FICÇÃO

Jama7: uma fábula de prazer e poder – pt. final

Imagem: Charles H. Bennett, 1856. Zoom.

Fernando Gerheim
Rio de Janeiro – RJ

Leia também a parte 1 e a parte 2.

De tempos em tempos, Aja jogava todos os comprimidos que a enfermeira trazia na privada, mas guardava o pozinho das pílulas num pote de vidro escondido no armário. Toda sua energia se concentrava em montar uma milícia usando o que tinha à mão. Desde que a junta médica havia desistido dela, quem vinha vê-la nas visitas de rotina era uma médica subalterna na hierarquia da S.E: a dra. Alejandra, como estava escrito na placa em seu jaleco. Ela aparentava ser mais jovem do que era por causa da sua compleição miúda. Quando Aja ainda era tratada como um caso especial nas visitas de rotina da junta médica, a dra. Alejandra ficava sempre atrás das outras e nunca dizia uma palavra. Justamente por isso, Aja simpatizava com ela. Depois que assumira o seu caso, num desses momentos a sós, a dra. Alejandra lhe contou que ficava impressionada ao ler seu boletim. Numa crise de auto-comiseração aguda, Aja lhe perguntou o que o laudo dizia. Na ocasião a médica repondeu, levantando assimetricamente a sobrancelha esquerda, enquanto a direita permanecia imóvel, como se fosse uma vilã de cinema ou tivesse uma paralisia muscular:

“O laudo diz que você tem uma patologia rara e complexa. O seu caso impressiona muito a junta médica.”

“Qual o diagnóstico? Não tem nome?”

“Não, é uma patologia desconhecida. Esse é o problema. Não tem literatura clínica sobre o seu caso, então não sabemos como tratá-lo.”

“E o que vai acontecer comigo?”

“Não sei. Vão apresentar o seu caso num congresso.”

Aja não acreditava que a dra. Alejandra fosse formular um disgnóstico próprio, mas não se importava, bastava sentir que a médica não reproduzia a postura das suas colegas, querendo usá-la como escada para ascender na carreira. Alejandra transmitia-lhe afeto, algo mais raro na S.E. que o seu “caso clínico”. 

A médica saiu do quarto deixando os comprimidos e um copo d’água na mesa de cabeceira. Aja abriu as cápsulas cuidadosamente e derramou o pozinho no pote de vidro. Em seguida jogou as cápsulas vazias na privada e deu descarga. Ficou observando-as girar em espiral na água do vaso até serem engolidas pelo vórtice. O pano preto que volta e meio encobria seus olhos também era como uma força centrípeta em torno da qual tudo orbitava. Quando as cápsulas vazias foram sugadas com um gorgolejo cavo sentiu se renovarem e se fortalecerem o desejo de escapar da S.E. e seus planos de montar uma milícia para lutar contra aquela estrutura onipresente oculta.

A relação entre eles começara ainda na Escola Especial e Mia recordava-se bem daquela tarde depois da aula em que Jama7 lhe colocara o emplastro. O mestre iniciava as alunas em encontros extra-classe aguardados por elas com grande ansiedade. Mia estava deitada no chão atapetado, com os pés cruzados e a cabeça sobre uma almofada, observando o mestre de pé em frente à estante, nu contra as lombadas. Seus pêlos se avolumavam no peito, descendo numa linha escura até formar uma concentração em volta do pênis murcho. Ele esticou o braço para guardar o livro que segurava numa prateleira alta e o desenho de suas vértebras se delineou sob a pele. Jama7 disse:

“O pênis do gato tem estruturas semelhantes a espinhos, que produzem um grande estímulo na fêmea em contato com a parede da vagina.”            

“Que nem aqueles de borracha.” Mia disse, maliciosa.

Ele olhou para ela ali deitada no chão tão jovem e linda e ela o olhou de volta ali em pé com aquela barriga ligeiramente protuberante e o tufo eriçado em volta do pau murcho. O mestre estendeu a mão para Mia.

“Vamos. Chegou a hora.”

Quando Jama7 retirou da prateleira no meio da estante uma lombada que dizia “Emplastro Jama7” uma porta se abriu. Ele conduziu Mia para dentro de um laboratório. Ao entrar, ela apertou mais forte a mão dele, apreensiva.

“A gente nunca vai deixar de se ver?

“Nos encontraremos no mínimo uma vez por mês.”

Ela o encarou mais aliviada. Deitou na cama hospitalar. Jama7 pressionou um botão, fazendo a cama subir com um som de ar comprimido. Ligou a luminária, ajeitando o braço mecânico para direcioná-la. Sem controle da situação, Mia sentiu um arrepio e olhou para ele suplicante. 

“Não tenha medo”, Jama7 disse, vestindo as luvas cirúrgicas.

Um pequeno círculo pendia de uma pinça em sua mão. Mia abriu as pernas. Jama7 enfiou a membrana redonda em sua vagina e depois introduziu o dedo indicador para verificar se estava firme. Ela abriu os olhos e procurou o olhar dele como quem lança uma âncora no mar. Ele tirou as luvas, afastou o braço móvel da luminária e pressionou o botão, descendo a cama. 

