Fernando Gerheim
Rio de Janeiro – RJ
O mestre acariciava o gato preto deitado sobre a mesa enquanto discorria a respeito de sua anatomia. Só uma das alunas não prestava atenção, observando os sulcos na superfície de madeira da carteira. Jama7 desceu do tablado e veio andando em direção à menina. Parou ao lado dela e disse:
“Agora você será o objeto de estudo da aula.”
Pegou a aluna pelo braço e a levou para a frente da turma, colocando-a sentada na mesa, ao lado do gato.
“Mostre a língua.”
Aja tirou a língua vermelha para fora.
“Você sabe o que é papilomatose da laringe na infância?”
Ela engoliu a língua e disse: “É uma doença que deixa as pessoas roucas. Eu tinha um irmãozinho que tinha.”
Um burburinho percorreu a sala. “O que é um irmãozinho?” As crianças perguntavam umas às outras, esticando o pescoço entre as carteiras. Mais do que a resposta rápida e aparentemente correta para uma pergunta tão surpreendente, o que atraiu a atenção das meninas foi aquela palavra: “irmãozinho”. Embaraçado, o mestre tentou contornar a situação: “Hum… esse é o nome que se dá aos meninos… eh… que viviam na mesma casa que vocês quando vocês eram muito pequenas, antes de virem pra cá. Vocês eram muito pequenas, por isso não se lembram. Tudo se esclarecerá no seu devido momento.”
Despachou a menina de volta e prosseguiu a aula com novos ensinamentos sobre o gato preto de pelo curto e corpo tubular.
Após a aula, depois que Jama7 saiu da sala, as alunas, agitadas, começaram a gritar, correr, rabiscar o quadro e atirar pedaços de giz nas pás do ventilador de teto. A menina que falara a palavra esquisita arrumava o material na mochila. Uma aluna mais forte que ela, chamada Anna, se aproximou e jogou o caderno de Aja no chão. As outras arrastaram as carteiras, abrindo um círculo a sua volta. Começaram a zoar. Ela se retraía, imóvel no centro do círculo. “Quer chamar a atenção, né?”, “Avoadinha!”, “Seu irmãozinho tem papilomatose?” Zombavam. Uma sugeriu: “E se a gente levar ela pro laboratório?”
Anna ia na frente, parava no final de cada lance de escada, olhava para os dois lados do corredor e fazia sinal para as outras, que a seguiam correndo, arrastando a coleguinha. Entraram num laboratório com uma cama regulada por botões como a dos hospitais. Uma das meninas pegou no armário uma caixa de metal chata com uma etiqueta escrito: “Emplastro Jama7”. Colocou-a em cima da mesa e as outras se amontoaram em volta. Ela abriu a tampa, revelando pequenos círculos semitransparentes encaixados caprichosamente como jóias num estojo aveludado. Enquanto uma das garotas lia alto o folheto de instruções, as outras, sem encontrarem muita resistência, ataram a prisioneira na cama, passaram um cinto pela barriga dela como reforço, pegaram um frasco com um rótulo escrito “Plastídeos”, contendo uma gosma branca, e untaram com uma espátula o círculo, que desprendeu um pouco de fumaça e um cheiro ácido. Uma menina pegou um tubo de ensaio, voltou para junto das outras e despejou o líquido que ele continha sobre o círculo.
“Isso não estava escrito aqui”, disse a do folheto. As outras riram. A película escureceu rápido e pareceu ficar mais pegajosa.
Uma das meninas abaixou a calcinha de Aja, duas seguraram suas pernas abertas e uma terceira, com a ajuda de um instrumento comprido de metal, enfiou o emplastro em sua vagina.
