Léa Masina
Porto Alegre – RS
Meu primeiro contato com a obra de Alcides Maya ocorreu em 1978 durante o Mestrado em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação de Guilhermino Cesar. Com a generosidade que lhe era peculiar, recebi do Mestre a sugestão de escrever sobre autor e obra, com vistas à tese final exigida pelo curso.
O escritor me era totalmente desconhecido, o que se justifica pelo esquecimento a que sua obra foi relegada pelo advento do modernismo literário com seu ímpeto renovador. Outras circunstâncias, relacionadas à vida do escritor, contribuíram também para que seu romance “Ruínas vivas” (1910) e seus livros de contos “Tapera” ( 1911 ) e “Alma Bárbara” (1922 ), edições de há muito, esgotadas, não tivessem sido reeditados.
Não estou sozinha no ato, agora quase simbólico, de escrever sobre Maya. Professores, estudiosos e intelectuais dedicaram-se a estudar, discutir e divulgar o percurso crítico do escritor, ensaísta, crítico, ficcionista, jornalista, além de homem político que abrilhantou, como poucos, a literatura do Rio Grande do Sul. E, por ter testemunhado as dificuldades e o empenho em tornar sua obra disponível aos leitores, agradeço ao Professor Carlos Jorge Appel e à Editora Movimento por reeditá-la nos anos 90.
Anos depois, a pesquisa que realizei para o Doutorado em Literatura Comparada me fez ver o quanto a obra ficcional de Maya acolheu o influxo das literaturas do Prata. Como escrevi à época, é forte a intertextualidade entre sua ficção e a literatura de escritores uruguaios e argentinos, em especial dos textos fundadores de Sarmiento e José Hernández e da literatura das fronteiras. Nos primórdios do século XX, essa proximidade era rechaçada pela crítica brasileira, purista e lusófona, preocupada pela “contaminação” advinda das vertentes platinas. Em 1998, escrevi no ensaio “Alcides Maya, um sátiro na terra do Currupira” :
“Vivendo sob condições histórico-políticas semelhantes e sofrendo a mesma natureza de influxos, as culturas do Prata produziram obras literárias afinadas com os gostos e anseios das comunidades discursivas do Uruguai, da Argentina e do sul do Brasil. A gauchesca foi, portanto, a reação crioula da cultura nova, no ímpeto de elaborar a influência do colonizador. Tornou-se, depois, a forma de expressão de um modo de vida – a do gaúcho da campanha – contraposto ao cidadão da urbe – que tendia a desaparecer pela transformação dos modos de produção nas estâncias.” (p.194).
É descabida a ideia, não raro disseminada entre leitores, de que a obra ficcional de Alcides Maya é reacionária e passadista. Essa visão tem origem na postura ideológica modernista e nacionalista que os textos de Maya então já contrariavam. Além disso, a tendência nostálgica que os caracteriza relaciona-se ao Simbolismo da passagem do século XIX para o XX. E, conforme arrisquei dizer, em outros momentos, a nostalgia alcidiana tem a ver com certo barroquismo de natureza fractal, comum às literaturas de origem espanhola, como as platinas.
A presença de Alcides Maya na literatura não se limitou à ficção, pois escreveu artigos críticos em periódicos e ensaios. Dentre estes, seu discurso de posse na Academia Brasileira de Literatura, “Romantismo e Naturalismo na obra de Aluísio de Azevedo” (1911). Mas o ponto mais alto de sua ensaística é “Machado de Assis: algumas notas sobre o humour” (1912), insuperável na interpretação do “humour” machadiano, sob o influxo da literatura inglesa de Sterne e Swift.
Mencionar a figura ímpar de Alcides Maya obriga referir sua importante militância nos jornais da época. Verdadeiro “intermediador de culturas”, Maya realizou um trabalho expressivo como periodista, colaborando com ensaios e artigos em jornais locais, como “A Federação”, “A República”, “Correio do Povo”, “Jornal da Manhã”, “A Reforma”; e em “A noite” e “A República”, do Rio de Janeiro. Escreveu também para as principais revistas cariocas do seu tempo, como “Careta”, “Ilustração Brasileira” e a “Revista da Academia Brasileira de Letras”. Foi também um polemista reconhecido, haja vista a polêmica que sustentou com o Padre Gustavo Locher, no Correio do Povo, em 1898, sobre o título de “Vade Mecum Filosófico”. Em pequenos artigos, foram ali debatidas as teorias filosóficas da época, no confronto entre Spencer e Conte.
Não foram apenas as escolhas temáticas e o desejo de promover o progresso intelectual do Brasil que asseguraram ao escritor o papel de intermediador de culturas. Além de antecipar questões que hoje são caras à humanidade, Alcides Maya registrou as inquietações de uma época de mudanças, delas extraindo dimensões de perenidade. Sem grandes avanços ideológicos, aliás, impensáveis no clima cultural sul-rio-grandense da passagem do século, Maya ocupou o espaço intervalar entre dois modelos de pensamento: a tradição oitocentista e cientificista europeia e o modernismo que se prenunciava.
Maya foi um intelectual que elevou a sua arte à altura das ambições de uma época em que a cultura local buscava o pertencimento mediante a revisão das temáticas de origem.
Léa Masina é natural de Porto Alegre, Bacharel em Direito e Doutora em Literatura Comparada. Desde cedo, dedicou-se ao ensino da Literatura e à coordenação de atividades culturais no Estado e no Município. Dirigiu o Instituto Estadual do Livro e exerceu o magistério superior no Instituto de Letras da UFRGS. Atualmente, trabalha com escritores no aprimoramento de textos literários. Possui vários livros publicados e recebeu diversos prêmios e homenagens por sua atuação na vida literária e cultural da cidade, dentre os quais o Prêmio Açorianos (2023).