ENSAIO

Os diferentes modos de poetizar

Por Wilhelm Schulz, in the 26 October 1921 edition of 'Simplicissimus'

Friedrich Hölderlin
Lauffen – Alemanha
Tradução, comentários e notas de Ulisses Razzante Vaccari
In: Hölderlin, Friedrich. Fragmentos de poética e estética. São Paulo: Edusp, 2020.

Às vezes, entra-se em desacordo consigo mesmo quanto à excelência de homens diversos. Cada um tem sua perfeição e, junto com esta, sua própria fraqueza: um nos agrada pela simplicidade, pela precisão e pela ingenuidade com as quais avança em uma determinada direção, à qual ele se devota. Os momentos de sua vida se sucedem facilmente e sem interrupção, tudo tem nela seu lugar e seu tempo; nada oscila, nada se perturba e, como permanece no ordinário, raramente ele se expõe a um grande esforço e a uma grande dúvida. Determinado, claro, sempre igual e moderado, em sintonia com o lugar e com o momento, inteiramente no presente, ele nunca é inoportuno para nós se não estivermos demasiado tensos e exaltados; ele nos deixa tal como somos e nos damos facilmente com ele; não nos faz avançar muito e, na verdade, não nos interessamos muito por ele; mas não é isso o que desejamos para sempre e, particularmente sob o golpe de emoções violentas, não temos necessidade mais autêntica do que uma tal relação, com um objeto como este, no qual nos reencontramos o mais facilmente em equilíbrio, em paz e em lucidez.

Nomeamos esse caráter descrito de preferência natural, e nesta homenagem temos ao menos tanto direito quanto um dos sete sábios, que sustentou em sua língua e em seu modo de representação que tudo teria se originado da água’. Pois, se no mundo ético, a natureza, tal como ela realmente aparece, sempre parte em seu progresso das relações e modos de vida mais simples, então não é sem motivo que se deva chamar justamente esses caráteres simples de originários e mais naturais.

[…]2 está de acordo, então é necessário, para todos que quisessem expor sua opinião, expressar-se antes de tudo com conceitos e palavras precisos.

E isto vale também aqui.

O tom natural, essencialmente típico do poema épico, é já facilmente reconhecível pela sua aparência exterior.

Uma única passagem de Homero é suficiente para dizer aquilo que, no conjunto, pode ser dito deste tom. (Como em geral em um bom poema um período frasal pode representar a obra toda, o mesmo vale para este tom e este poema.) Eu escolheria para isso o discurso de Fénix, quando ele deseja convencer o furioso Aquiles a fazer as pazes com Agamenão, e ajudar novamente os aqueus em sua luta contra os troianos.

Dich auch macht’ich zum Manne, du gõlterlicher Achilles
Liebcnd mil herzlicher Treu; auch wolltest du nimmer mil andern
Weder zum Gasimahl gehn, noch dahcim in den Wohnungen essen
Eh ich selber dich nahm, auf meine Kniee dich selzend.
Und die zerchniitenc Speise dir reicht und den Becher dir vorhielt.
Oftmals hasl du das Kleid mir vorn am Busen befeuchlet
Wein aus dem Munde verschiiliend in unbchulflicher Kindheit.
Also hab’ich so manches durchslrebi und so manches erduldel
Deinethalb, ich bcdachte, wie eigene Kinder die Gõtler
Mir versagt, und wãhlte, du gõlterlicher Achilles
Dich zum Sohn, dass du einst vor traurigem Schicksal mich schirmtest,
Záhme dein grosses Herz. o Achilles! Nicht ja gezeimt dir
Unerbarmender Sinn: oft wenden sich selber die Golter
Die doch weit erhabener an Herrlichkeit, Ehr und Gewall sind3.

Qual és, Aquiles divino, nesta hora, por mim foste feito.
Por mim, com terna afeição. Ninguém mais ao teu lado querias.
Tanto como hóspede, fora, ou à mesa, nos nossos banquetes,
té que em meus joelhos, alfim, te pusesse, e cortasse os assados
em pedacinhos, com o que te saciasses e vinho te desse.
Não poucas vezes, de vinho, no peito molhaste-me a túnica.
Que borrifavas por cima de mim, com capricho de criança.
Por tua causa vê só que trabalhos sofri, que de incómodos!
Considerando que os deuses um filho me haviam negado.
Como se filho me fosses, Aquiles divino, criei-te,
Para que um dia amparar-me pudesses da ruína e do opróbrio.
Vamos, Aquiles, o orgulho domina; aspereza tão grande
Não fica bem para ti, pois se deixam dobrar até os deuses.
Com terem mais dignidade, poder superior e virtude4.