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Ela contemplava a carteira, que lhe lembrava uma peça de quebra-cabeça. Duas daquelas encaixadas teriam uma forma próxima a do retângulo. A curva da carteira quase roçava sua barriga, mas o que mais a agradava eram os sulcos na superfície. Algumas das carteiras eram revestidas de fórmica, rabiscadas, desenhadas, às vezes com palavras, assinaturas, coraçõezinhos; mas ela sentava sempre na mesma, desde o primeiro dia de aula. Caso as carteiras fossem trocadas de lugar, procurava a sua e sentava-se nela onde quer que ela estivesse. Por isso gostava de chegar cedo na sala. Notou um vulto alto parado a seu lado. Virou a cabeça num sobressalto e viu a barriga protuberante so mestre. Olhou para Jama7.
Ele disse para a turma: “Agora, Aja será o objeto de estudo da aula.”
Certa vez, o mestre a flagrara rabiscando uma folha. Em vez de repreendê-la, elogiou-a, admirando o desenho. Agora apertava seu braço com força e a expunha às colegas.
O gato dengoso esfregou a cabeça na barriga dela. Ela olhou para o rosto triangular do felino. Entre os sulcos naturais da madeira, suspeitava haver alguns feitos pelas garras do bicho. Uma vez, quando entrou na sala, o gato arranhava sua carteira. Ela sabia que os gatos marcavam os lugares de que gostavam com as unhas, desprendendo um odor das glândulas entre os dedos das patas, como uma assinatura. Ela colocou uma folha sobre a superfície da carteira e friccionou com um lápis, transferindo para o papel, numa imagem, os sulcos da madeira. Era isso que ela queria revelar no desenho, mas não foi isso que o mestre viu.
“É um frottage. Os surrealistas usavam essa técnica pra produzir imagens inconscientes, que têm textura.”
Todas as outras alunas viraram o rosto ao mesmo tempo para Aja e a fitaram com inveja.
Percebendo o perigo, o mestre tentou atenuar a situação:
“Nada mal para uma principiante, você ainda tem muito que aprender.”
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O mestre olhava slide por slide contra a luz para ver se estavam no sentido certo, antes de colocar no carrossel. Quando Aja entrou já havia outras meninas na sala. Ela seguiu em direção à janela, achando sua carteira numa das últimas fileiras. Algumas retardatárias vinham pelo corredor excitadas com a perspectiva da denúncia e entraram na sala em silêncio. A turma abria os cadernos, retirava dos estojos lápis, borracha e apontador. A única que não preparava o material, encarando o mestre, era ela.
“Bem…”, ele começou, deixando um instante de silêncio no ar antes de emendar de surpresa, bem a seu estilo: “Que dia é hoje, heim?!” As alunas responderam todas mais ou menos ao mesmo tempo números aleatórios de 1 a 31, criando um rápido alvoroço.
“Muito bem, muito bem”, Jama7 pareceu aprovar, voltando-se para a única que havia permanecido muda.
“E você, não sabe?”
Depois de uma breve hesitação, ela respondeu: “Quinze.” O mestre foi dúbio: “Pode ser, pode ser.”
Jama7 andou até o interruptor e apagou a luz. Voltou e ligou o projetor: seixos de beira de rio; coxa masculina; muro de cimento pintado de branco; boca aberta; tronco de árvore; virilha feminina; roda de carro com pneu e calota; curva da batata da perna; meio-fio; planta do pé. Nesse ponto ele interrompeu a projeção: “Resolvam essa imagem para a próxima aula.”
Saiu da sala e disse alguma coisa para a inspetora que o aguardava do lado de fora. Deu uma última olhada para dentro da sala pela janelinha da porta. Seu olhar cruzou com o da menina que ousara desafiar sua autoridade e, por um instante, Aja e Jama7 sustentaram o olhar um do outro. O encontro produziu uma faísca incomum, um engate ótico que criaria memória. O mestre baixou os olhos e foi embora.
