CÂNTICO DOS CÂNTICOS DE FRIDA
“El milagro vegetal del paisaje de mi cuerpo
es en ti la naturaleza entera.”
Frida Kahlo
O ar já se perfuma e esverdeia:
Te toco
E a terra toda se arboriza
Todo o teu corpo
Vai entrando por meus dedos
Teus olhos verdes
Teu peito, tuas axilas
Um mar de folhas se agita
Cacheiam-se de flores pequeninas os sapotis
Rios se encrespam por entre os vales
Montanhas tremem na superfície
Entrosadas desde as vísceras.
O jardim de casa à nossa volta
Então é apenas a espuma desbordada
Dessa vida,
Desse amor que fazemos à sombra
Onde tem origem toda a terra
Com suas amêndoas, laranjas, nozes,
Abacaxis, romãs e mais delícias.
Depois do amor
O jardim de casa à nossa volta
É só o que fica, o que ainda recende
E transparece
Desse mundo de licores e paisagens
Que começa em nós
Com uma carícia de dedos.
Todo esse jardim visível e gracioso
Que nos rodeia
Depois do amor
É só o que sobeja.
§
ESSA QUE CHORA
Que se evite a margem dos rios
Na lua cheia
E ninguém ladeie estradas ermas
Que por aí vagueia a alma tormentosa
Da mãe assassina
A assombração da amante preterida
Essa que vem das águas e chora
Chora sem ter fim
Pois como se libertaria dessas águas más
A desgraçada
Se nunca lhe quiseram ver nem ouvir?
Se todos sempre lhe fogem…
Ela chora pelos regatos
Na lua cheia
Chora pelos caminhos desolados
Chora seu choro pavoroso sem ter fim
E não há neste mundo quem se atreva
A abraçar essa infeliz.
§
DESDE O SONETO 146
DE SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ
Servisse apenas para atiçar-te a escrever
Já teria razão o Mundo em perseguir-te.
Não bem insinua, senão ostenta virtude
Teu amor ao pensamento tanto mais belo
Quanto mais desdenhoso de vaidades.
Mas se não escapa à vaidade o próprio poema
Em que ofendes o Mundo? Queres saber
E já o sabes: porque teu poema faz pensar
E a beleza do teu pensamento nunca é vencida
Pelo tempo nem se vai com as vaidades.
§
MÃE DE TODOS OS DEUSES
Senhora da vida e da morte
Mãe deste poema
Minhas mãos e meu coração
Te pertencem
Mãe do viço da terra e do verso
Vem do teu poder esse instante
De cascavéis, sangue precioso
E estrelas.
Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo, onde vive. É autora de livros de poesia, crônica, ficção, ensaio e literatura infantil. Formada em Jornalismo, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, foi cinco vezes finalista do prêmio Jabuti em poesia (livros Fazer silêncio, Almádena, O amor e depois, Tempo de voltar e Dança no alto da chama) e vencedora do prêmio Minuano de Literatura 2021 na categoria crônica (livro Dia de amar a casa). Em 2024, participou do X Festival de Poesía – Las Lenguas de América – Carlos Montemayor, a convite da Universidade Autônoma do México, na Cidade do México. Site: www.marianaianelli.com.br