POESIA

Poemas de Raquel Gaio

Imagem: Raquel Gaio

um homem inchado pela casa que ergueu

um homem que divide com a casa o mesmo odor, o mesmo cheiro

uma mulher com as mãos exaustas dessalgando a própria imagem

uma mulher cuja arquitetura está em processo de inventário

homem e mulher vagam pela casa com as gengivas devastadas

ambos possuem os corpos curvados, ambos foram tocados pela servidão que envolve a doença.

*

o homem caminha pelo deserto do meu corpo e se deita sobre as feridas que um dia que comungamos.

emudecida, eu ardo.

**

uma criança emerge de minha clavícula, ela detém a minha Escritura. é ela que sempre visita o campo desterrado da minha língua. ela que edificou na minha boca, pai, a tua água.

**

uma voz percorre o teu corpo, nela há ruídos, balbucios, murmúrios, você pede que eu traduza o que está sendo dito por debaixo de tua pele, digo que ainda não compreendo, e antes que eu tente novamente, um animal me toma a boca e sussurra em teu ouvido: deus é uma lâmina nascendo no canto de todas as bocas, deus é pedinte de pertencimento, deus é uma doença crônica, degenerativa, deus é um buraco negro.

*

como descansar sobre uma febre? pergunto para a Grande Cavidade

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somos nós, pai, os degolados pelo Sol. sempre temi a tua semelhança com o fogo. fiz de mim um mapa da tua linguagem, tua palavra sempre fez estatuamento em meu corpo. eu que sou um olhar apedrejado, dormirei em teu rosto, serei legenda violada em teu corpo.

*

como conceder asilo à Ruptura? pergunta a mulher com ferimentos arqueológicos.

Raquel Gaio nasceu e reside na cidade do Rio de Janeiro. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Desenvolve trabalhos através da fotografia, da performance e do objeto investigando o corpo e suas paisagens, inscrições e rastros. Escreveu os livros “com as patas no grande Hematoma” (Urutau, 2023), “manchar a memória do fogo” (Urutau, 2019) e “das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã” (Editora Patuá, 2018).

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