POESIA

Abismo

Imagem: Murilo Mendes por Ismael Nery, 1922.

Todos me indicam o caminho contrário.

Bebi na música
E fechei-me a sós com o sonho.

Quando acordei
Haviam destruído os gramofones
E a treva anterior envolvia a cidade.

O mar passava nos braços
Uma pulseira de mortos.

Abri um pé de magnólia
Dando sombra ao Minotauro.
Desde então
Meu peito é zona de guerra,
Fiz um eixo com as estrelas.

A poesia em paraquedas
Tanto desce como sobe.


(…) O arranjo é dos mais complexos, as fronteiras entre esses elementos estão longe de ser demarcadas, de modo que a impressão é de coisa inextricável. Imagens como a do mar com sua “pulseira de mortos” e, sobretudo, aquela do “pé de magnólia”, aberto pelo poeta para dar “sombra ao Minotauro”, são algumas das dificuldades a enfrentar. Mas há outras. Fala-se do despertar sobressaltado do poeta, depois do seu fechamento solitário com o sonho e a música; o sobressalto advém da consciência da tragédia coletiva como fato já consumado, diante da qual é forçoso posicionar-se (“Desde então meu peito é zona de guerra”).

Neste caso, o sentido parece ser mais ou menos claro: a atitude anterior do poeta, absorto em um mundo de delicadezas e de pura introspecção, perdeu todo o amparo que tinha, e àquele mundo ele deve dar adeus e preparar-se… para confrontar uma outra realidade, brutal e pública, de “gramofones destruídos” e de “trevas”. Essa tensão ríspida entre as esferas da intimidade e a realidade da guerra parece ser, portanto, a situação de fundo do poema, a qual não exclui um possível traço de autocrítica ou de sentimento de culpa (“Quando acordei…”). (…)

Murilo Marcondes de Moura

In: MOURA, Murilo Marcondes de. O mudo sitiado: a poesia brasileira e segunda guerra mundial. São Paulo: Editora 34, 2016.


Murilo Monteiro Mendes (Juiz de Fora, 13 de maio de 1901 — Lisboa, 13 de agosto de 1975) foi um poeta, prosador e crítico de artes plásticas brasileiro, católico expoente do surrealismo na literatura brasileira.(Wikipedia)

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