Carolina Albuquerque
Recife – PE
Era noite azul escura bem da bonita. Os balões coloridos anunciavam o período festivo favorito do povo da região, o São João. Havia fogueiras, estrelas que mais pareciam pequenos diamantes celestes. O fogão comunitário estava repleto de panelas com iguarias de milho. Joana sentiu o aroma e sua boca aguou. As crianças penduravam bandeirolas para decorar o centro da clareira, meninas em chita e babados, meninos com chapéu de palha. Avistou Januário junto às crianças, cirandando, com sorriso no rosto. Depois, Maria Preta e Juventina, sentadas à frente da casa de uma delas, rindo alto, alegres. Mais à frente, Pilar, moça feita. Ela, Joana, era um fantasma. Transitou entre os São João Matenses sem ser notada: Lá vou eu, peregrinar no futuro novamente. Tantas vezes já pedi que me tirassem essa maldição, meus Velhos, por que não me ouvem?
Na visão do futuro, Pilar, com um balde na cabeça, caminhava em direção ao rio, seguida por uma sombra escura. Joana sentiu o cocuruto arrepiar, o que haveria de ser aquele borrão com-e-sem-vida ao mesmo tempo? Quando a jovem se ajoelhou às margens do Prazeres, o que a perseguira até ali cresceu, ganhou mãos e a agarrou, apertando-a com força, sufocando-a. A filha de Maria Preta e Juventina tentou se desvencilhar. Falhou. Joana interveio: Solte, solte minha menina. A coisa, que não tinha feição nem corpo, não lhe obedeceu. Impotente, restava à caminhante do tempo assistir a cena, paralisada.
Depois de muito se debater contra o monstro sem rosto, Pilar escapou. Com olhos vazios, mergulhou no Prazeres. Ao emergir e tomar o caminho da clareira, já não era a mesma jovem. Deixara um rastro profundo de tristeza, marcas de dor: Como pode isso, ela é a minha menina feliz, o que está acontecendo, acabou de completar ano, deveria estar radiante.
Ainda presa às cenas do futuro, Joana retornou à São João da Mata, e, ao avistar os primeiros sinais do povoado, ficou atônita. A clareira estava ilhada, transformara-se em uma lagoa imensa. O corpo de Joana migrou para as profundezas e lá se encontrou com os moradores, lutando, assim como ela, para retornar à superfície. Com esforço, venceu a fundura, os habitantes fizeram o mesmo: Estão vivos, ainda bem. Em terra firme, foi transportada a outro quadrante e esse ela conhecia bem. Viu-se deitada ao lado do cajueiro de seu jardim, aquele que plantara quando ainda era só uma jovem construindo uma terra livre. Observou a si mesma deitada no chão, lábios brancos, olhos estatelados, pele roxa. Estava defronte à própria morte, não havia dúvidas. Medo não sentiu, as estradas que trilhamos em vida, hora ou outra, nos levam ao que ninguém jamais conseguirá escapar. A morte é obstinada, o destino dá a missão, ela vai lá e cumpre: Já passei dos setenta faz é tempo, vivi bastante. O que a preocupou foram as imagens anteriores, o sofrimento do seu povo, a tristeza de Pilar.
Despertou do futuro encharcada de suor. Levantou-se, alcançou a bacia com água fresca, lavou-se e tremelicou de frio. Era madrugada. Vestiu-se, calçou as botinas e se dirigiu à casa de Januário, ele precisava saber do que ela acabara de enxergar, não dava para esperar até amanhecer. Sabia que o amigo dormia e acordava com os pássaros, por isso imaginou que o despertaria no alto do sono. Contudo, ao se aproximar da casa do curandeiro, ele a esperava sentado em uma pequena banqueta de madeira, à frente da porta. Não posso nem dizer que estou surpresa, homem. Tenho a impressão de que você conhece a mim melhor do que eu mesma, por um acaso você agora também peregrina no tempo e vê o futuro? Januário sorriu e a convidou para entrar: Está frio, Joana. Velho e sereno não combinam. Venha, vou passar um café.
A residência do curandeiro não tinha cômodos, era uma espécie de pátio coberto. Havia janelas, quase sempre encobertas por cortininhas finas de palha. Próximas ao teto, em varais, repousavam as diversas ervas para benção, batismo e cura. Era um espaço quente na medida certa, como colo de mãe. Perto do fogão, duas cadeiras. Conte, irmã, o que lhe traz até aqui nessas horas da madrugada, parece assustada. Não há mal que não possamos remediar, Joana, seja lá o que você viu, fique tranquila. Joana relatou ao amigo tudo que vira. Na verdade, tudo não, que sobre a própria morte a peregrinadora não contou. A si mesma, disse que o velho já tinha preocupações demais. Era melhor poupá-lo da saudade antecipada, ele só há de saber de minha partida quando for inevitável e a morte já tiver feito o trabalho dela, melhor assim. Joana pôs fim ao relato: Foi isso, homem, o que se há de fazer?
Carolina Albuquerque, natural de Recife/PE, formou-se em Direito em 2013. Há doze anos, radicou-se em Brasília/DF, onde exerce, como Servidora Pública Federal, atividades jurídicas no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Devota às letras, revela ao mundo as histórias, principalmente de mulheres, que outros não quiseram, ou não ousaram, contar.