“Pronto. Passou.”

“Não doeu.” Mia sorriu, descendo da cama. Pendurou-se em seu pescoço, romântica. Ele apertou sua cintura fina, sustentando no ar seu corpo leve. Quando ela falou, sentiu seu hálito juvenil.

“Eu não vou aguentar ficar longe de você.”

“Quanto melhor você fizer sua parte, com mais frequência a gente vai se ver.” Soltou-a no chão. “Agora vai.”

Quando almoçava no refeitório, após olhar discretamente em volta, Aja jogou o peixe dentro do bolso costurado na bainha da camisola. Ao voltar ao quarto, escutou um miado ao longe, vindo lá de fora. Aproximou-se da janela e olhou para baixo. Jaspe estava no telhado, esperando o leite. Encontrar seu futuro gato preto sobre as telhas cor de argila deu a ela uma sensação de conforto. Era bom sentir que no mundo havia algo constante, em que ela podia confiar. Será que, depois de tanto infortúnio, as coisas iam melhorar? Colocou o peixe no vaso vazio, cujo furo na base ela havia tapado com um pé de meia. Levou-o até a janela e foi soltando a corda devagar, descendo-o rente à parede externa do prédio, até pousá-lo no telhado lá embaixo. Observou o gato se aproximar, enfiar o focinho dentro do vaso para examinar o que havia lá dentro e abocanhar o peixe, afastando-se vagarosamente pela telhado inclinado, com seu andar lânguido de felino. 

Aja ficou satisfeita por Jaspe. Sua vivência desde que entrara no Ésse É parecia ter chegado a um ponto de inflexão, uma curva em que algo situado no passado estava sendo substituído por uma paisagem nova, enviada por um sopro do futuro. O que se transformava era a própria qualidade do ar que ela respirava. Ou seria o seu pulmão? Cogitou se deveria rebatizar o gato, mas não lhe ocorria nenhum nome novo. Pensando melhor, Jaspe era um nome que suscitava em sua imaginação um mundo ainda por vir, e decidiu mantê-lo, afinal naquele momento o desconhecido se irradiava em todas as direções. 
 
“Mãe, como é uma menina?” Nô perguntou. Mia olhou-o surpresa, como se a pergunta não fizesse sentido. “Por quê eu nunca vi uma menina?” Ele insistiu.

“Isso é coisa que se pergunte?” Ela desconversou. “É assim e pronto. A gente não questiona.”

Nô reparou que a mãe havia ficado ruborizada. A linguagem da verdade escrita no corpo.

“Mãe, por quê eu só vejo mulheres adultas no mundo, nunca vejo meninas? Toda mulher adulta um dia foi menina.”           

Silêncio de Mia.

O filho insistiu: “Você também foi menina um dia. Onde estão agora as meninas como um dia você foi?”

Ela pareceu embaraçada.  

“Mãe, você está com vergonha?”

Mia continuou em silêncio, com as bochechas rosadas. Nô gaguejou, reticente:

“Ma-ma-mãe…”

Nô caiu nos desvãos desse dissílabo, sentindo-se desprotegido e vulnerável. As reentrâncias subitamente misteriosas daquele substantivo feminino tornaram sua elocução falha. A repetição da letra “m” expressava propriedades ocas do amor, produzindo um eco adiposo. Numa formulação incompatível com o vocabulário infantil poderia se dizer que o intervalo entre as duas sílabas iniciadas pela mesma consoante bilabial correspondia a uma zona limítrofe entre a simbiose pré-natal e a cisão pós-parto.

O filho ficou observando a mãe de costas na janela da sala com o olhar perdido na paisagem urbana, pensando em Deus sabia o quê. Seja lá o que fosse, era algo muito íntimo para merecer aqueles momentos silenciosos de solidão que o excluíam. Aquela membrana às vezes se tornava semitransparente como um véu, outras opaca como um portão de ferro, jogando-o num mundo intangível de interpretações abstratas que o faziam resvalar numa sucessão indefinida de objetos erráticos.

“…on-on-de você va-vai?”  

“Você está gaguejando, filho? Preciso resolver umas coisas.”

“Po-po-posso ir tam-tam-bém?”

Preocupada com o estado emocional do filho, Mia pôs a mão em sua cabeça e acariciou seu cabelo para compensar a resposta seca:

“Não. Vou na reunião do grupo de amigas.”

“Ami-mi-migas de in-in-infância?”

Mia contraiu a comissura dos lábios e disse: “Vou marcar uma consulta no fonoaudiologista pra você.”

A mesma pergunta se repetia de tempos em tempos e havia um certo número de respostas que se alternavam até se reiniciar o ciclo: “No curso.” “No salão.” “Resolver uns assuntos de adulto.” “Na reunião mensal do grupo de amigas.” Até que um dia ele perguntou:

“E por quê você nunca fala da sua infância?”

