FICÇÃO, TEATRO

Ninguém precisa saber

Imagem: Eduardo Tavares/Reprodução.

A. D. Cattani
Garibaldi – RS

Cenário único
Sala de reuniões no 30º andar. Mesa oval na lateral direita. Sobre ela, laptops e papéis empilhados na frente de seis cadeiras de escritório com rodinhas. Do outro lado, encostado na parede, um longo sofá ao lado da única porta e um frigobar. Fundos: janela grande abrindo para a paisagem acima. A luminosidade externa varia conforme o desenrolar dos acontecimentos. Para não atrapalhar a cena principal, uma cortina fecha a janela quase todo o tempo.

Personagens
1. Ultra. CEO de uma megaempresa. Mulher branca, 50 anos, estatura média, sobrepeso, cabelo tingido. Calças masculinas, blusa branca feminina. Gestos enérgicos, caminha e fala gritando como militar.

2. Vice-Presidente (Vice). Homem “cinza”, 50 anos. Mais baixo que Ultra. Trajes anódinos. Rosto impassível.

3. Diretora de segurança (Dire). Mulher branca, 60 anos. Aparenta estar desanimada. Roupa convencional.

4. Auditora externa (Audi). Mulher preta, 40 anos. Ar sério e preocupado. Trajes formais, cabelo encaracolado. Está sempre segurando folhas de papel nas mãos.

5. Representante dos acionistas (Database). Mulher branca, 40 anos. Alta, magra. Trajes de moda, cabelo curto, produzido. Olhar severo, gestos nervosos. Sempre com um celular na mão.

6. Ministro (Mini). Homem branco, 40 anos. Estatura média. Terno sem gravata, aparência descolada.

7. Copeiro. Latino. Uniforme desbotado. Cabelo um pouco comprido. Não fala uma palavra sequer.




Ultra:
— Como sempre, tudo está resolvido. Podem sair. Vamos retomar no próximo mês. As perguntas ficarão para depois. Saiam logo e deixem os dossiês sobre a mesa.



Ultra:
— Inúteis, bando de inúteis. Ficaram sentados a tarde toda dando palpites. Ninguém traz um assunto relevante. Se não fosse eu, essa empresa já tinha ido para o espaço. Secretária! SECRETÁRIA! Não é possível! Já saiu todo o mundo?



Ultra:
— Outro sem serventia. Vice-presidente! Ué, ainda aqui? Entra e fecha a porta. Senta. Não na minha cadeira! Tu nem precisava estar presente para acompanhar a reunião. Com esse tipo de gente insignificante, eu acabo decidindo tudo sozinha. Representante do pessoal: um intrometido. Representante do ministério: um tonto indicado pelo senador. Responsável pela Imagem e Redes Sociais: uma convencida. Mais dois que nem sei quem são. Eles me fazem perder tempo com avaliações e palpites de jirico. A totalidade das sugestões não serve pra nada.

Vice-presidente (Vice):
— A senhora está cansada de saber, o Conselho de Administração representa um olhar externo. Se algo está errado, eles avisam. Se está tudo certo, o mérito é teu.

Ultra:
— Claro que está tudo certo. Há cinco anos que está tudo certo e vai continuar dando certo pelos próximos cinco. É só ter ordem e método. Ordem e disciplina. E gente que obedece… que tem que obedecer. É sexta-feira, vou assinar aqueles papéis na segunda. Até lá não entrem em contato comigo. Sim, sei que isso é com a minha secretária. Estamos sem sinal para os celulares. Aquela néscia não desligou o bloqueador. Vou ter que refazer as rotinas administrativas. Onde já se viu todo o staff sair antes de mim? Já perdi a partida de tênis e tenho um jantar importante na casa do embaixador. Jantar imperdível, com cada comida! Estamos negociando sistemas de aquecimento e de resfriamento. Vai, desembucha

Vice:
— A Diretora de segurança está tentando falar contigo desde hoje de manhã. Ligou umas dez vezes e, agora, está te esperando aí fora, acompanhada por uma outra mulher. Já conversei com elas. O assunto é grave.

Ultra:
— Tudo é urgente e preocupante para a Dire. Eu estou atrasada para meu compromisso. Manda ela entrar sozinha e avisa que tenho cinco minutos disponíveis.

