ENSAIO

Uma fábula muito atual, sobre “Homem de papel”

Imagem: Reprodução.

Evando Nascimento

O romance Homem de Papel (ed. Record), de João Almino, faz convergir, de modo irônico, dois tempos e espaços de conciliação improvável: o Rio de Janeiro do século XIX e a Brasília do século XXI. Ambas são capitais federais, porém de tempos distintos, embora com alguns problemas similares.

O que une as duas capitais é a figura do Conselheiro Aires, personagem de dois romances de Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Trata-se, portanto, de figura imortal, pois personagens não morrem, apesar de terem biografia com começo, meio e fim. Continuam vivendo nas páginas que os imortalizaram. Uma vida de fantasma, é claro, como compete aos seres imaginários.

Ao trazer um dos personagens machadianos mais célebres para nosso século, o romancista, diplomata e membro da ABL, vencedor de prêmios como o Casa de Las Américas, de Cuba (com o belo As Estações do amor, recentemente reeditado), João Almino lhe dá nova vida como “Homem de Papel”. Um homem habitante das páginas do exemplar de Memorial de Aires pertencente a Flor, uma trigêmea de Hugo e Miguel, que inicia a história como candidata ao cargo de diplomata.

Tal como em Esaú e Jacó Flora se encontrava indecisa entre os irmãos Pedro e Paulo, no livro de Almino a personagem Flor se divide entre o colega apelidado como Zeus e o marido Cássio. Comparece então um tema frequente em Machado, o do amor dúplice, que pode ou não se concretizar como adultério. Mas a ficção de Almino não traz julgamento moral a esse respeito, apenas acompanha os conflitos inerentes à duplicidade.

A essa trama íntima estão associadas as tensões da vida pública atual: um país em que a capital federal é tomada por políticos inescrupulosos, os quais administram a coisa pública como bem privado. Todos os dias nos são dados exemplos de conflitos partidários sem real viés social, do mesmo modo que, em Esaú e Jacó, a disputa entre o Pedro monarquista e o Paulo republicano não estava necessariamente ligada ao bem comum.

O estilo da narrativa de Homem de Papel é clássico, as frases são absolutamente claras em sua expressão, mas isso só faz realçar a complexidade do enredo, em que se entrelaçam a vida íntima e a social, as quais se refletem num espelho distorcido. É ficção de alto calibre, que consegue divertir (há muitas passagens de fino humor), fazer refletir e emocionar. E isso machadianamente, verificando a cada passo se os leitores e leitoras estão atentos ao rumo dos acontecimentos, dentro e fora da história…

Não se trata de mero pastiche dos romances do autor das Memórias póstumas de Brás Cubas, mas sim de reinvenção. Ou do que chamo de estética da emulação. Emulação que o próprio Machado (contemporâneo de Van Gogh, grande emulador no plano das artes) praticou ao longo de sua vasta produção literária em relação a Shakespeare, Dante, Alencar, Goethe e muitos outros. Estamos, portanto, num jogo de reflexos em que autores (e autoras) de séculos distintos dialogam entre si, de forma explícita ou implícita, por meio de uma rica transtextualidade ficcional (para quem quiser se aprofundar no dispositivo ficcional da emulação machadiana, recomendo o brilhante Machado de Assis: A poética da emulação, ed. Civilização Brasileira, de João Cezar de Castro Rocha, que tive o prazer de editar na Coleção Contemporânea: Literatura, Filosofia & Artes. Não por acaso, minha amizade com Castro Rocha se iniciou, duas décadas atrás, em torno de um diálogo fértil em torno desse termo herdado da retórica clássica e reinterpretado na modernidade pós-romântica: a emulação. Prefiro utilizar estética da emulação, em vez de poética, e essa distinção traz consequências conceituais interessantes que não há espaço para expor aqui).

Nos últimos anos, outros escritores retomaram histórias do Bruxo do Cosme Velho, o que nem de longe ofusca a originalidade do Homem de papel. Sim, querida leitora, amável leitor, a Literatura continua existindo, a despeito dos que tentam proclamar sua morte. Ao menos nas melhores páginas, personagens continuam a viver perpetuamente, mesmo quando parecem já ter partido. Destaco o seguinte trecho metalinguístico, em que o personagem-narrador Aires reflete sobre o gênero romanesco e o sentimento amoroso, dentro do romance de João Almino: “Aqui eu poderia desfiar todo um romance. O sentido do amor muda com o passar dos anos, na maturidade não é tão claro quanto na juventude. Não digo que o amor seja para sempre; nem o contrário. As relações íntimas são complexas. O romance entre Flor e Cássio havia tido vários capítulos, de aceitação e conhecimento mútuo, de disputa, ciúme e acomodação” (p. 376).

Não se deve desistir da literatura contemporânea, nacional ou não. Há muitos livros fracos, mas há também outros tantos preciosos. Os romances de Almino dão prova consistente da existência desses últimos.

Evando Nascimento é escritor, ensaísta e artista visual. Autor do romance Diários de Vincent: Impressões do estrangeiro (ed. Circuito) e do livro de ensaios O pensamento vegetal: a literatura e as plantas (ed. Civilização Brasileira), entre outros.

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