Tocou a sineta e as alunas começaram a se arrumar para sair. A inspetora entrou na sala e disse para Aja: “Aguarde aqui.” Aja ficou olhando as outras saírem em pequenos grupos e depois foi conduzida pelo corredor vazio. Sem esperança de resposta, e, caso houvesse, de que adiantasse alguma coisa, desistiu de fazer perguntas.
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Sentado na poltrona, o mestre acariciava o gato em seu colo, sentindo na ponta dos dedos a sensação agradável do contato com o pelo sedoso. Encolhida no sofá ao lado, abraçando as próprias pernas, uma adolescente olhava para ele. Jama7 levantou da poltrona, erguendo o gato pela pele do pescoço. “Eu quero te mostrar uma coisa.” Num gesto repentino, que ele executou sem aparente esforço, jogou-o para o alto. O gato girou o corpo no ar, virando de cabeça para cima, e caiu silenciosamente com as quatro patas no chão, flexionando as articulações para amortecer o impacto.
“Oh!” Mia exclamou admirada. “Coitado.”
“Não se preocupe.” O mestre sorriu. “Ele têm cristais líquidos nos ouvidos que informam ao cérebro a posição da cabeça em relação ao solo, enviando comandos através dos nervos para seus músculos e juntas, caindo sempre de cabeça pra cima. É por causa dessa hiper-sensibilidade para o espaço que os gatos são tão elegantes e têm tanta habilidade para saltar e andar em lugares estreitos. O pulo do gato é sete vezes o seu comprimento.”
“Mas o gatinho não deve gostar nada de ser jogado pro alto assim.”
“Talvez. Agora eu vou te mostrar outra coisa.”
Ele andou até o interruptor num canto da sala, cujas cortinas estavam fechadas, e apagou a luz.
Duas bolas brilharam no breu.
“Está enxergando alguma coisa?” Jama7 perguntou.
“Não.”
“Ele está. Os gatos captam a luz por células localizadas na retina, como nós, mas a deles têm uma espécie de tecido de células brilhantes: tapetum lucidum. É como um espelho refletindo a luz de volta para as células. Por isso os olhos deles brilham no escuro. As sinalizações fosforescentes das estradas são apropriadamente chamadas de olho de gato. Eles enxergam com até um sexto da luz que o olho humano precisa.”
“Podiam fazer lentes de contato de tapetum lucidum.”
Jama7 pensou um instante e completou:
“Os olhos das pessoas iam parecer uma auto-estrada.”
Mia estava sentada com as pernas em cima do sofá. Desdobrou-as e tocou o chão com a ponta dos dedos. Jama7 olhou para seus pés descalços.
“Eu adoro o arco dos seus pés.” Ele disse.
“Tapetum lucidum quer dizer tapete de luz ou de lucidez?” Ela perguntou.
Jama7 sorriu. “Lucidum significa ‘de modo brilhante’. Mas a raiz lucidus tem tanto o sentido próprio ‘luminoso’ quanto o figurado ‘lúcido’. Lúcifer quer dizer luminoso, que dá claridade.” Ele ligou o interruptor e completou numa encenação dramática na sala subitamente iluminada: “Que traz luz!”
Mia disse: “É bonita essa imagem, né? Tapete de luz. E o que se varre pra debaixo do tapete é a escuridão?”
Ele dobrou o corpo para a frente, curvando a coluna e estalando as vértebras uma a uma, até tocar a palma das mãos no chão.
“Puxa!” Ela exclamou.
Ele voltou à posição ereta. “A nossa espinha dorsal é mantida por ligamentos. A do gato, por músculos. E eles têm vinte e seis vértebras a mais do que nós.”
“Mas para um homem da sua idade você tem muita flexibilidade.”
Jama7 não gostou muito do comentário.
“Agora, a última coisa que eu vou dizer sobre os felinos hoje. Eles nunca são inteiramente domesticáveis. Ou deixariam de ser gatos. Não aceitam chantagem nem com fome. Detectam comida envenenada ou estragada por meio de glândulas olfativas. São verdadeiros gourmets. Morrem de fome mas não comem algo de que não gostam. Prezam acima de tudo a liberdade, mas são o animal mais ciumento que existe.”
