Cláudio Trasferetti
Indaiatuba – SP
No alto de uma árvore, três corvos conversavam sobre o que comeriam no café da manhã. Um deles falou que perto dali jazia um cavaleiro morto sob seu escudo. Devorá-lo não era tarefa fácil já que a seus pés estavam seus cães e, no espaço aéreo, seus falcões voavam em estado de alerta. Uns e outros faziam a segurança do dignitário. Eis que se aproxima uma moça em estado interessante, comparada pelos corvos a uma corça prenha. Ela beija as feridas do morto, coloca-o em suas costas e transporta o corpo até a beira do lago, onde o enterra. Findo o enterro, ela própria cai morta. Testemunhando toda a cena, em jejum, um dos corvos faz a seguinte prece:
– Que Deus conceda a todos os cavalheiros cães e falcões fiéis e amadas como essa!
Essa foi minha tentativa de resumir a letra da canção folclórica britânica “Three Ravens”, recolhida em 1611 por Thomas Ravenscroft. Presenciei, esses dias, a tocante execução dessa balada pela cantora lírica Fernanda Ribeiro, acompanhada pelo multi-instrumentista Guilherme de Camargo. Ela, que fala de vida, morte, fidelidade, natureza, me fez viajar no “milkshakespeare”, conversar com os corvos da London Tower, pensar na “zooliteratura” (que anda me rondando) e recordar o dia em que estive diante do quadro “Fim de Romance”, do brasileiro Antônio Parreiras, na Pinacoteca (vide ilustração a seguir).

Pensei que, para o cavaleiro do quadro, a prece do corvo da canção não foi atendida. O quadro não os mostra, mas assim como nós, existem corvos observando a situação. Talvez a fidelidade do cavalo, por maior que possa parecer, não seja tão eficiente quanto a de um certo número de cães e falcões. Com relação à mulher… Mas não: eis que vemos se aproximar, numa carroça, uma mulher, ávida por desfazer um mal-entendido. Chegou tarde demais! Vemos o corpo e o cavalo partindo com a carroça conduzida pela mulher em prantos. O que pensarão os corvos que assistem a essa partida? Terão pensamentos tão nobres quanto os dos corvos da canção?
Claudio Trasferetti é químico e leitor diletante.