Edson Silva de Lima
Cáceres – MT
Este ensaio foi publicado anteriormente na Revista Ágora, vol. 34, n.1.
A filósofa Martha Nussbaum, em seu trabalho Poetic Justice2, no qual nos centramos nas potencialidades empáticas que a literatura provoca nos leitores, nos permitiu perceber que esse lugar imaginativo comporta modelos de realidade, os quais nos convidam a conhecer a nós mesmos pela experiência dos Outros. Seria, portanto, nessa relação de pergunta e resposta que a literatura permitiria que nós experimentássemos de outra forma a vitalidade, os impulsos, os entusiasmos, a época e, por conseguinte, a experiência histórica. É importante acentuar que a condição imaginativa que a literatura, tomando aqui seu espaço criativo como fundamental, referindo, portanto, a ficção e a ficcionalidade da vida, permite com que transportemos nosso espaço de experiência para outra superfície, como se pudéssemos transpassar o suporte impresso e vivenciar a história ali narrada. Sabemos, entretanto, que nossa capacidade imaginativa nos permite atravessar obstáculos “concretos” e chegar àquele outro lugar como mundo possível.
Assim, seja como condição possível de observação ou como possibilidade de experimentação emocional, a ficção carrega consigo essas experiências particulares partilhadas de maneira especulativa, criativa e imaginativa. Em outras palavras, a ficção “não pretende ser uma investigação do que foi, sem que, por isso, o mundo de fora deixe de tocá-la”3. Nesse sentido, a metodologia que ampara este trabalho é a hermenêutica fenomenológica como defendida por Paul Ricoeur4, na capacidade deste de arregimentar a história e os elementos da teoria narrativa como base de seu pensamento e ponto de partida analítico. Nosso objetivo é discutir a condição representativa de acesso a um modelo de passado possível que congratule ficção, história e emoções.
***
Nesse sentido, Martha Nussbaum ajuda-nos a pensar a pulsação do mundo quando em Poetic Justice enfrenta a questão da Rational Emotions. Ela responde, nesse capítulo, aos racionalistas, pois estes afirmam que as emoções perturbam o equilíbrio do mundo racionalizado, da razão exclusiva. Eles dizem: “As emoções são instáveis por causa de sua estrutura interna irrefletida; porque são pensamentos que atribuem importância a coisas externas instáveis”5. Sobre a acusação das emoções não apontarem para uma reflexão racional e social devido à sua dimensão individual, Nussbaum retruca: “o intelecto sem emoções é, podemos dizer, cego aos valores: falta-lhe o sentido do significado e o valor da morte de uma pessoa que julgamentos internos ao emocional teriam fornecido”6. Ela aponta com muita clareza que todo pensamento tem um aspecto ético (necessidade) que a razão, em seu reino, não pode negar. Isso corresponde a afirmar que não há um caráter de classe apenas pelo coletivo, mas que exige do indivíduo uma relação com o ritmo do mundo para se instrumentalizar para o efeito coletivo:
Uma história da qualidade de vida humana, sem histórias de atores humanos individuais, seria, eu argumento, muito indeterminada para mostrar como os recursos realmente funcionam na promoção de vários tipos de funcionamento humano. Da mesma forma, uma história de ação coletiva, sem as histórias de indivíduos, não nos mostraria o sentido e o sentido das ações coletivas, que e sempre melhoria as vidas individuais7.
Nussbaum responde, ainda, a partir de Lionel Trilling, que, sim, a imaginação e as emoções são da dimensão do individual, mas, veja bem, se colocarmos em questão que não estamos falando de um caráter puramente de satisfação das inclinações, supostamente, naturais ou justificando um socialismo coletivista, em que a arte é cópia do mundo social, as emoções precisariam ganhar proeminência para o social, que tenha como fundamental um conjunto de indivíduos preocupados com a vida pública, com a coletividade, com a coisa pública, com a qualidade de vida. Para Nussbaum, essa individualidade assume uma importante missão, uma responsabilidade em reelaborar a vida coletiva pela inteligência das emoções sem a pretensão de sobrepujar a razão em prol desse coletivo.