Mia levantou do sofá e começou a engatinhar pela sala. Esfregou a cabeça nas pernas dele. Esticou os braços para frente, alongando a coluna, e rebolou um pouco o bumbum, como se abanasse um rabo imaginário. Jama7 não sabia se ela parecia uma esfinge ou uma gata no cio.
Ele também ficou de quatro e foi engatinhando até ela, mexendo a junta dos ombros como um felino à medida que avançava. Mia aproximou seu cocuruto da testa dele. Ficaram um instante parados, pressionando suas testas. Depois de alguns instantes, Jama7 afastou um pouco a cabeça e fitou a íris verde de Mia. “Faltou o principal.” Ele disse, distribuindo uma série de beijinhos estalados pelo rosto da garota. Quando acabou, retomou a preleção:
“Ao contrário dos humanos, o rito sexual dos gatos não tem estímulos preliminares. O ritual que antecede o acasalamento fica mais por conta da disputa territorial entre os machos, da vocalização pra defender os espaços, dos sons e cheiros das fêmeas no cio. A cópula dura no máximo um minuto. A gata fica parada, miando forte. E, geralmente, depois que o gato ejacula ela se volta tentando agredi-lo com uma patada. Pelo miado não dá pra saber se ela sente dor ou prazer. Ou ambos.” Jama7 afastou os cabelos pretos lisos e escorridos dos ombros de Mia. “Nós também sabemos ser silenciosos como um gato na queda.” Beijou a pele fina como asa de borboleta do seu pescoço alvo.
Debaixo da poltrona, Egito observava a cena impassível pela fenda dos olhos.
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Aja foi levada para um lugar chamado S.E., sigla que ela ouvia a torto e a direito simplesmente assim: “Ésse É”, e só muito mais tarde veio a saber que significava Setor Especial. Aquela locução familiar a acompanhou de modo inquestionável durante toda a infância, puberdade e início da adolescência. Lá vestiram-lhe uma camisola, deitaram-na num colchão forrado de plástico e marcaram o seu tempo pela posologia das bulas. No início, aquela sigla familiar era opaca como toda linguagem instrumental. Mas agora aquele inseparável bichinho de pelúcia infantil ao qual ela se afeiçoara e que possuía como um objeto afetivo transicional transformara-se de uma hora para outra – e ao que parecia de uma vez por todas -, numa realidade concreta. De um labirinto em que seus pensamentos se moviam indefinidamente sem chegar a lugar nenhum a sigla SE se transformara na onomatopéia de um mundo sombrio.
A visita da junta médica foi o primeiro embate com o mundo real que agora o nome Setor Especial significava. Aja respondeu prontamente às perguntas, para demonstrar que estava lúcida. Mencionaram, enigmaticamente, no melhor estilo jama-setesco, um buraco que soltava um bafo quente de gasolina queimada, com as paredes cobertas de fuligem, diante do qual ela ficara paralisada, com medo de atravessá-lo. Ela se lembrou vagamente de ter vivido um episódio como aquele há muito tempo, quando ficou parada diante de um túnel num subúrbio da cidade, mas não identificava nele nada de tão significativo. Não enxergava o sentido de desencavarem aquele evento do seu passado, a não ser, talvez, para induzirem-na a pensar que tinham implantado um chip em seu cérebro, ou quem sabe lhe causar, sadicamente, desconforto com uma lembrança soturna. O mal-estar que a lembrança poderia lhe causar não se comparava à sensação intimidadora de que até seus pensamentos e sensações mais íntimos podiam ser conhecidos pela junta médica, como se ela pudesse penetrar com uma frieza clínica no seu inconsciente mais recôndito e nele intervir como um invasivo bisturi.