Diretora de segurança (Dire):
— Bom tarde, senhora Ultra, senhor Vice. Preciso reportar algo urgente e gravíssimo. Acho que o assunto não se esgota em cinco minutos. Há pouco mais de dois meses, o representante dos funcionários no Conselho de Administração sugeriu a contratação de uma auditoria externa para verificar questões de segurança. Não fui consultada e fiquei com a pulga atrás da orelha. Qual a razão para pagar uns bisbilhoteiros que não conhecem a empresa? Vieram pessoas fazendo perguntas esquisitas, como se soubessem de alguma coisa. Por isso, no início do mês, solicitei autorização para fazer uma inspeção extraordinária seguindo os protocolos internos para casos emergenciais. Acho que a senhora nem prestou atenção quando assinou as ordens.

Ultra:
— Prestei atenção, sim. A contragosto, assinei a autorização para a auditoria. Foi uma maneira de os inúteis pararem de me azucrinar, de novo, numa sexta-feira à tarde. Aprovei a inspeção para deixar a Di-re-to-ra-de-se-gu-ran-ça contente. O que é agora, Dire?

Dire:
— Tenho o resultado da inspeção interna.

Ultra:
— E aí?

Dire:
— E, também, da auditoria externa.

Ultra:
— Tu tá querendo estragar o meu jantar com o embaixador. Vai, fala logo e rápido. Tenho pouco tempo.

Dire:
— Repito. A contratação da auditoria externa foi feita à minha revelia. Não gostei do pessoal que veio se intrometer na minha área, especialmente de um físico presunçoso, achando conhecer tudo. Falei com a responsável da equipe, ela se chama Audi e está aí fora esperando poder entrar.

Ultra:
— Vocês estão armando alguma coisa contra mim?



Ultra:
— Senta. Naquela cadeira. Sentem vocês duas. Estou ouvindo. Cinco minutos.

Dire:
— Senhora Ultra, a senhora não vai gostar do assunto. Como disse, fiquei desgostosa com a contratação de inspetores externos. Chegaram uns sujeitos mal-humorados pedindo centenas de dados, filmaram as instalações a torto e a direito e desapareceram por vários dias. Aí, de repente, aparece essa jovem, falando como se tivesse a minha experiência. Veio acompanhada por uma dúzia de pessoas: um engenheiro, um físico, um geólogo, outro engenheiro disso, um físico daquilo, outros não sei o quê.

Ultra:
— Só homens?

Dire:
— Não vem ao caso. Pilhas de papéis, de imagens e croquis; uma montanha de estatísticas e gráficos com projeções. Eu já tinha dados preliminares da nossa própria inspeção. Era tudo para me deixar muito preocupada. Ontem, nossas equipes se encontraram e trocaram informações. Hoje pela manhã, falei com a Audi e mudei de ideia a seu respeito e sobre o seu trabalho. Juntas, conversamos com o Vice-presidente. Convergimos no que vamos apresentar agora.

Ultra:
— Confirmado. É uma putaria para me estragar o fim de semana.

Dire:
— É o resultado de trabalhos feitos com seriedade, envolvendo duas equipes de especialistas, a nossa, altamente qualificada, e a deles, também muito competente. Não estamos concorrendo para ganhar alguma coisa. Pelo contrário, todos nós podemos perder muito.

Ultra:
— Dire, tu tá me enrolando. Já se passaram três minutos.

Dire:
— Vou deixar para a Audi fazer a apresentação. Ela fala bem e com clareza.

Audi:
— Direto ao ponto. O que tem aqui ao lado é uma das mais importantes centrais nucleares do país. Ela vai entrar em colapso. As inspeções mostram que, em pouquíssimo tempo…

Ultra:
— Não! Não e não. Nada vai colapsar, nem hoje, nem amanhã. Porra! Vocês estão de sacanagem. Não quero saber de nada e vocês estão me fazendo perder tempo. Eu era comandante da força-tarefa nas fronteiras. Como não estávamos preparando nenhuma guerra, eu ficava inspecionando tropas e instalações, feito síndica de condomínio. Quando aconteceu aquele problema aqui, me ofereceram comandar uma guerra de verdade. Passei para a reserva e minhas qualificações só aumentaram.

Dire:
— E o salário foi multiplicado por dez.