O tom detalhado, contínuo, verdadeiramente autêntico salta aos olhos.

E desse modo também nos momentos mais elevados o poema épico permanece ligado ao real. Quando se o examina em suas particularidades, é uma pintura de caracteres e, observada inteiramente deste ponto de vista, também a Ilíada se torna mais interessante e se esclarece em todas suas partes5. Em uma pintura de caracteres6, todos os traços eminentes do tom natural encontram também seu lugar essencial. Esta visível unidade sensível, de que tudo parte principalmente do herói e a ele retorna, de que o início, a catástrofe e as situações estão ligados a ele, de que todos os caracteres e situações em toda sua multiplicidade, numa relação com tudo aquilo que ocorre e que é dito, são direcionados, como os pontos sobre uma linha, para o momento em que o herói aparece em sua máxima individualidade, e esta unidade, como se pode facilmente ver, é possível somente em uma obra que tem como fim a exposição dos caracteres, uma obra em que a fonte principal reside no caractere principal.

Provém igualmente deste fim também a moderação tranquila, que é própria ao tom natural, que mostra os caracteres no interior de seus limites, de acordo com uma hierarquia delicadamente múltipla. Se, no gênero poético de que se trata aqui, o artista se mostra assim moderado, não é porque toma esse procedimento como o único possível poeticamente; e se, por exemplo, evita os extremos e os opostos, não é porque não precisará deles em nenhuma ocasião; ele bem sabe que há um lugar certo para extremos e opostos verdadeiramente poéticos dos personagens, dos acontecimentos, dos pensamentos, das paixões, das imagens, das sensações, mas, se os exclui, é porque não estão de acordo com a obra atual; ele precisava escolher um ponto de vista seguro, e este é então o indivíduo, o caráter de seu herói, que soube conquistar uma realidade e uma existência propriamente determinada por meio da natureza e da cultura. Mas mesmo essa individualidade do caractere necessariamente se perde nos extremos. Se Homero não tivesse tão tenra e cuidadosamente retirado seu fogoso Aquiles da balbúrdia, mal poderíamos diferenciar o filho dos deuses dos elementos que o cercam e, somente lá onde o encontramos sereno em sua tenda7, alegrando seu coração com a lira ao cantar os elevados feitos dos homens, enquanto seu Pátroclo, sentado à sua frente, espera em silêncio até que ele tenha terminado seu canto, somente aqui temos o jovem verdadeiramente diante dos olhos.

Portanto, é para manter a individualidade do caractere exposto, que no momento o interessa mais do que qualquer outra coisa, que o poeta épico é tão constantemente moderado.

E quando as circunstâncias em que os caracteres épicos se encontram são apresentadas muito exata e detalhadamente, isso não se dá novamente porque o poeta deposita todo seu valor poético nessas circunstâncias. Em outro caso, ele as evitaria até um certo grau; mas aqui, onde seu ponto de vista é a individualidade, a realidade e a existência determinada do caractere, também o mundo circundante deve aparecera partir desse ponto de vista. Que, a partir deste ponto de vista, os objetos circundantes apareçam com tal exatidão, experimentamos essa experiência em nós mesmos todas as vezes em que, em nossa própria tonalidade [Stimmung] mais ordinária, assistimos imperturbados às circunstâncias em que nós próprios vivemos.

Eu desejaria acrescentar ainda muitas coisas se não temesse aqui começar a divagar. Acrescento que este detalhamento das circunstâncias expostas é apenas o reflexo dos caracteres, na medida em que são apenas indivíduos em geral e não são ainda determinados de uma forma mais próxima. O ambiente pode ser adequado ao caractere ainda de uma outra forma. Na Ilíada, a individualidade de Aquiles, que certamente também é criada por isso, comunica-se mais ou menos a tudo aquilo que o circunda, e não apenas às circunstâncias, mas também aos caracteres. Nos torneios, organizados em honra ao falecido Pátroclo, quase todo o restante dos heróis do exército grego usa de modo mais ou menos evidente suas cores e, no fim, o velho Príamo, com toda sua dor. parece rejuvenescer diante dos heróis que eram, no entanto, seus inimigos.