Notadamente, o economista Amartya Sen é uma influência vultosa nessa resposta ao utilitarismo, em específico, e ao socialismo comunista, como limitador do caráter imaginativo e emocional da vida pública. O nosso interesse, no entanto, é apontar que o mundo sensível e o mundo das emoções não podem ter como parâmetro exclusivo a racionalidade, um modo de sistematizar e hierarquizar a vida, isto é, a condição primeira de experimentar o mundo e a arte. A filosofia de Martha Nussbaum tem se esforçado para demonstrar a dimensão cognitiva das emoções não como concorrentes da razão, mas como condição suplementar que permitiria aos indivíduos experimentarem o mundo da vida como catalisador de instrumentos reflexivos; isso aponta para uma possibilidade interessada de leitura que colabora para que a fruição seja incluída a uma experiência ética, ou seja, “a ética está preocupada com a força de vontade que está por trás de toda história meramente descritiva”8.
Nesse tocante, Martha Nussbaum parece bastante assertiva quando afirma que a literatura mobiliza as emoções no reino do conforto, numa condição efetiva em que é possível cometer erros, diferente da história que teria como pressuposição a verdade ancorada nos fatos. Afirma Martha Nussbaum que “os seres humanos experimentam emoções de maneira modeladora, tanto por causa de sua história individual quanto por normas sociais”9. Ela dá importância ao processo de repensar a consideração costumeira de atribuição às “paixões humanas demasiadas errantes e volúveis”10. Elas, as emoções, são responsáveis por serem passíveis à relativização da culpabilidade, da responsabilidade e da própria confiança na racionalidade absoluta. A moralidade pessoal, nesse sentido, se torna a tônica do mundo contemporâneo. No entanto, ainda não foi possível reconhecer que a dinâmica entre a razão e as emoções é fundamental para que, no exercício da empatia, alcancemos a compaixão como princípio democrático.
Martha Nussbaum nos mostrou que o exercício deliberativo humano é diferente do animal, por não estar vinculado à condição instintiva, mas à autorreflexão explicitamente, ou, em um caso particular, contingencial. Para ela, há uma lógica que daria os contornos próprios de uma emoção humana. É bem verdade que são os fatores incongruentes das emoções que possibilitam o surgimento da deliberação, da autocritica e, possivelmente, da ansiedade como propriedade do humano.
Portanto, Nussbaum apresenta “tipos” possíveis dados à observação, na esteira da leitura que Catherine Gallagher11 apresentou como modelos possíveis de existência, tipos verossímeis. Neles, imprimimos nossas demandas emocionais e humanas; encorajando, torcendo, traçando planos e nos emocionando. Experimentamos outras vidas, deparamo-nos com indagações complexas e nos identificamos em diversos níveis, de modo que, “Se desistirmos da ‘fantasia’, desistimos de nós mesmos”12 . Todavia, esse acerto está focado no romance realista do século XIX, especialmente na obra Tempos difíceis (1854), de Charles Dickens (1812-1870), em que Nussbaum percebeu que se mostrou bastante promissor não apenas em sua condição representativa de acesso a um modelo de passado possível, mas também por sua carga reflexiva quanto aos tipos presentes na trama. Ela elucida isso, dizendo: “na narrativa de Dickens[,] nos submergimos no cotidiano que se torna objeto de [nosso] mais profundo interesse e compreensão”13.