Ultra:
— Não vem ao caso. Veni, Vidi, Vici. Mais rápido que Júlio César, vi o problema causado por aqueles incompetentes e, com uma decisão certeira, mandei colmatar as rachaduras de maneira definitiva. É isso que faz um bom estrategista. Sacrifica algumas dezenas de pobres diabos e salva milhares de cidadãos. E, também, não tenho que dar satisfação para ninguém. O problema não vai se repetir.

Dire:
— Agora é diferente.

Ultra:
— É algo sem importância. Insisto, ninguém precisa ficar sabendo.

Dire:
— Com o devido respeito, a senhora pode esbravejar o quanto quiser. Não vamos sair daqui até apresentar o que pode acontecer e discutir…

Ultra:
— Dire, não estou te reconhecendo. Sempre foste um soldado disciplinado, obediente. Te convidei para trabalhar aqui certa da tua fidelidade. Agora, não tá querendo nem mesmo sair da sala? Nós vamos discutir alguma coisa? NÃO! Vocês estão dispensadas. Vice, acompanha esses dois estorvos para fora.



Dire:
— Sempre fui disciplinada. Obedecia quando as ordens eram pertinentes. Sou civil e sei que empresas como essa são iguais ao exército: hierarquia rígida entre chefe-subordinados, ordens, cumprimento de ordens, normas e determinações muitas vezes irracionais, porém, obedecidas. Porém, tudo tem limite. Agora, para nos tirar daqui vais precisar usar a força, teus gorilas não estão por perto e duvido que, sozinha, consigas fazer alguma coisa.



Ultra:
— Algo está errado. Onde deixei meus celulares? É um complô das bagrinhas. Vocês estão me sequestrando?

Dire:
— Não é uma conspiração, nem um sequestro. Sem ajuda dos soldadinhos ou dos funcionários, a magnífica CEO fica desamparada, só conseguindo gritar mais alto. Precisamos fazer alguma coisa e, infelizmente, dependemos de ti. Pelas normas internas, os subordinados só atenderão à cadeia de comando já definida. Tenha a bondade de sentar e ouvir.

Audi:
— Temos pouco tempo. A unidade central tem um gerador principal. Ao lado, duas unidades secundárias, cada uma dotada de outros três geradores menores. Um pouco mais longe, os novos modelos em construção acelerada. Podemos projetar o layout da instalação para identificar…

Ultra:
— Eu conheço cada detalhe disso tudo melhor que a palma da minha mão. Veni. Cinco anos atrás, antes de assumir o cargo, li centenas de páginas sobre todos os desastres nucleares, Three Miles Island, Chernobyl, Fukushima, Angra dos Reis e outros. Vidi. Tinha imagens, croquis, plantas detalhadas das instalações. Na primeira reunião com os bambambãs, ouvi explanações completas sobre o que estava acontecendo. Apresentaram uma dúzia de sugestões. Vici. Escolhi a melhor, claro, com alguns custos secundários sem importância.

Dire:
— Alguns com gravíssimos efeitos colaterais e as informações estão sob sigilo absoluto até hoje.

Ultra:
— O que interessa é o resultado. O melhor para o bem comum.

Audi:
— Quem define o que é melhor para os outros?

Ultra:
— Desconfiei desde o início que vocês estão politizando algo irrelevante. Politizando! Qual foi o resultado da minha ação? Uma empresa responsável pelo fornecimento de quase vinte por cento da energia elétrica do país, uma empresa altamente rentável que beneficiou milhares de acionistas ao longo dos anos.

Audi:
— São três proprietários principais, todos multimilionários. A CEO aqui presente é apenas milionária…

Ultra:
— Que seja. Vamos ver a questão por outro ângulo. São milhões de consumidores atendidos por uma empresa que produz energia limpa. Tentem viver sem luz elétrica, sem ar-condicionado, sem internet e sem celulares. Seria uma outra idade da pedra ou das trevas.

Dire:
— Trevas, é isso que vai voltar se medidas urgentes não forem tomadas.

Ultra:
— Vou prorrogar esse falatório cinco minutos mais. Continua, termina o que vocês estão ruminando.

Audi:
— O que aconteceu na quase totalidade dos desastres nucleares no passado foi diferente e os estragos foram controlados. A letalidade imediata pode ter sido pequena, mas os efeitos das radiações continuaram durante muito tempo. O que está acontecendo agora está relacionado ao derretimento de um dos reatores secundários, coisa que está afetando a acumulação dos rejeitos. São milhares de toneladas de material radiativo estocadas. Lixo atômico que durará milhões de anos.

