algumas histórias começam pelo meio
porque ninguém quer ouvir o começo
mas a minha história começou
antes de começar
§
morei na zona rural até uns 11 anos. e foi aos seis anos —
tudo acontece quando se tem seis anos, e se não lembro a
idade é que foi aos seis — que eu caí numa das maiores me-
táforas da minha vida. metáfora é um fato e é um cão e é um
oráculo. lá na fazenda “recanto do amor demais” a mamãe,
tão pura, criava porcos para abate, papai cuidava das plan-
tações e do gado. era muito, mas muito gado. claro que não
era nosso, nunca tivemos um chão, mas o patrão tinha esse
chão imenso de gado e, num pedaço do chão, um silo — o
silo é como uma piscina gigante que não dá pé pra nenhum
gigante, que dirá pra mim, que não sou davi —, e era no silo
que meu pai jogava toda a merda do gado. merda que era
esterco pra plantação do patrão. o silo era como um subso-
lo num terreirão onde eu adorava fazer minhas primeiras
giras de menina. roda, rodava, rodava, e de tanto rodar caí
no silo. uma menina de seis anos rodando o àiyé num silo
gigante de merda. mas eu tenho um asè fortíssimo e nesse
dia o silo não estava cheio, então a merda só chegou até
meu peito. olhava pra um lado e pra outro e tudo era merda.
como quem tira um grão de açúcar cristalizado do fundo de
uma garrafa de mel com o dedo mindinho, conseguia levan-
tar uma perna e, quando ia levantar a outra… a primeira se
afundava de novo e a merda ia até o pescoço. tentava com
outra perna e nada. consegui sair depois de gritar e depois
chorar e gritar e ficar rouca a nunca mais perder a rouquidão
com ajuda de um boia-fria — minha infância era rodeada
deles e de canavial e da roda e da merda. ele me jogou uma
corda, coloquei na cintura e ele foi me puxando. levei uma
surra da mamãe por ter sujado a roupa de merda e nunca
mais caí naquele silo. mas a merda, essa metáfora e fato e
cão e oráculo, ainda tá aqui: eu levanto uma perna, a outra
se afunda.
§
e o cleitim
meu primeiro namorado
a pele da cor da madrugada
os olhos e dentes estrelando seu ser de céu
antes que desse meu primeiro beijo
sumiu atrás das grades
§
a terapeuta imaginária não quer saber
de lembranças felizes
a crítica literária imaginária não quer saber
de poemas de amor entre gente negra
lembranças de infância
não são sempre uma várzea do time ladeira abaixo
contra o chute no pâncreas
minha lembrança mais bonita, mais perene
não é o beco com seis casas de um cômodo e banheiro
compartilhado
nem aquela de quando tinha 11 anos e um camburão me
levou
pra falar com o juizado de menores e fiquei seis horas
num catre
com um pm branquelo dizendo que eu iria mofar na
cadeia
e chupar buceta de mulher gorda, preta e fedida
talvez eu não soubesse escolher muito bem
dizem que é coisa do meu signo
ó, subiu! posso sim escolher muito bem
entre os banhos na represa ou no latão de 50 litros
os sumiços no meio do canavial montada num cavalo de
patrão
as bonecas de milho, de barro, de palito, de retalhos
as mangueiras, meu pai, as mangueiras puras
encruzilhadas
os churrascos com samba, rap e marofa
escolho sim muito bem a noite
em que eu, meu irmão e dois colegas estávamos na rua
e passou uma veraneio com pms, eles sempre branquelos
e meu irmão me beijou na boca
porque maninha, os cana alivia namoro
os colegas se atracaram no muro
e ó, subiu! os cana nem tchum, porque afinal
um dos caras era cabeludo
olha, amor é tudo
ó! a terapeuta e a crítica nunca entenderiam
o ferro, a terra, a água, o canavial, o milharal, os trapos
a gente suada, rindo, comendo, bebendo, sarrando
nunca entendem mesmo o verbo
a estratégia que molda nossa pele
§
Ogiri èkun
violento, delicado
esse corpo leopardo
não há genera que diga
de onde vim
esse chão
preto e vermelho
aqui faço minha linhagem
minha ancestral de mim
nina rizzi vive em Fortaleza/ CE, onde é professora, poeta e tradutora.