Mas vê-se facilmente que estes últimos traços já excedem o tom natural tal como foi examinado e descrito até agora, em sua simples peculiaridade.

Nela, este tom exerce sobre nós uma ação favorável, por meio de seu detalhamento, sua alternância constante e sua efetividade.

[REFLEXÕES – COMENTÁRIO]

Essas reflexões ou aforismos devem muito provavelmente fazer parte do material que Hölderlin pretendia publicar na revista Iduna, projeto jamais levado a cabo, apesar de seus esforços. Diferentemente dos outros textos, que permaneceram fragmentários por questões ulteriores, estas reflexões são intencionalmente fragmentárias ou aforísticas, o que permite um diálogo com os Fragmentos de Friedrich Schlegel, August Schlegel, Schleiermacher e Novalis publicados na revista Atheniium em maio e julho de 1798. Um dos temas centrais das presentes reflexões é a relação entre entusiasmo (Begeisterung) e sobriedade (Niichternheit) na criação poética, cuja complementariedade e oposição remete à conexão entre sentimento e espírito. Nesse sentido, as presentes reflexões antecipam de certo modo os textos poetológicos escritos após 1800, nos quais Hölderlin desenvolve sua concepção de sobriedade como o elemento junônico em oposição ao pathos sagrado do império apolíneo. Hölderlin define o termo “sobriedade junônica” (Junonische Niichternheit’) na carta a Bõhlendorff de 4 de dezembro de 1801, reproduzida no comentário às Observações sobre Edipo e Antígona.

NOTAS

1 Referência à doutrina filosófica de Tales de Mileto (século vi a.C.). Como atesta Friedrich Beissner. nessa passagem do texto original. Hölderlin introduz uma tradução do Primeiro Hino Olímpico de Píndaro, numa tentativa de proporcionar um fundamento à originalidade do caráter do homem natural. Tanto a teoria de Tales como os versos de Píndaro fazem referência à ideia de que tudo provém da água. Nesse mesmo sentido, pode-se supor que, enquanto a água é o símbolo do caráter natural, o fogo o é do caráter heroico e o éter o do caráter ideal [n.t.].

2 O texto original apresenta aqui uma lacuna, provavelmente de duas páginas inteiras que se perderam [n.t.].

3 Não preciso dizer à maior parte dos leitores que se trata da tradução de Voss c para aqueles que não a conhecem confesso que também eu, para meu pesar, apenas vim a conhecê-la há pouco tempo [n.a]. A tradução de Johann Heinrich Voss a que se refere Hölderlin aqui foi publicada em 1793 [n.t.].

4 Trad. de Carlos Alberto Nunes em Ilíada. 2003. p. 227 [n.t.].

5 E se os acontecimentos e circunstâncias nos quais os caracteres se apresentam forem desenvolvidos muito detalhadamente, então isso se dá principalmente porque estes aparecem exatamente assim para os homens que vivem neles, sem ser substancialmente alterados nem desviados do tom e do modo habituais.

6 Como nota Jochen Schmidt (SlV //, pp. 1240-1241), Hölderlin segue aqui a forma tradicional de caracterização do Epos, descrita, por exemplo, no verbete “poema heroico” (Heldengedicht) da Teoria Geral das Belas-artes (1967 [1792], p. 500), de Johann Georg Sulzer [n.t.].

7 Cf. Homero, Ilíada, ix, vv. 185-191 [n.t.].

Ulisses Razzante Vaccari é formado em Filosofia pela Unesp (2004), mestre em Filosofia pela UFSCar (2008) e doutor em Filosofia pela USP (2012). Atualmente é professor adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Dentre suas publicações sobre romantismo e idealismo alemão, Hölderlin e Benjamin, destacam-se o livro “A poética do paradoxo: Estética e filosofia em Hölderlin” (EdUFSC, 2022) e a tradução “Fragmentos de poética e estética (Edusp, 2020).

Johann Christian Friedrich Hölderlin (Lauffen am Neckar, 20 de março de 1770 — Tübingen, 7 de junho de 1843) foi um filósofo, poeta lírico e romancista alemão (Wikipedia).

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