Helder Magalhães
Tagilde, Vizela – Portugal
As mãos delicadas da mãe, ainda que os sulcos dos tempos difíceis se fizessem presentes, faziam pender o jarro de loiça e a água escorria para a bacia do lavatório. Apesar da loiça lascada, permanecia no posto das suas funções, com a toalha bordada pela mãe dobrada sobre si. Eram manhãs tão límpidas que o rosto ondulava e a pele roçava pela face da água aquecida na lareira da cozinha. O sabão rosa acariciava-o, como se aquele Inverno, que fez o pai não voltar e o tio atravessar todas as terras rumo à França, florescesse Primavera.
Os olhos regressavam àquela caixa, como se ele próprio regressasse no tempo. Lembrava-se de acordar com os galos. Lembrava-se de esperar que a manhã chegasse e esta trouxesse o cheiro a café quente pelas frinchas da porta do quarto. Lembrava-se de vestir o fato azul-marinho, que a mãe havia brunido e dependurado na cadeira da escrivaninha. Lembrava-se da travessia até à vacaria e um quartilho de leite dona Ermelinda, se faz favor, que tenho pressa. Lembrava-se do entusiasmo a não caber-lhe nas botas ortopédicas que levava calçadas a caminho do posto de correios. Lembrava-se de entrar na vila e tudo lhe ser pertença. Lembrava-se de ouvir o nome dele, numa voz do outro lado do balcão, ao qual ele ainda não chegava. Lembrava-se do regresso pelo mesmo caminho e a mãe a dizer-lhe hoje podes não ir à escola e ele a apertar o grande embrulho de encontro ao peito.
Desembrulhava estas memórias e via-se feliz a abrir aquele pacote, com o registo de Paris e a letra a tremer do seu tio. Talvez fosse do frio, dizem que na França faz mais frio. Um postal a preto e branco mostrava uma torre de ferro, maior que as maiores árvores que ele alguma vez tinha visto, e no verso havia escrito saudade a letra ainda mais tremida. Talvez a saudade fizesse mais frio do que na França. Lembrava-se de, na tarde do dia seguinte, querer ser o primeiro a chegar à escola. Lembrava-se de esperar de pé à porta pela professora. Lembrava-se de lhe perguntar se ela sabia língua estrangeira, e ela responder-lhe que havia mais do que uma língua estrangeira. Graças a Deus que a professora Maria Eduarda sabia a língua estrangeira da França e rescreveu todo o manual, na língua que ele sabia. Não sabia o que seria de si, se a professora Maria Eduarda não soubesse a língua estrangeira que se falava na França. Todas as noites, depois dos deveres feitos e da lição estudada, toda a sua atenção virava-se para o manual, sem perder de vista cada um dos utensílios que o acompanhava, e com a voz do tio impressa no bilhete-postal: rapaz, este é o teu futuro; se aquela caixa continha o seu futuro, ele trataria de o aprender depressa e bem.
(…)
Helder Magalhães, Tagilde – Vizela, 1982. A poesia e a escrita surgem no caminho com uma perna às costas, algumas vezes literalmente. A imagem está sempre presente, tomando forma pela palavra, pela fotografia, pela cianotipia e, mais recentemente, pelo vídeo. O primeiro livro, Iluminado, publicado em 2008, trouxe muitos outros, uma boa parte costurados de raiz. Acredito que a pedra dá flor.