NÃO TIRES A BELEZA DO MEU FILHO
Não tires a beleza do meu filho.
Senhor, eu rogo, não tires a beleza do meu filho.
Ele dormia no alpendre, na orla do sol,
na vastidão e no segredo da tarde.
E ele indagava ao mar o sonho das ondas
na manhã de tormenta, contra o negror das rochas,
e ele indagava às águas o sono do mar,
na espantosa calmaria dos recifes
quando o mergulho da gaivota era seu próprio grito
e a ave então se transformava em som
no agudo silêncio e no vazio da queda.
E ele catava restos de marisco e pó de conchas
enquanto exércitos marchavam na penumbra antiga
e a lenta ruína desarmava os muros das cidades,
e o desatar do mundo conspirava contra a hora,
a simples hora de meu filho absorto na matéria amorfa
que seus recém-criados dedos amoldavam,
enquanto eu existia à margem de seu halo.
E ele dormia no alpendre, na orla do sol,
e eu conhecia desde o início dos tempos
a linha tênue de sua face.
Não tires, Senhor, a beleza de meu filho.
Em meu tempo eu falhei. Não construí o templo,
não desbastei o dorso do deserto,
não reuni as linhas das fiandeiras,
atraiçoei o enigma dos oráculos,
desperdicei cada palavra confiada
à urna que me deste, aquele dia,
quando eu beijava a curva do riacho
e ergui o rosto à repentina luz.
Traí meu pai. Traí meu próprio pai
E deixei minha mãe lavrar sozinha
enquanto os muros da casa se arruinavam
e estranhos gritavam na sombra do pomar.
Arranca de mim, Senhor, a Tua dádiva,
e marca minha fronte para o escárnio,
e me veste na túnica do pó,
mas não tires a beleza do meu filho.
Ele indagava ao mar meu paradeiro
quando longe eu vagava, entre as derivas,
e ele andava nas sendas noite afora
chamando as constelações do leste
pelos nomes que há muito eu lhe ensinara.
Como era belo o filho ao divagar dos astros,
o cajado marcando a terra cega,
sua respiração maior que a aurora,
e o imenso trajeto futuro de seus pés
abrindo-se no mundo como todos os sonhos de todos os cartógrafos.
E ele chorava ao recordar meu rosto
e minha voz lhe ensinando o caminho das romãs
e as manhãs de inconsciente alegria em que aguardávamos
a suave turbulência dos pássaros,
mas não era o choro amargo dos velhos,
não era o choro do bagaço do corpo,
e sim o choro-bálsamo nos jardins da face,
onde a dor é como o adorno da chuva.
E ele andará o mundo em busca de meu vulto
e jamais o encontrará em sua longa andança,
mas como é belo o filho enquanto anda!
Tampouco ele recordará, Senhor, aquele dia
em que nós dois, os dois apenas, persistíamos
na orla de um entardecer veloz,
em que ele, adormecido, pertencia à tarde
e eu, desperto, o contemplava e pertencia à noite
e à nossa volta todas as estações do dia se alongavam
como se a longe manhã fosse um primórdio.
E tudo isso há de perder-se para os homens,
e tudo isso há de perder-se para os anjos,
se tirares a beleza de meu filho.
Guarda-a, Senhor, onde eu puder achá-la.
§
A MORTE DO DEUS
Não choreis por mim, ó homens de coração amargo,
Não choreis por mim, ó crianças e anciãos,
Não choreis por mim, ó moças que inclinais o rosto à sombra do poço e dais de beber ao viajante exausto e poeirento;
Não choreis por mim, ó matronas que sonhais com a imagem de vosso noivo de antanho, aquele que se foi para jamais retornar;
Não choreis por mim, ó povo de Jerusalém e Gaza, ó guerreiros empedernidos e mães e avós de órfãos,
Não choreis por mim, ó habitantes das duas Tebas, ó vastas tribos desaparecidas e reencontradas,
Não choreis por mim, ó caminhantes sob o sol que em terras ainda sem nome mergulhais as mãos no sangue tépido de grandes felinos,
Não choreis por mim, ó filhos de meus filhos, ó filhas das mulheres que me amaram!
Não choreis por minha carne rasgada, por minha linfa derramada nas pedras do bosque sacro,
Não choreis pelos pedaços de meu corpo que agora circulam de mão em mão entre os grandes vultos dançantes
E que hão de encher os sulcos da terra e fermentar os lugares secretos da noite!
Eu não vivi entre vós, ó meus amados carpidores, eu não vivi entre vós,
Não era eu quem passava pela orla das matas ao entardecer, tocando a flauta antiga,
Tampouco eu quem sussurrava ao vosso ouvido a rápida resposta, o temerário mas certeiro curso de ação,
Não era de fato minha a figura que vistes disparar flechas contra cães e cavalos no dia da ira,
Tampouco eu era aquele que tocou a testa do inválido e o fez andar de novo na plena exuberância de seu próprio ser;
Ó meus irmãos! Ó meus filhos! Aquilo era apenas minha imagem,
O espectro de um espectro, eis quem andou entre vós.
Pois eu sou muitos, sou as muitíssimas legiões, eu sou aqueles que me cercaram na boca da noite e me arrastaram à beira do fogo e arrancaram meus braços e pernas e beberam na fonte do meu peito,
Eu sou aqueles, eu sou cada um daqueles que agora dançam na noite banhados no sangue de um deus, deste deus, deste próprio deus,
Eu sou Aquele que Veio Destroçar a Si Mesmo.
José Francisco Botelho nasceu em Bagé (RS), em 1980. É jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema, havendo colaborado com diversos veículos de circulação nacional. Autor de “A Árvore que Falava Aramaico” (Zouk, 2011) e “Cavalos de Cronos” (Zouk, 2018). Como tradutor, recebeu dois troféus Jabuti: um por sua tradução de “Contos da Cantuária” (Companhia das Letras) em 2014, e outro por sua tradução de “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, em 2017.
Poesias belíssimas.