Assim, projetos de indivíduos e contornos de sujeitos tomam forma quando do contato com sua fundamental potência, o leitor, implicando uma volição para ação no espaço público. Nas palavras de Martha Nussbaum:
[…] o literário, o romance em específico, em geral apela para um leitor implícito que compartilha com os personagens certas esperanças, temperamentos e preocupações gerais e que, por isso, pode formar laços de identificação e simpatia com eles, mas que também vivem em um campo diferente e precisa ser informado sobre a situação concreta dos personagens. Dessa maneira, a própria estrutura da interação entre o texto e seu leitor implícito convida-o a ver como as características mutáveis da sociedade e das circunstâncias afetam a realização – ainda mais, a própria estrutura – das esperanças e desejos comuns14.
Nós, como leitores, advogamos pela condição empática no interior da literatura, que Martha Nussbaum definiu como imaginação participativa. A filósofa, no entanto, ressalta que a empatia não é só uma emoção, mas uma preparação para a emoção da compaixão. Em Paisajes del pensamiento: la inteligencia de las emociones, ela atentou para condição de entremeio que faz da empatia uma ponte para compaixão. Um exemplo interessante que ela apresenta está na presença do herói. Na obra em questão, Nussbaum mostra que o herói da tragédia grega comete erros, logo, não pode ser o modelo para compreender a compaixão, muito embora essa sentença permita questionar sobre aqueles heróis em que o destino estava traçado por uma profecia. O caminho e a própria experiência estariam condicionados à ação do destino e do tempo das consequências na vida do herói. Sendo assim, o racionalista presente em Tempos difíceis (1854), de Charles Dickens, que em sua condição de constante negação das emoções imprime um herói que tem a posse de seu destino, impede que a contingência seja uma variante necessária. Para Nussbaum:
[…] devemos admitir que o compromisso do romance enquanto gênero, bem como em seus elementos emocionais, é direcionado ao indivíduo, visto como qualitativamente distinto e separado. […] Embora o gênero enfatize a interdependência mútua das pessoas, mostrando um mundo onde todos estão envolvidos no bem e no mal uns dos outros, ele também insiste em separar a individualidade de cada pessoa e em vê-la como um centro separado de experiência15.
Ela continua sua argumentação dizendo:
[…] a arte narrativa tem o poder de nos fazer ver a vida dos diferentes com mais interesse do que o de um turista casual – com envolvimento e entendimento simpático […]. Chegamos a ver como as circunstâncias moldam não apenas as possibilidades de ação das pessoas, mas também suas aspirações e desejos, esperanças e medos. Tudo isso parece altamente pertinente às decisões que devemos tomar como cidadãos”16
A vida política contemporânea tem nos desafiado a não desumanizar o Outro, ainda que ele seja o fomentador da desumanização. A recusa pela empatia como emoção de atravessamento nos parece uma forma excessiva de confiança e, talvez, dependência nos meios técnicos e tecnológicos para modelar o comportamento humano. Citando Walt Witman, ela afirma: “sem a participação da imaginação literária, disse Witman, as coisas são grotescas, excêntricas, falham ou retrocedem completamente”17.
Aqui podemos assegurar que Nussbaum coloca na imaginação um peso decisivo quanto à sua potencialidade, a fim de contribuir decisivamente para a formação de um sujeito ativo e ativador com compromisso para mudanças na vida pública. Em Poetic Justice, a narrativa literária (ficção) aparece como cooperadora para justiça (prática e teórica) em particular e para o público em geral. Nas palavras de Nussbaum: “Defendo a imaginação literária justamente porque ela me parece um ingrediente essencial de uma postura ética que pede a nós que preocupemos com o bem de outras pessoas cujas vidas estão distantes da nossa”18. Ou seja,
[…] a literatura se concentra no possível, convidando o leitor a fazer perguntas sobre si mesmo. Aristóteles está certo. Ao contrário da maioria das obras históricas, as obras literárias convidam os leitores a se colocarem no lugar de pessoas muito diversas e a adquirir suas experiências19.
