POESIA

Seleção de poemas de Léo Tavares

Imagem: William Johnson Walshan, Walter George Spencer. Surgery; its theory and practice, 1896.

Brocado bege

Sob o sol, acende-se o vermelho.
Estou dedilhando o nada, o coro não vem, é suspensa a coda.
Um gesto contido, e um outro interno, corrente.
Duas cascas.
A de romper abrupto
E a do abrir-se gradativo.
As nossas solidões conversaram um dia.
A cortina esteve mais trêmula. Havia densidade no ar.
O hoje tem ossos que se dissolvem.
É triste a festa de ontem.
Espreguiçadeiras, brocado bege.
Um cinzeiro visitado pelo vento, depois do almoço.
O copo vazio.
E de novo a sesta.

§

Janela-casamata

Agarram-se ao dia, até às dezoito, algumas sequências de sonho, são sequelas, paga-se no corpo.

Vi as horas regurgitando as esperas, o chão ficou coberto de pétalas de buganvília, negações arroxeadas. Nenhum peso. No entanto, a rede balançou muito de leve. Não haverá presença que faça da casa, casa.

E o muro hoje era muito mais do que proteção, amurada. Janela-casamata, de onde observo.

Vigilância, veios abertos de rios imaginários arrastando o jardim para uma outra paisagem.

Saber-se coisa rente demais ao crepúsculo, querendo em verdade ser a manhã de alguém.

O anjo do Senhor não fez a visita, ninguém anunciou nada, esta é uma Sodoma intacta. Quem vem ao portão? Vento, medição de luz, gatos vagarosos, sombras, testemunhas de Jeová, uma abelha. A vida toda se apresenta, obstinada e incômoda, com suas trombetas incapazes de invocar tempestades. E quem deveria perturbar não vem.

§

Átropos, variações

1.

Oco. Vórtice. Ave.
Vozes roucas pedindo permissão de entrada.
Osso. Óbice. Vade.
Cúmplice dos meus medos e persas.
Hélice. Foice.
Rompe-se
a roda da noite perversa.

2.

Me disseram que me pairava no rosto uma feiura antiga, de renome, e que os tripulantes do Argos uma vez se acercaram do meu corpo para me olhar de longe.

Lago de Lerna no meu jardim. Ando sozinho entre os caramanchões. Quando chove, pequenas poças viram espelhos.

Estou sem camisa numa foto de aplicativo. Clavícula, escápula, úmero. Músculos retesados, sustentando o peso do corpo contra o vaso da figueira-lira. Nenhum rosto.

E a quem me alerte sobre o artífice da imagem de escultura, digo que sim:

“no tempo da sua visitação perecerão.”

Oco. Vórtice. Fode.

A quem pergunte, é verdade que soltei a minha boca para o mal e que a minha língua compôs o engano.

3.

Ave, moços.
Ave.
Entrem.
Eles me fazem querer dizer coisas desconexas, eles labirintificam os sentidos
Foz de lírio, flama rósea
A mais apertada gargantilha cintilando contra o trígono-carotídeo
Eles entendem bem de jugular
E vêm com as patas.

Léo Tavares é escritor e artista visual. Nascido em São Gabriel/RS. Vive em Brasília/DF. Pesquisa as relações entre artes visuais e literatura. É autor dos livros Situações (LTG Press, 2023), O Congresso da Melancolia (Urutau, 2021), Ruibarbo do deserto (Patuá, 2019) e Os doentes em torno da caixa de Mesmer (Modelo de Nuvem, 2014).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *