POESIA

Poemas de Ruy Proença

Imagem: Paul Goyette (CC 2.0), 2006.

A BRUTA FLOR DO PODER

a ínfera fera é um homem –
um homem com armas na boca
e um cemitério no peito

não sonha flores –
planta palavras de urânio
e ergue muralhas

seu grande desejo –
um palácio de espelhos
onde se mirar

sua fortuna de pavão –
um eco
no oco da solidão

semeia pânico –
não pensará duas vezes
antes de mandar matar

§

EU SOU NÓS

para Michel Agier

eu sou nós
eu sou porque nós somos
o outro é o que sou
então
por que nos tratamos
por indesejáveis?
os criadores dos direitos humanos universais
tão orgulhosos
não universalizam os direitos humanos
nem sequer o principal deles
o direito à vida
os campos de refugiados protegem os estrangeiros
ou nos protegem dos estrangeiros?
os palestinos
foram tornados estrangeiros
na própria terra
aquele ministro disse
são animais humanos
dizer que alguém é animal
é dizer que esse alguém
pode ser morto
eu sou nós
eu sou porque nós somos

§

CADA VEZ MAIS VELOZMENTE

como interrogar o futuro?
quantos futuros
se desdobrando no futuro
e cada vez mais velozmente?
o mamão maduro
não sonha com o futuro
nem o sabiá-laranjeira
sabe que hoje
é terça-feira
como interrogar o futuro
do outro lado da porta?
diante da bocarra aberta, voraz,
nosso anfitrião
será também nosso capataz?
quem seremos?
quantos eus caberão no eu?
em que aracnídeas teias
inteligências encantos
nos enredaremos?
seremos presas fáceis?
nos tornaremos o distante mudo
e primitivo urbanoide
como para nós
o paleolítico homem
da arte rupestre
(mesmo assim homem)?
mais que capataz
será o futuro nosso algoz?
existiremos? extinguir-nos-emos?
persistirá o amor?

e agora
essa mancha preta
feito moeda se alastrando
na tela do computador?

§

TERMÔMETRO

um pássaro pousou na fratura exposta pensando estar num galho. o pássaro não faz ideia do sangue pisado por onde pisa. tampouco faz julgamento moral. o pássaro é um ser lírico. feito para entoar uma ária, que repete pela vida afora, procurando seduzir. fosse um ser político, não assobiava. passava a vida arquitetando artimanhas para nunca deixar a política, nunca perder o poder, nunca perder o poder de decretar o certo e o errado (para si). sabemos que poder e dinheiro gostam de andar juntos. há muitas maneiras de facilitar ou dificultar as coisas quando se quer ganhar dinheiro. há bem poucos homens públicos que não se guiam por dinheiro. Mujicas são raros. os pássaros cantam o que já nasceram predestinados a cantar. papagaios não cantam, no máximo repetem palavras ocas, divertidas. só os músicos poderiam cantar a política. mas estes andam muito deprimidos.

§

O MEDO

o dia quer nascer. mas sol não há mais. sequestraram, executaram o sol. agora há o grande círculo do medo. outro astro, maior, falso, vazio, impondo sua sombra de terror sobre os viventes. a semente da flor não mais será flor. a flor existente não virará fruto. a vaca enlouquecerá e não mais dará leite. o rio estagnará insalubre. não mais o aperto de mão, não mais o abraço, não mais meu semelhante. todos desconfiarão de todos. cavalos e cavaleiros pisotearão nas ruas a esperança. a mentira dita três vezes será a verdade trespassada em nosso fígado pelo disparo dos fuzis. nos porões da hierarquia, a poesia morrerá asfixiada. depois dirão que se matou. onde andará a canção do amor? a ordem da hora é marchar. hoje é o dia do medo.

§

DELICADEZA

com fio invisível
de teia de aranha
a grua ergue ao céu
a lua cheia

lua cheia
mais leve
que uma bola
de pingue-pongue

a grua
age
com toda
a delicadeza

nada lembra
de dia
o rude cabo de aço
e a bola de demolição

§

NÓS ESTAMOS AQUI

nós estamos aqui
para dizer –
deixem-nos em paz!

essa tão injuriada
paz

queremos viver
queremos viver bem
queremos viver em paz

não queremos morrer
não queremos matar

e, por favor,
não distorçam
nossas palavras

afrouxem o garrote
abaixem as armas

uma pomba
nasceu em Marte

acendam velas
acendam lanternas

de onde venha
por onde passe
iluminem
o seu caminho

§

AGORA

agora na fruteira o mamão apodrece agora o céu escurece agora apedrejam agora a lua rachou agora na rua o cachorro sou eu agora não mais tenho mulher agora a tira da havaiana se rompeu agora perco o ônibus e a esperança agora roubaram minha graça agora as estrelas se afogam agora meus olhos são míopes agora no lixo a salamandra e minha Szymborska agora minha mãe morreu agora o mar me derruba agora a morte me tira para dançar agora a cerveja está quente agora o pneu furou agora a faca de legumes me corta agora a canção me faz chorar agora o mundo sempre injusto agora entraram em minha casa agora as milícias matam o diferente e o igual agora a mata me perde agora nos presídios os evangélicos são facção agora passo fome agora não tenho nome agora meu amigo se foi agora meu eu se parte agora o vinho avinagra agora o leite azeda e transborda agora a vida é um bordel agora não tem mais por quê agora perco o sono agora perdi coisas e peso agora perdi o medo agora quero voar agora busco calor agora busco o sol agora sou coletivo agora sou cidadão agora grito meu sonho agora sou multidão agora sou uma voz agora atravesso paisagens agora cruzo países agora sou flecha a caminho agora nunca termino

Ruy Proença é poeta e tradutor. Autor, entre outros, dos livros de poesia A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2015) e Monstruário de fomes (Patuá, 2019). Traduziu os poetas franceses Boris Vian, Paol Keineg e Henri Michaux.


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