Ultra:
— Isso só confirma que estou certa. Desde o início, me preocupei com os rejeitos. Eles são enterrados em poços, centenas de metros abaixo da superfície e a alguns quilômetros longe daqui.

Audi:
— Sob camadas friáveis de arenitos. Mesmo que fossem cavados em rocha pura, quem pode garantir que movimentos geológicos não possam atingi-los?

Ultra:
— Tu é uma besta mesmo. Os blocos de concreto que protegem o lixo radiativo não se rompem e não explodem. Vai tomar no…

Dire:
— Vamos manter o nível de civilidade. Por favor, ouve a síntese até o fim. Nós detectamos um problema mais complexo relacionado a atitudes arrogantes de gente que se acha uma elite. Sabemos que houve avanços tecnológicos fantásticos para evitar acidentes. O mesmo não aconteceu com a presunção e com o espírito ganancioso de alguns.

Audi:
— De novo, direto ao ponto. Houve um aumento extraordinário da demanda por energia. Aumento com origem bem conhecida: os database, cloud storage, AI storage etecétera. Um dos centros instalado do outro lado do rio consome energia equivalente a milhões de casas, apartamentos, empresas. O reator central está sobrecarregado, os secundários idem, os novos começarão a operar daqui a um ano ou dois.

Ultra:
— Tudo está sob controle.

Audi:
— Evitaste o problema logo que ele aconteceu mandando cobrir as fissuras com milhares de toneladas de concreto. Providência correta. O reator defeituoso foi desativado, porém, o concreto lançado sobre o núcleo não lacrou totalmente a base. O vazamento continuou subsolo abaixo de maneira tão lenta que levaria algumas centenas de anos para causar problemas. Acontece que a sobrecarga dos geradores em funcionamento está acelerando o processo.

Ultra:
— Quanta besteira! Escutem, a realidade é o que se vê, é o que eu estou dizendo, nada mais. Ninguém precisa saber de outra coisa, senão, começariam a se preocupar.

Audi:
— No início – sem a blindagem que é feita hoje em dia –, foram enterradas toneladas de material tóxico distante um quilômetro e pouco da usina. Muito previdentes, vocês conferiram a existência de lençóis freáticos. Sim, tinha vários. Melhor que a encomenda: deles, daria para extrair água para as torres de resfriamento sem atrapalhar o “enterro” do material tóxico. Aí chegam os database que, ao mesmo tempo, exigem mais energia e muita, mas muita água mesmo. Como dizem, a IA vai secar o nosso futuro. Imprevidentes, vocês resolvem construir o edifício administrativo longe dos reatores, porém, quase ao lado do “cemitério”. Sob nossos pés, sobra lixo, falta água e o caldeirão começa a ferver além da conta.

Ultra:
— Um simples estagiário do Departamento de Engenharia Nuclear consegue contestar essa explicação. Ela é conversa de ecologista velho e burro, sempre imaginando algo tipo Hiroshima: um grande cogumelo luminoso, chamas vermelhas e amarelas. Já disse: os blocos de concreto não explodirão.

Audi:
— É verdade. O cogumelo seria apocalíptico e a morte de milhares de pessoas – além da destruição de infraestrutura estratégica – afetaria todo o país. O que descobrimos não é tão pirotécnico, mas os resultados serão catastróficos. A analogia com a fissão nuclear é adequada. Reação em cadeia, não como consequência da ruptura dos átomos, porém, colapso do gerador secundário, vazamento acelerado em direção à boca do inferno, emanações incontroláveis impedindo o trabalho de manutenção nas torres de resfriamento e…

Ultra:
— De novo, bobagem, parece cenário de filme-catástrofe. Dos ruins…

Audi:
…os demais geradores serão inviabilizados, a transmissão da energia será bloqueada, as linhas de transmissão comprometidas e uma pane generalizada prejudicará milhões de consumidores. Não existe possibilidade de fornecimento alternativo antes de vários meses. Volta à normalidade? Não antes de um ano. Imagina cidades com milhões de habitantes sem energia elétrica durante meses e meses.



Ultra:
— Megawatts. Gigawatts. Megawatts. Gigawatts.

