FICÇÃO

Rodothorulla Spp

Couch on the Porch, Cos Cob, Frederick Childe Hassam, 1914

Lucio Carvalho
Bagé – RS

Todo mundo pensa sempre no nome de Frede Møller-Kristensen ou no de Stephen Blumberg ou mesmo no de Laéssio Rodrigues de Oliveira quando quer se referir aos grandes ladrões de livros de que se tem notícia. Sim, porque dentre estes há os noticiados e os não noticiados — aqueles cuja atuação perfeita e sistemática logrou a maior glória dos grandes ladrões: o gesto imperceptível e o anonimato. No entanto são os desconhecidos, não reportados e nunca investigados entre todos os mais insondáveis, e não aqueles que se deixaram levar pela estupidez ou vaidade. Mais ou menos há uns dez anos, eu conheci uma dessas criaturas e tenho a dizer quanto a ela que nunca conheci ninguém mais encantadora, culta ou delicada.

Se alguém entrasse de surpresa em nosso ambiente de trabalho, eu duvido que a notasse. Mas como alguém com os predicados que acabei de elencar poderia não ser notada? É simples. Tudo isso faz uma pessoa discreta e não alguém frívolo ou presunçoso. Quantas vezes eu a vi cuidando dos leitores mais primários como se fossem doutores… Inúmeras! Essa era, aliás, a sua prática mais habitual, tanto que gastava, às vezes, horários excedentes lidando com o público idoso, que requer mais atenção e paciência, e acabava sendo quase sempre a última a passar a chave no cadeado que lacrava o salão de leitura.

Dito isto, não é preciso que me demore em mais descrições da sua aparência, a não ser que por baixo dos óculos guardava olhos tão indecifráveis quanto os da Gioconda, algo entre o condescendente e o desinteressado, como se estivesse sempre ocupada por outro pensamento. Assim me parecia quando eu a via de longe, porque de perto, ao menos comigo, tinha sempre atenção completa no que conversávamos, mesmo quando o assunto fosse uma trivialidade, um comentário a respeito do clima ou de uma remota programação para o final de semana que se aproximava.

Na sua estação de trabalho, ao contrário de nós, que mantínhamos porta-retratos com fotografias de viagens, familiares ou até mesmo animais de estimação, ela tinha voltadas para si imagens de desastres terríveis: os arcos internos da cúpula de Louvain que restaram do incêndio de 1914, a Holland House Library destruída num bombardeio em 1940, as inundações de Florença em 1966 e acho que apenas não tinha imagens de Alexandria porque nunca foram produzidas.

Quando as instalou ali, eu indaguei se não lhe parecia haver certa morbidez naquela coleção. “Não se preocupe, querido colega.. São apenas imagens. Lembranças do que temos de conservar”, explicou e eu acabei me convencendo de que, apesar de trágicas, eram imagens realmente emocionantes, não me pareceu estranho que ela as mantivesse como numa espécie de culto particular. E explicava a cada pessoa que lhe questionasse minúcias a respeito daqueles lugares destruídos com um detalhismo que só mesmo uma pessoa devotada aos livros poderia ter.

A essa altura, é possível que você deseje saber quando foi que eu soube que aquela dedicação guardava uma secundária e oculta. Como eu havia dito, tratava-se de uma ladra perfeita. Mas eu mesmo nunca soube até que precisei acompanhar a polícia nas buscas pelo seu desaparecimento e finalmente conheci onde morava e em que condições.

Houve um dia em que ela apareceu ao trabalho um pouco doente e usava luvas como se fosse lidar com a seção de antiguidades, quase nunca aberta por ninguém, exceto quando os seus clientes de idade avançada pediam-lhe para localizar aquelas brochuras que nem catalogadas estavam, mas que ela encontrava em questão de segundos. Desde ali, passou a usá-las sempre, mas aconteceu que um dia o Diretor do Departamento de Memória Cultural apareceu de surpresa e nos intimou a acompanhá-lo num almoço. Desconcertada, ela tirou as luvas que havia passado a usar corriqueiramente e então eu vi pela primeira vez as estranhas lesões de pele que ela ocultava. Vi, mas não comentei nada, lógico, pois esse era o nosso comportamento de sempre, discreto e respeitoso. Quando notou que eu havia percebido, jogou para mim olhares diferentes dos quais eu estava habituado. Não suplicantes, mas que pediam sem palavras que jamais eu tocasse naquele assunto. Uma dezena de anos de convívio diário ensinam essa linguagem silenciosa aos bibliotecários.

Nos dias posteriores, notei que ela respirava com dificuldade e ingeria muitos comprimidos. “É só um mero resfriado”, disse para nos tranquilizar, mas usou máscara toda aquela semana. Na outra segunda-feira, não retornou no seu horário de hábito e em mais três dias eu decidi acionar a polícia para investigar o seu paradeiro, já que nunca sequer se atrasara ao serviço.

No Departamento de Recursos Humanos, obtive para os investigadores o seu endereço e demais dados pessoais. Filha única, órfã na infância, nascida no interior e criada por freiras num remoto convento de uma cidade de colonização germânica, na serra gaúcha. Fomos até o seu endereço e lamentei muito quando os policiais precisaram arrombar a porta do seu apartamento muito bem localizado num bairro dos mais caros da cidade.

Em seu interior, nem um sinal da sua presença. A casa limpíssima e com os móveis brilhosos de lustro recente. No balcão da copa, um vaso com sempre-vivas de todas as cores lembrava uma imensa cauda de pavão. Um pouco mais detrás, uma escada em caracol levava ao terraço e na subida o policial investigador disse-me para ficar ali embaixo. Havia um perfume adocicado e ocre que provinha de lá e, pela luz intensa e o vento circulante, dava para imaginar que ela não havia fechado portas nem janelas.

Obviamente não obedeci as ordens e subi, reconhecendo-a imediatamente desfalecida na poltrona cercada por uma coleção de livros meticulosamente organizados em prateleiras. Livros desidentificados e que ela decidira guardar por conta própria, sem lombada todos eles, como se ela mesma tivesse as removido uma a uma. Ou como se, após ter cedido à tentação da leitura de um volume contaminado, o fungo houvesse se espalhado por tudo. No chão, uma camada de poeira de papel denunciava a presença de quem eu sabia existir mas nunca tinha encontrado antes. Rodothorulla Spp é o nome desse bibliocleptomaníaco implacável capaz de liquidar com os livros e os mais zelosos bibliotecários de uma só vez.

Desde então, tenho estado lamentavelmente sem a sua companhia e procurado convencer à polícia que nunca soube que aquilo acontecesse. Sabia que a ameaça de fechar em definitivo a biblioteca estava nas prioridades do Departamento e é claro que eu não a culpava por usar daqueles meios para salvar livros que já não interessavam a ninguém. Se por isso posso ser suspeito de cumplicidade, então podem me levar preso, mas que não toquem nos livros que ela guardou ou então irão todos morrer.

Lucio Carvalho nasceu em Bagé (RS) e mora em Porto Alegre (RS). Autor de “La Minuana” (2023, TAN), “Down House, 1858: o memorial de Charles Waring Darwin” (Dialogar/2024) e outros.

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