As relações que estabelecemos em conjunto nos permitem compreender, interpretar e agir no mundo. São essas condições de atuação que estariam constantemente tensionadas pela conjuntura histórica em que os sujeitos estão imersos. É preciso interrogar as normas sociais como produtoras de repressão e de limitações para vislumbrarmos a interpelação das emoções que não estariam delimitadas a uma condição de passividade, mas motora e produtora de ação, de mobilização e de mudança a partir do impacto da imaginação literária e, por conseguinte, da imaginação histórica.
Ao que parece, as emoções não são o oposto da racionalidade, mas sua outra face menos pragmática, menos encrudescida pela vontade de controle e de ordem das coisas. Elas não devem aparecer como contrastando os modos operacionais de orquestramento do mundo, mas como possibilidade de complexificação, que não são acidentais ou meros atributos da psique humana. Nesse sentido: “a narrativa e a imaginação literária não se opõem ao argumento racional, mas podem fornecer ingredientes essenciais para um argumento racional” 20.
A narratividade, portanto, é um elemento constitutivo dos enlaces entre história e emoções. É nela que as possibilidades de existência se ampliam como condição de relação analítica, estrutural e imaginativa. Endereçada a força explicativa que o texto historiográfico carrega, a narrativa ordena ao mesmo tempo em que resgata a antiga motivação histórica de contar histórias.
Não é estranho ao historiador o encontro entre a tradição oral e a tradição escrita, sobretudo aos praticantes da metodologia da história oral. No entanto, o que se perde nessa potência explicativa e analítica? As emoções ficam à deriva, sem lugar, sem presença, pois são perigosas à racionalidade científica. Na história do pensamento ocidental, elas, as emoções, receberam a devida atenção, sem equilíbrio, sem moderação, sem mediação, no romantismo europeu, em especial o de língua inglesa (britânicos e norte-americanos) e alemã, não atoa o racionalismo o atacou com toda sua capacidade cientificista. Nesse sentido, Nussbaum pretextou o seguinte: “acredito mais fortemente do que nunca que pensar sobre a narrativa tem o potencial de contribuir para o raciocínio público em geral”21.
Seria necessário um desvio longo para discutirmos o problema da narrativa nos discursos histórico e literário. Por isso, cabe, aqui, apenas ressaltar que o eclipse que a narrativa passa na escrita da história tornou seu retorno ainda mais intenso e necessário. O historiador percebeu, consciente ou inconscientemente, a duras crises, que sempre mobilizou algum tipo de instrumento narrativo, e embora a polêmica tenha tomado notoriedade apenas com a tese de 1971 de Hayden White, o tema já estava em debate, pelo menos, desde os anos 1960.
Paul Veyne, falecido recentemente – e deixo aqui minha homenagem –, apontava a fragilidade conceitual da história e sua negativa para perceber a presença das estruturas narrativas em seu ofício22. Foi Lucien Febvre quem admitiu, certa vez, que a procura por uma cientificidade no corpo da história, enquanto exercício da escrita, não poderia ser nossa única frente de ancoragem; seja por sua potência imaginativa, seja por sua potência investigativa. Nas palavras dele: “a história sabe que, jamais, determinará o aparelho incontrolável que, após um sono de vários séculos, lhe faria escutar, como que registrada para a eternidade, a própria voz do passado, colhida ao vivo. Ela interpreta. Organiza. Reconstitui e completa as respostas”23.
Um dos historiadores mais importante dos Annales, e um de seus fundadores, percebeu que essa procura desenfreada por uma cientificidade fragilizava mais que fortalecia o campo e o fazer da história. Em todas etapas do exercício historiográfico, estamos presentes como sujeitos que perseguem a imparcialidade, muito embora ela esteja em um horizonte dificilmente alcançado. No tocante a essa questão, o filósofo britânico Robin George Collingwood afirmou que: “[a] imparcialidade pode significar ausência de prenoções. Por prenoções, entendo a tendência de prejudicar as questões ou resolvê-las antes das evidências”24. Nesse sentido, Luiz Costa Lima é bem certeiro quando afirma que: “discutir o estatuto narrativo da história implica afastá-la do sonho iluminista de uma cientificização cada vez mais abrangente”25.
