundo irreal, onde a vida das pessoas é em grande parte mediada pelas rede sociais e pela forma como a internet funciona, de modo a afetar a maneira como as pessoas se comportam. Alguns trechos da crítica, para exemplificar:
“O tema não é tanto a garota quanto a própria internet. André Timm está muito preocupado com as redes”.
“Estamos sendo monitorados, controlados, estamos vivendo vidas de mentira, essa é a “mensagem” do livro”.
“Você, leitor, que leu o livro ou que lê esta resenha, me diga: sua vida é assim? Você posta fotos com largos sorrisos que escondem desespero por afeto? Sua vida é cenográfica, suportada por frágeis escoras? Sua pseudofelicidade é despótica e imposta? Você se vê nesse trecho?
Veja, pra mim, isso descreve exatamente a vida de boa parte das pessoas hoje.
Ele segue:
“Ou será que é sempre a vida dos outros que tem essas características? São sempre os outros que são rasos, falsos, alienados, drenados de vida. Você, não. Você vive profundamente, sua vida vibra com planos, com problemas, com relacionamentos. Se pelo menos as outras pessoas fossem mais parecidas com você!”
A questão não é a crítica ser favorável ou não, não se trata disso. Cada um tem sua percepção sobre o livro em si.
A questão é que há vários trechos que me fazem pensar que ele não entendeu o livro porque não entende o mundo em que estamos vivendo. E se um crítico literário não entendeu, que se supõe ser alguém com habilidades e capacidade de ler o mundo de forma competente, isso me sugere que boa parte das pessoas pode também não ter entendido ainda. Mas minha desconfiança não se baseia só numa crítica equivocada. É uma leitura que faço a partir de muitas fontes, inclusive a partir dos comentários que chegam em minhas redes sociais quando trato desses temas. As pessoas ainda não entenderam onde estamos, o que me parece quase inacreditável, e o que torna tudo mais perigoso.
Mas as pessoas estando prontas ou não, entendendo ou não, jamais faço concessões. Não pauto minhas escolhas temáticas ou decisões estéticas pelo que acho que os leitores podem pensar. Acho que o autor que faz isso, cedo ou tarde, vai se perder no caminho. Talvez venda mais, uma vez que pode estar fazendo o que leitores ou mercado querem que se faça no momento vigente, mas uma hora isso se volta contra o autor. No momento em que ele, por ventura, não consiga mais corresponder às expectavas e anseios externos (leitores, mercado, agendas), ele estará em apuros. Por isso, minha régua é só uma: eu escrevo sempre os livros que eu gostaria de ler. Quando acredito que cheguei nesse momento, é meu termômetro de que o livro pode estar pronto. Tanto não faço concessões, que vendo pouquíssimo e sou relativamente desconhecido. É o preço que pago por ser íntegro à arte na qual acredito.
Especiaria – Curiosamente, pesquisando na internet (estalqueando) encontrei algumas referências ao livro de longa data. Foi penoso encarar a temática? O que você pode nos dizer do processo de mentalização e escrita do romance? Até que ponto há ali de seus receios e preocupações com a questão da imersão tecnológica?
André – Sim, meus temores e anseios, meu terror está diluído nestes personagens, nesta história. Ao contrário do que a crítica supracitada parece ter entendido (ou não entendido), eu não me vejo à parte desse mundo sulfuroso. Pelo contrário, eu sou parte dele, sou tão refém quanto todos os outros. Tenho uma filha que, hoje, tem 15 anos e a quem dediquei o livro numa carta final que considero comovente e triste. Sendo uma adolescente mulher, hoje, ela está mais exposta e é mais vítima ainda de toda a estratégia sórdida das redes sociais e desse modus operandi perverso acerca de como a Internet funciona e de como as tecnologias mediam nossa vida de um modo vil. Foi difícil escrever, porque o tempo todo me via, a via nesses episódios cotidianos e assustadores que já normalizamos na nossa vida. Mas sinto que ainda tenho mais a dizer sobre o tema. Tenho mais dois livros planejados, embora não os tenha começado ainda. A esse conjunto, estou chamando de “Trilogia da tecnologia”. Espero conseguir escrevê-los.