Primeiro ela ficou envergonhada, depois olhou para ele daquele jeito contrariado, apertando os lábios em silêncio. A pergunta fez ela relembrar de toda a variedade de perguntas do filho. “Aonde você vai?” “Por que a gente não vê meninas por aí?” “Onde elas estão?”

“Eu já disse que não gosto que você pergunte essas coisas.”

Aquele tom de voz ríspido não condizia com Mia. Nô continuava:

“Onde estão hoje as meninas que serão as mulheres de amanhã?” 

Nô viu certa vez, entre as coisas da mãe, uma foto dela criança ao lado de outas meninas, numa sala de aula. Estendeu a fotografia para ela e
perguntou:

“Onde é isso?”

Num gesto ríspido – ela estava se tornando assim –, Mia arrancou a foto da mão dele.

“Você estava mexendo no meu armário?!”

Nô fez cara de espanto. O que havia de tão errado naquele lugar onde as meninas cresciam? Por quê era proibido falar naquilo? A mãe percebeu que sua reação havia sido exagerada e resolveu dizer a verdade, na esperança de fazer parecer que aquilo era uma coisa trivial:

“É na Escola Especial.”

Foi a decisão errada. Aquelas duas palavras exerceram sobre o imaginário de Nô um poder de atração muito maior. Depois de um instante em silêncio, ele indagou:

“E como é lá?”

A mãe fez cara de espanto outra vez. Nô queria que ela descrevesse como era o espaço físico que aquelas duas palavras designavam e o que acontecia lá dentro. Ela meneou a cabeça, reprovando.

“Pobre menino.”

 Nô foi ainda mais longe:

“A Escola Especial é algum tabu?”

Mia ficou chocada com o vocabulário precoce do filho. Apelou para o último recurso:

“Pergunta pro seu pai.”

O pai bebia cerveja artesanal numa garrafa long-neck assistindo futebol na TV quando Nô, sentado a seu lado, perguntou de repente:

“O que é Escola Especial?”

Dibi respondeu com outra pergunta, meio impaciente:

“Onde você escutou essa palavra?”

“A ma-ma-mãe con-con-tou.”

O pai fraziu o cenho numa expressão contrariada. O fato do filho pronunciar o substantivo que designava a mãe dividindo as sílabas como se fosse gago – Dibi achava que era uma encenação – não o incomodava mais. Ele ia dizer uma coisa, mas se conteve. Ele ia dizer que a Escola Especial era o lugar onde era criado o véu do erotismo através da diferença entre os sexos. Esse véu que, quando chegava a vida adulta, era uma das forças motoras do mundo, mas não quis dizer a palavra erotismo, afinal Nô era apenas uma criança, seria inapropriado, então ele disse apenas:

“A Escola Especial é um assunto que diz respeito às mulheres.”

E voltou a prestar atenção no jogo.

Houve uma falta, um jogador caiu no chão, o jogo foi interrompido.

“Elas estudam as mesmas matérias que a gente?”

“Sim. Mas elas estão lá porque…” Na hora não soube como continuar, porque novamente ia falar em erotismo, então mudou o curso da fala:

“Quando eu nasci já era assim e eu nunca me questionei. É natural que seja assim. É bom que seja assim.”

O pai não tomou consciência, mas o fato de não ter sabido responder prontamente, de ter hesitado, de ter repetido várias vezes a palavra “assim” na
sua resposta, sem conseguir dar progressão ao seu pensamento, como se girasse em círculos, foi provocando, involuntariamente, um tom crescente de irritação em sua voz.  

“Eu não entendo por quê você está questionando. Você não está satisfeito?” Quando ele fez essa pergunta, Nô se retraiu, como se houvesse dito algo de errado e o seu questionamento fosse reprovável. Isso o entristeceu. Ele sentiu também que naquele discurso havia algo mais, uma distância entre seu pai, subitamente transformado naquela pessoa estranha que falava, e ele próprio, uma distância criada pela linguagem, usada para impedir de ver a pessoa do outro lado, fazendo-o sentir uma solidão terrível, como uma sombra pesada ou uma nuvem carregada que escurecia e aumentava quanto mais aquele cara falava. Nô pressentiu, com uma dor aguda, que aquele homem que estava diante dele e se chamava Dibi não era seu verdadeiro pai.” 

Fernando Gerheim publicou o livro de poemas “Ínterim” (2024, 7Letras), o romance “Signofobia” (2021, 7Letras, 2a edição; 2012, Multifoco, 1a edição), o livro de contos “Infinitômetros” (2018, 7Letras) e o ensaio “Linguagens Inventadas – palavra imagem objeto: formas de contágio” (2008, Ed. Zahar/Cia das Letras). Realizou os filmes curta-metragens “Salomé” (2011) e “Urubucamelô” (2002). É professor da UFRJ – ECO e pesquisador vinculado aos programas de pós-graduação PPGAC – ECO e PPGAV – EBA.

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