Os narrativistas, considerados radicais por alguns historiadores, devido à declaração de que tudo que está no mundo só é possível pela linguagem – estou parafraseando, evidentemente –, combatiam “um ambiente acadêmico saturado de modelos de cientificidade, como eram os departamentos norte-americanos de ciências sociais, nas décadas de 60 e 70, o desafio lançado aos pensadores da história foi o da adequação de suas disciplinas as exigências científicas”26.
Retomemos, assim, Martha Nussbaum, para quem: “a capacidade de imaginar as formas concretas como as pessoas diferentes de si lidam com a desvantagem parecia-nos ter um grande valor prático e público”27. Em princípio, não é advogar por um retorno da história magistra vitae, mas dar atenção ao que as histórias têm a nos oferecer, isto é, ao nos debruçarmos em histórias produzidas por historiadores ou romancistas, em sua diversidade de temas e formas, deveríamos nos permitir ser aqueles que passeiam pelo bosque da ficção, em outras palavras, aqueles que se perdem ao se encontrar no Outro, ou ainda, “tomar em conta a experiência do outro”28. Dessa maneira, se a experiência estética é um “jogo de linguagens”, como afirmou Wittgeinstein apud Lima29, “ela não acolhe, revela e desfaz algo encoberto. O que se passa nela ocorre na superfície das palavras sintaticamente coordenadas, portanto entre elas e não em seu interior”.
A significação da experiência estética, em vista disso, não está encoberta para que hermeneuticamente tenhamos o trabalho de desvendar o que ali pode estar escondido. O tesouro perseguido está visto a olhos nus, bastando que a mobilização do seu repertório cultural seja movimentada e ativada como condição última de apropriação e compreensão. Isso denota uma oportunidade singular de se chegar às emotividades impressas e subscritas. Esse paradoxo envolve que saibamos, também, reconhecer a forma literária que estamos enfrentando no ato de leitura.
A gestalt, nesse sentido, recorta o que pode entrelaçar a vontade de saber e a vontade de sentir. Assim, jamais o todo de si mesmo pode se dissolver ao obscuro e a seu vínculo com a realidade corporal, de forma que a redução fenomenológica não poderia chegar a ser completa. Operamos, portanto, em uma redução ingênua; o limite do cogito cartesiano é, em síntese, o fundo obscuro presente em cada ser cogitante. Wolfgang Iser nos ajuda a compreender esse desenvolvimento gestáltico da seguinte maneira:
[…] esses atos formadores transcendem ou põem fora de circulação referências estabilizadas; em consequência, a relação entre envolvimento e distância, tal como criada a partir da discrepância surgida no processo de formação de Gestalten, revela-se indispensável para o caráter comunicativo da experiência estética30.
O processo de identificação e apropriação que exige do leitor uma abertura para que seja possível esse encontro com o texto, com sua história, com suas estruturas discursivas, precisa levar em conta que a literatura, como Martha Nussbaum gosta de dizer, é subversiva31, é inimiga de uma certa economia política estritamente racionalista e cientificista. Ela, literatura, complexifica as condições de existência pela possibilidade de desmantelar a ordem, claramente, normativa, e a sua “tabula form”.
Ao que parece, suas manifestações são subestimadas pelo tempo e pelo interesse exigidos do leitor. O esforço exigido é mais que prático, é também imaginativo. A imaginação literária pode ser um instrumento individual e coletivo para, inclusive, colaborar com a transformação da sociedade contemporânea. Em outras palavras:
[…] a literatura expressa, em sua estrutura e seus modos de falar, um sentido de vida incompatível com a visão de mundo incorporada nos textos de economia política; e o engajamento com ela formam a imaginação e os desejos de uma maneira que subverte a norma de racionalidade dessa ciência32.