ESGUICHO
Capítulo 1 de Objeto Cintilante: História Sulfúrea
O homem transpira aos borbotões. Ondas de calor, fogachos, sudoreses noturnas, agora e antes. Dentro do homem, uma estação completamente diferente daquela do lado de fora do carro. Fora: o mato congelado pela geada, o silêncio dos bichos entocados, a ausência dos insetos em torno das lâmpadas dos postes, a paleta desbotada do inverno e o ar gelado que queima quando entra. Dentro: os vidros embaçados do medo que o homem expira, o medo do homem ao ler a mensagem que acaba de chegar, medo do segundo pior cenário possível, fora descobrir que a própria filha está morta. O carro tem sensores. Sensores fotoelétricos, sensores slote cortinas de detecção de peças, sensores ultrassónicos, de pedestre, de ponto cego, de obstáculos, de mudança involuntária de faixa. O homem não tem sensores. Se tivesse, todas as luzes de alerta estariam acesas, todos os bipes, as mensagens intermitentes que piscam e anunciam o perigo iminente, a falha, o ponto de ruptura. Mas o homem tem nome. Se chama Dante. É pai de Antônia, que, segundo a mensagem, foi sequestrada. Mensagem que explodiu na tela do celular, que também é todo sensores. A notificação do WhatsApp quebra o breu do interior do carro, que por alguns instantes se converte num fulgor neon iluminando o rosto surpreso de Dante. Então Antônia não havia se matado. Então Antônia não havia resolvido desaparecer, nem estava simplesmente os ignorando. Nenhuma das hipóteses que ele e Alice, sua mulher, haviam cogitado acerca do desaparecimento de Antônia eram reais, o que não tornava as coisas menos trágicas. Sequestrada? A mensagem de áudio dizia numa toada agressiva que Antônia seria devolvida mediante o pagamento de 50 mil reais. O relógio de Dante mostra o pulso acelerar. O coração trepida, e na próxima mensagem de áudio, uma mulher grita desesperada por socorro, apelando que o pai venha salvá-la logo, pois a estão machucando. Se Dante tivesse sensores, poderia identificar se aquela era mesmo a voz de Antônia. Mas e a polícia? É para isso que a polícia serve, certo? Ir com a polícia, fazer com que a polícia garanta que ninguém seja morto, exceto os bandidos. Acionar a polícia, pagar a polícia. Mas e se os bandidos tiverem sensores, equipamentos capazes de identificar quem chega, inclusive a polícia? E logo Dante soa presciente, porque a próxima mensagem diz que ao mínimo sinal de polícia, a filha morre na hora, e morrer não seria o pior que aconteceria com ela. Cinquenta mil até meia-noite. Mas Dante ainda tem alguma esperança, liga para o celular de Antônia, que está desligado, assim como esteve nas últimas 24 horas. Então Dante liga para Alice, na esperança de que Antônia, nesse meio-tempo, tenha ligado ou aparecido em casa, mas não. “Cinquenta mil até meia-noite nessa localização que eu vou te mandar. É bom vir logo”, diz a pessoa do outro lado da tela. Sequestrada? A mesma Antônia que brincava de se enfiar por baixo da camisa dele, a mesma Antônia que gostava de dar sustos na mãe, a mesma Antônia que preferiu contar a ele, antes, a primeira menstruação, o primeiro beijo. A mesma Antônia que nos últimos anos parecia cada vez menos Antônia. Cinquenta mil até meia-noite. A seta do GPS no celular apontava um destino incerto e, para Dante, restava arriscar e descobrir se, de fato, aquilo que estava a pouco mais de trinta quilómetros dali era sua filha ou qualquer outra coisa que não fosse Antônia.