Uma das médicas da junta disse:
“É um medo fútil de menininha mimada que nunca andou pela Zona dos Estivadores.”
Aquilo a constrangeu.
Outra médica, mais jovem que a primeira, continuou como se quisesse adular sua superior: “A zona do pessoal da estiva, peão de obra, responsável pelos serviços da baixa-engenharia de canos e dutos que levam nossos excrementos para o mar aberto.”
Aquela junta era muito estranha. Por quê aquele papo escatológico vindo de quem ela esperava uma postura bondosa, de abnegação? Por quê aquela linguagem afetada, com um tom meio irônico, de quem envergava jalecos imaculados e professava a medicina? A jovem médica completou, vaidosa, com um laivo de maldade pueril: “Os canos que despejam nosso cocô, reunido num grande bolo fecal urbano, na lixeira subaquática do alto-mar, nutrindo os peixes e fertilizando o oceano.” Nenhuma das outras correspondeu àquele arroubo sem outra justificativa que puxar o saco da superior.
Aja aproveitou o flanco aberto pela reação silenciosa das outras médicas e disse, sem alterar o tom de voz, para surpresa geral: “Eu posso te processar por assédio moral. Onde já se viu um médico fazer bullying com a paciente?”
O silêncio com que sua fala foi recebida atestou sua vitória moral. Sentindo-se encorajada, Aja cravou ainda mais fundo a agulha venenosa na médica que quis dar uma de engraçadinha:
“Você está querendo se promover às minhas custas?”
As outras médicas procuraram esconder seu espanto com aquela reação altiva, de uma inatacável dignidade. Aproveitando a vantagem, Aja avançou ainda mais:
“E vocês pensam que eu não sei que desencavaram o episódio do túnel de fuligem porque querem me fazer crer que injetaram um chip na minha cabeça?”
A médica que havia sido irreverente e todas as outras ficaram olhando para ela de queixo caído. Alguns dias depois, a sós em seu quarto exíguo e austero, Aja indagou-se se não seria por isso que as doses de remédio tinham aumentado. Nas novas visitas que recebeu, resolveu adotar outra tática: começou a falar frases desconexas, alternando apatia e agitação, mostrando-se descuidada com a higiene pessoal, fingindo-se dopada. As pílulas que deveriam produzir esse efeito, no entanto, ela escondia debaixo do colchão. A estratégia deu certo. A junta médica deixou de acompanhá-la com a mesma assiduidade. Uma manhã, no entanto, ela recebeu a visita de uma médica da junta que sempre viera com as outras mas nunca falara nada, parecendo respeitosamente sabalterna. Contrariando o protocolo, em vez de escutar, Aja tomou a iniciativa:
“Nas vezes que você veio junto com as outras reparei que era a única que não me fazia perguntas.”
Aja estava encostada no espaldar da cama, com o travesseiro nas costas.
“Os mais experientes têm precedência.” A jovem doutora respondeu, olhando para a folha de papel na prancheta e depois para o relógio na parede. “Ainda mais num caso como o seu”.
O rosto de Aja tomou uma expressão infantil de fragilidade e desamparo. O que ela queria dizer com ‘num caso como o seu’?
“Por quê num caso como o meu?”
A doutora olhou para a paciente como quem diz: você não sabe de nada. Então falou com certa cumplicidade: “Você não sabe o que foi quando entrou aqui. Sua cura é um passo muito importante para a carreira daquelas médicas. Mas você está frustrando a expectativa delas.”
Aja abaixou o olhar instintivamente. “Sinto muito.” Ficou um instante pensativa. “Mas foi bom pra você, não foi? “
“Eu ficar com o seu caso? Não sei se foi uma deferência, mas eu quero muito te ajudar sim.” A médica empertigou-se. “A medicina é antes de tudo um sacerdócio. Agora tome isso.” Estendeu o copo d’água e um comprimido que Aja colocou na boca, deixando debaixo da língua.
