Planícies se cobrirão de ossos,
Verás o sol se apagar ao meio-dia,
As pedras se racharem com estrondo,
Aparecerem bolas de fogo no deserto,
Os rios transbordarem e subirem ao teu coração
E sentirás que não está aí
A razão da angústia que nasceu com tua carne
Que escurece teus olhos e que te leva pela mão.
Verás os insetos morrerem ao chegarem à tua sombra,
O vento levantar a raiz da árvore que te protege,
Águas-vivas queimarem a boca dos náufragos,
Cascas de caramujos mortos encalharem veleiros de pesca,
O mar se despejar sobre si mesmo sem voltar à praia
E sentirás que não está aí a razão da angústia
Que rói tua carne, eneblina teus olhos
E dobra teus joelhos até que teu corpo caia.
Verás a malícia dos povos subir à presença de Deus,
Serem reservadas para os filhos as penas dos pais,
Os outros comerem o que semeaste,
Teu irmão se unir a Jezebel,
O ombro cair da sua juntura
E ainda não está aí a razão da angústia
Que vive nas tuas entranhas, escalda teus olhos,
Embaraça teus passos
E escorre nas tuas palavras com a lentidão do óleo
Assistirás ao nojo mútuo dos casais.
O homem triste diante da luz mágica do sexo,
As estradas desoladas como as ruas de Sião,
Teus filhos se alimentarem de casca e raízes de juníperos
As virgens ficarem esquálidas,
Procurarás te abrigar das pestes
Nas grutas úmidas onde os répteis depositam seus ovos,
Esperarás pela justiça dos homens como o trigo anseia as chuvas
E pelo gesto de consolo como bocas abertas às águas tardias
E saberás depois disto aí não está a razão da angústia
Que cobre teu corpo como a pele
E lambe teus olhos corno as pálpebras,
Ouvirás ser chamado contra ti o tempo
Que despirá de encanto tuas amantes,
Verás descer uma grande mão trazendo uma brasa viva
Tocar com ela os lábios que deprecavam
E desejarás que um anjo esfregue em teus olhos cegos
O fel dos peixes para que tuas pupilas se deslumbrem com a luz.
E depois disto ficarás mais triste ainda
Sentirás que está aí a razão da angústia
Que entope teus poros e engosmece teus olhos.
E ao fim de tudo a que assistires
Na transformação das águas, da terra, dos montes,
Do céu, dos peixes, das aves,
Da luz, dos vegetais,
Do homem, da mulher, das gerações,
Da fome, da sede, do tempo, da vida e da morte
Saberás que aí não está a razão da angústia
Que diminui teu ser, que te humilha, que te cega a vista,
Que te acorrenta ao Princípio dos Princípios
Mas quando te perdes a ti mesmo,
Pensando com terror que Ele um dia não exista.
Qual será a razão da angústia humana? O título indaga algo que exige uma resposta, poderíamos até afirmar ser uma pergunta ontológica. Qual a razão da angústia? O título abre para uma procura: o EU-lírico interpelará ao TU-leitor o motivo da angústia humana e permite-nos a leitura a partir de um viés religioso, pois a grande angústia parece ser a inexistência de Deus. Neste poema o EU-lírico dialoga com o TU, corpo ausente no texto, subentendido no sujeito oculto, o que é perceptível pela presença de verbos na segunda pessoa que aparecem em uma gradação: primeiramente verás, depois sentirás, assistirás, procurarás, esperarás e não saberás a resposta à indagação inicial, ou seja, a pergunta existencial ainda permanece, qual a razão da angústia? As diversas imagens escatológicas (planícies cobertas de ossos, o sol apagado, bolas de fogo no deserto, insetos morrerem dentre vários outros) reforçam a presença da angústia percebida incialmente pelos sentido visual: nosso corpo observa o corpo-vivo do poema, extenso, com uma pergunta indireta, uma indagação, no início, a respeito da razão da angústia, e, durante a leitura, somos inseridos no texto, no diálogo EU/TU discutido na segunda parte deste trabalho, em Purgatório: a encarnação (purgação) da (pela) poesia. O EU-lírico compartilha conosco seu caminho (verás, assistirás, sentirás) e passamos a experimentar, agora, como Eu-leitor, suas angústias, sua procura e espera, sem ter a certeza da resposta. Sua caminhada é concluída com um provável indício da causa de sua angústia: a inexistência de Deus. (Ele) Outro fator importante neste texto diz respeito à voz que ecoa sob a voz do Eu-lírico: subjaz no texto um discurso religioso presente em um texto-trama, uma rede de referências religiosas que começam com a planície coberta de ossos396, o sol que se apaga ao meio-dia, a malícia dos povos subir (e ofender) Deus398, a carne ruída e os joelhos dobrados até que o corpo caia399, a brasa viva descida do céu tocando os lábios400, o fel dos peixes esfregado nos olhos401 dentre outras, imagens estas que aparecem em diversos poemas de Adalgisa Nery. Geraldo Gomes Brandão Júnior In:BRANDÃO JÚNIOR, Geraldo Gomes. Damnatio memoriae: Adalgisa Nery, do paraíso perdido das Laranjeiras ao esquecimento. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2024. |
Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira, mais conhecida como Adalgisa Nery, seu nome de casada, foi uma poeta modernista e jornalista brasileira, autora de Ar do Deserto, de 1943, Mundos Oscilantes, publicado entre 1937 e 1952, e A Imaginária, de 1959. (Wikipedia)