Para Martha Nussbaum, o conceito de imaginação literária é entendido como a capacidade de ultrapassar os limites apreciativos e de fruição do texto ficcional para apontar sua potência desafiadora a ordenação do mundo da vida. A autora compreende, desse modo, a imaginação literária como imaginação pública, ou seja, como potencializadora de atos deliberativos na vida prática, presentes também nas instituições sociais, orientando as forças que podem criar possibilidades de fomentar a qualidade de vida.
A autodeterminação da força imaginativa implica criar a possibilidade de fomentar um outro mundo em que a liberdade deixa de ser um conceito limitado ao potencial “monetário” para ser um potencial imaginativo. A finalidade seria dada nas contribuições do texto ficcional para moral e para vida política. Não obstante, a história, para Nussbaum, carregaria esse potencial sem, no entanto, trazer a dimensão do prazer do texto.
Neste ponto, há implicações controversas. Podemos pensar, por exemplo, que os romances históricos e a própria historiografia como capazes de agregar essas investidas, com algum grau de proposição, estejam ancoradas no saber-sabor em suas dimensões cognitiva e estética. A imaginação como ato de fingir permitiria, a vista disso, uma viagem entre o que é fenômeno e o que é construção de sentido. A relação entre linguagem e fenômeno promoveria à capacidade imaginativa condições possíveis de reinventar a vida, caso as condições sociopolíticas fossem outras.
Se, por um lado, os “trabalhos históricos e biográficos nos fornecem informações empíricas que são essenciais para uma boa escolha” 33, por outro, essa compreensão aristotélica de uma história que apenas mostra os fatos foi revista pelas “novas” maneiras de produzir conhecimento histórico e suas sucessivas crises. Uma história, inclusive, preocupada em pensar as emoções enquanto motivadoras de fenômenos históricos. Em vista disso, a afirmação de Nussbaum nos parece pertinente quando diz: “eles podem, de fato, também despertar as formas relevantes de atividade imaginativa, se forem escritos em um estilo narrativo convidativo”34.
Antoine Prost35 disse, em algum momento, que reconhecer a imaginação como posição essencial para o conhecimento histórico é colocar-se no lugar de quem é objeto de estudo e imaginar as situações e os homens. A imaginação literária e a imaginação histórica se aproximam na condição de deixar evidente que a história e sua capacidade inventiva são limitadas pelo paradigma da verdade. Peter Burke, por sua vez, acentuou, nesse sentido, que
[…] os historiadores não são livres para inventar seus personagens, ou mesmo as palavras e os pensamentos de seus personagens, além de ser improvável que seja capaz de condensar os problemas de uma época na narrativa sobre uma família como frequentemente fizeram os romancistas36.
Temos esta premissa muito clara: que seria impossível ao historiador a invenção. No entanto, pode ser um fator limitador condicionado a uma preocupação com o acontecimento como fato histórico. O fato, como ele mesmo, sendo a impossibilidade de acessar a indeterminação, não seria o lugar por excelência do conhecimento histórico? E assim sendo, a proximidade com a imaginação literária não seria mais estreita do que pretendíamos? Conforme Nussbaum: “o romance é uma forma viva e, de fato, ainda é a forma ficcional central, moralmente séria, e popularmente envolvente em nossa cultura”37.
Retomando a questão da forma, ela assinala o estado de movimento do texto ficcional, o que nos faz pensar, com Hayden White, que a história também possui formas vivas que se movimentam, ao mesmo tempo que não perde seu espírito analítico e a imaginação construtiva, como conceitua Collingwood. Como alegou Hayden White: “vivenciamos ficcionalização da história como uma explicação pelo mesmo motivo que vivenciamos a grande ficção como iluminação de um mundo que habitamos juntamente com o autor”38.
Estar aberto a perceber que o discurso ficcional não é simplesmente fruto de uma imaginação inumana é entender que sua missão possível é tornar familiar aquilo que seria não familiar, procurar dar vida à possibilidade expandida da experiência humana, isto é, reelaborar a própria condição imaginativa como processo de decodificação e recodificação da vida39.