Aja refletia sobre o que acontecera com ela para ser considerada um caso tão especial. Sentiu uma espécie de pressão entre a vagina e o esfíncter, uma mistura de medo e ansiedade. Lembrou-se, como num filme, da tarde em que as meninas enfiaram aquele troço nela. Lembrou-se também de quando o mestre a chamou e ficaram a sós. Então um pano preto cobriu seus olhos. Sua memória ficou sem visão, era apenas uma sensação ruim que ela não conseguia definir e envolvia seu corpo. Como combater um inimigo invisível? Ela fez um esforço descomunal para conseguir dizer para a doutora:
“Você me parece ser uma médica muito competente.”
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Para ir ao banheiro, Aja tinha que passar por um grupo de pacientes que bloqueava parcialmente o corredor. Aquela era uma situação comum no colégio. Parecia que ela estava na Escola Especial, não no Setor Especial. Como aquelas pacientes tinham permissão para ficar ali? Hesitou um instante. Aproximou-se devagar, procurando um espaço maior entre elas. Prendeu a respiração e seguiu em frente, esforçando-se para não cruzar involuntariamente o olhar com outra enferma e trair o que sentia.
“Com licença, com licença.”
Depois que passou, escutou as meninas cochichando atrás dela, dando risadinhas. Sentia-se de volta à Escola Especial. Lembrou-se de Jama7. Do emplastro. Sentiu de novo o pano preto cair sobre seus olhos. Em sua visão meio enevoada, o corredor do hospital e o do colégio se confundiam. Eles até tinham dimensões parecidas, e nenhum deles tinha janela.
Conseguiu chegar ao banheiro. Entrou e olhou o próprio rosto no espelho sobre a pia: esverdeado, cavernoso, cadavérico. Fitou seu olhar baço, fosco, sem brilho. Uma lágrima escorreu de sua esclerótica encardida, rolando pelo seu rosto pálido. Sentiu o contato frio do tampo da privada na parte interna das coxas. O choro abafou o som do xixi. Deu descarga. A baixa engenharia.
O corredor estava vazio. Ela estava na Escola Especial e no Setor Especial ao mesmo tempo. Entrou de volta no quarto e deitou na cama. O esgotamento foi transformando aos poucos o sentimento que a oprimia em revolta. Andou até a janela e colocou todo o seu desejo no olhar com que mirou intensamente o céu cinza, sentindo-se por um instante fusionada com aquele vasto espaço sem limites. O tom plúmbeo a contaminou com seu peso. Um relâmpago fendeu o céu, seguido do estrondo do trovão. Veio a tempestade. As gotas gordas de granizo chocando-se contra as telhas figurava sua tormenta. Só o dilúvio poderia redimi-la. Aproximou o rosto da Janela. Encostou a testa no vidro frio. De repente avistou lá embaixo o gato preto num recuo sob o telhado, sentado sobre as patas traseiras com a cabeça ereta, contemplando imperturbável o mesmo céu conflagrado que ela fitava inquieta. Um dardo de fogo cruzou o espaço. Soou outro estrondo cavo. O gato fugiu veloz.
Fernando Gerheim publicou o livro de poemas “Ínterim” (2024, 7Letras), o romance “Signofobia” (2021, 7Letras, 2a edição; 2012, Multifoco, 1a edição), o livro de contos “Infinitômetros” (2018, 7Letras) e o ensaio “Linguagens Inventadas – palavra imagem objeto: formas de contágio” (2008, Ed. Zahar/Cia das Letras). Realizou os filmes curta-metragens “Salomé” (2011) e “Urubucamelô” (2002). É professor da UFRJ – ECO e pesquisador vinculado aos programas de pós-graduação PPGAC – ECO e PPGAV – EBA.
Gostei, vou acompanhar. Intrigante. obrigada
Obrigado, Fernanda. Saiu hoje o segundo trecho, pra você poder ler a continuação.