Isto promoveria, dessa forma, a possibilidade de questionar, inclusive, a moral vigente em que as normas e normatividades enclausuram as potencialidades criativas e inventivas da experiência histórica, ou seja, imaginar não seria construir mundos intangíveis, mas, a partir da própria condição do vivido e da vivência, perfurar a crosta realista para ampliar as possibilidades geradas no interior do espírito e nas modalidades da linguagem figurativa. Nas palavras de Martha Nussbaum:
Romances (pelo menos romances realistas do tipo que considerarei) apresentam formas persistentes de necessidade e desejo humanos realizados em situações sociais específicas. Essas situações frequentemente, na verdade geralmente, diferem bastante das do próprio leitor. Os romances, reconhecendo isso, em geral constroem e falam a um leitor implícito que compartilha com os personagens certas esperanças, medos e preocupações humanas gerais, e que por isso é capaz de formar laços de identificação e simpatia com eles, mas que também é situado em outro lugar e precisa ser informado sobre a situação concreta dos personagens. Dessa forma, a própria estrutura da interação entre o texto e seu leitor imaginado convida o leitor a ver como as características mutáveis da sociedade e da circunstância influenciam a realização de esperanças e desejos compartilhados – e também, de fato, em sua própria estrutura40.
A eticidade, nesse tocante, tornada potência constitutiva da experiência da leitura, articula, assim, a legitimidade da razoabilidade formal e o repertório cultural do leitor, que se apresenta como interlocutor necessário à diversidade interpretativa. É preciso dizer, em conformidade com Luiz Costa Lima, que o próprio ato interpretativo em sua multivocidade também se depara com uma forma de controle que ora permite a expansão com um mergulho indireto na opacidade do realismo, ora cerceia essa mesma opacidade pelo grau elevado de indeterminação que indispõe a maneira mesma de experimentar os muitos meios de leitura: ordinária e/ou técnica41.
Dessa forma, o romance constrói um paradigma de estilo de raciocínio ético que é específico do contexto sem ser relativista, no qual obtemos uma prescrição concreta potencialmente universalizável ao trazer uma ideia geral de florescimento humano para se referir a uma situação concreta, a qual somos convidados a entrar pela imaginação42.
Nessa perspectiva, a responsabilidade compartilhada requer que o leitor e o autor discordem, tornando o choque entre o leitor real e o leitor implícito uma potência cognitiva e emocional com um centro de equilíbrio e capacidade mediadora pela maneira como o discurso pode ser eticamente recebido. Sobre isso, Wayne Booth argumentou que:
[…] o ato de ler e avaliar o que se leu é eticamente valioso justamente porque é construído de uma maneira que exige imersão e conversa crítica, comparação do que se leu tanto com a própria experiência em desdobramento quanto com as respostas e argumentos de outros leitores43.
CONCLUSÃO
Esse argumento nos leva a retomar uma das questões fundamentais deste ensaio: a relação entre cognição e emotividade, entre razão e emoção em sua potencialidade imaginativa. Procuramos discutir, junto a Martha Nussbaum, que a vida pública como espaço deliberativo coletivo e também individual, ao se abrir para imaginação literária, adquire uma força humana, isto é, desintegra a lógica desumana e fria, seja de lei, seja do número, potencializando a capacidade deliberativa como phronesis, ou seja, como capacidade de promover um julgamento equilibrado em que a vida e o vivido não são meros dados subordinados à crueza da racionalidade histórica, mas potenciais constitutivas do fazer e do agir que não oneram os sujeitos em sua existência, mas que resgatam a potencialidade do debate, do democrático, do sensível e da imaginação histórica.
NOTAS
1 Dados autorais.
2 NUSSBAUM, M. Poetic Justice. The literary Imagination and Public Life. Boston: Beacon Press, 1995.
3 LIMA, L. C. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 225.
4 RICOEUR, P. Do texto à acção. Tradução de Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando. Porto: Rés, 1989.
5 NUSSBAUM, 1995, p. 57.
6 NUSSBAUM, 1995, p. 68.
7 NUSSBAUM, 1995, p. 71.
8 COLLINGWOOD, R. G. Religion and Philosophy. London. Macmillan and Co., 1916. p. 136.
9 NUSSBAUM, M. C. Paisajes del pensamiento: las inteligencias de las emociones. Barcelona: Paidós, 2008. p. 168.
10 NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. p. 30.
11 GALLAGHER, C. Ficção. In: MORETTI, F. (org.). A cultura do romance. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
12 NUSSBAUM, 1995, p. 18.
13 NUSSBAUM, 1995, p. 34.
14 NUSSBAUM, Martha C. Cultivating humanity. S. l.: Harvard University Press, 1997. p. 32.
15 NUSSBAUM, 1997, p. 105.
16 NUSSBAUM, 1997, p. 88.
17 NUSSBAUM, 1995, p. 13.
18 NUSSBAUM, 1995, 16.
19 NUSSBAUM, 1997, p. 30.
20 NUSSBAUM, 1995, p. 13.
21 NUSSBAUM, 1995, p. 15.
22 VEYNE, P. O inventário das diferenças. São Paulo: Brasiliense, 1983.
23 LIMA, L. C. Clio em questão: A narrativa na escrita da história. In: PRADO JUNIOR, B. et al. Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1988. p. 65.
24 COLLINGWOOD, R. G. The principles of history: and other writings in philosophy of history (s.l).: Oxford University Press, 1999. p. 209.
25 LIMA, 1988, p. 71-72.
26 LIMA, 1988, p. 71.
27 NUSSBAUM, 1995, p. 16.
28 CERTEAU, M. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 10.
29 LIMA, L. C. A ousadia do poema: ensaios sobre a poesia moderna e contemporânea brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2022. p. 11-12.
30 ISER, W. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, 1999. v. 2. p. 54.
31 NUSSBAUM, 1995, p. 1.
32 NUSSBAUM, 1995, p. 1.
33 NUSSBAUM, 1995, p. 5.
34 NUSSBAUM, 1995, p. 5.
35 PROST, A. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 153.
36 BURKE, P. A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: BURKE, P. (org.). A escrita da história. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 349.
37 NUSSBAUM, 1995, p. 6.
38 WHITE, H. O texto histórico como artefato literário. In: WHITE, H. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p. 116.
39 WHITE, 2014.
40 NUSSBAUM, 1995, p. 7.
41 LIMA, 2006.
42 NUSSBAUM, 1995, p. 8.
43 BOOTH apud NUSSBAUM, 1995, p. 9.
RESUMO
Em Poetic Justice, Martha Nussbaum nos permitiu perceber que o espaço imaginativo comporta modelos de realidade que nos convidam a conhecer a nós mesmos pela experiência dos Outros. A literatura, nesse sentido, permitir-nos-ia experimentar de outra forma a vitalidade, os impulsos, os entusiasmos, a época e, por conseguinte, a experiência histórica. Assim, seja como condição possível de observação ou como possibilidade de experimentação emocional, a ficção carrega consigo essas experiências particulares partilhadas de maneira especulativa, criativa e imaginativa. Nesse sentido, a metodologia que ampara esse ensaio é a hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur. Nosso objetivo é discutir a condição de acesso a um modelo de passado possível que congratule ficção, história e emoções a partir da relação estabelecida entre imaginação literária e imaginação histórica.
REFERÊNCIAS
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CERTEAU, M. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 2006. COLLINGWOOD, R. G. Religion and Philosophy. London: Macmillan and Co., 1916.
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Edson Silva de Lima é Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). E-mail: edson_his@yahoo.com.br