Audi:
— Milhões. Bilhões. Milhões. Bilhões.

Audi e Dire:
— De dólares.

Dire:
— Não é uma questão monetária. É uma concepção de vida.

Audi:
— … e de morte.

Ultra:
— De novo, vocês estão politizando algo insignificante. Chega de conversa. Eu tinha algumas informações sigilosas evocando essa possibilidade. Os procedimentos de urgência estão sento discretamente atualizados.

Dire:
— Sem meu conhecimento.

Ultra:
— Como o que se anunciava poderia, hi-po-te-ti-ca-mente, ser grave e envolvia segurança nacional, deixei a cargo dos engenheiros militares.

Audi:
— Agora entendi a razão de tantos fardados infiltrados na folha de pagamento.

Ultra:
— Eles são dos meus e… Esperem… Alguns viajaram recentemente com as famílias. Sem me avisarem de nada. Ai, ai, ai. Pode estar dando merda. Em quanto tempo? … Ô, surda! Em quanto tempo?

Audi:
— Em três ou quatro semanas para o processo se tornar irreversível.

Ultra:
— Vincere depende de uma decisão rápida. Não vou considerar as besteiras que vocês estão dizendo. Vou mandar… vou mandar… vou…

Audi e Dire:
— Desligar o reator defeituoso.

Ultra:
— Isso implica em reduzir o desempenho dos demais. O fornecimento de energia cairá uns trinta por cento. Vice, telefona para a Database e para o Ministro, eles estão aqui perto e podem vir de helicóptero.



Ultra:
— Está acontecendo algo suspeito deste lado. Tenho impressão que tem gente nos observando. O que são aqueles pontos? Parecem microcâmeras. Tem alguém aí atrás. O que está acontecendo? Não estou gostando disso. Ai, ai, ai. Não estou gostando nada disso…



Database:
— Ultra, espero que o assunto seja importante a ponto de justificar minha vinda. De todo modo, já estragaram minha sexta-feira à noite. O que está acontecendo? Quem são essas pessoas?

Ultra:
— Querida Data, isso está escapando da minha vontade e do meu controle. Aparentemente, digo a-pa-ren-te-mente, estamos em situação de pré-pane, descendo os círculos do inferno.

Data:
— Qual é o custo?

Audi:
— Não é uma questão financeira.

Data:
— Claro que é uma questão financeira, caso contrário, eu não seria chamada. Quem são essas duas intrometidas? O que elas estão fazendo aqui? Pergunto de novo, quanto vai custar?

Ultra:
— Elas são umas xeretas responsáveis por investigações feitas por equipes internas e externas de avaliação de risco. Os resultados confirmam o que eu já sabia. Vai custar muito.

Data:
— Quanto é muito?

Ultra:
— Vai reduzir o faturamento uns dez ou vinte por cento.

Audi e Dire:
— Trinta por cento!

Data:
— Nem pensar! Eu represento o consórcio dos investidores e tenho autoridade para negociar e decidir qualquer coisa envolvendo questões financeiras. Ultra, tu me chamas numa sexta-feira à noite para anunciar esse possível desastre. Está fora de cogitação reduzir o faturamento e, consequentemente, os ganhos dos acionistas. Stakeholders e shareholders são figuras sagradas. Os interesses deles estão acima de qualquer probleminha técnico.

Ultra:
— Essa é também a minha avaliação, porém, preciso de respaldo para encaminhar o caso. Data, vou te explicar o que dá para fazer. Vocês duas podem ir passear. Vice, acompanha as enxeridas.

Audi:
— A comandante Ultra, a iluminada estrategista, chama uma sumidade das finanças para, juntas, colocarem uma tampa no caldeirão adiando o desastre. Vocês não estão só pensando em se safar indo pra longe. Estão querendo garantir a grana de vocês, e de outros. Talvez não de todos, mas dos mais espertos. A Dire e eu temos a mesma avaliação e, juntas, decidimos ficar aqui até resolver o problema.

Ultra:
— Primeiro, não preciso dar explicações para vocês, abelhudas e rancorosas. Segundo, as pessoas estão contentes com o conforto imediato. Se der problema mais tarde, os trouxas que se danem. Terceiro, é só vocês calarem a boca. Ninguém precisa saber.

Dire:
— Gente como vocês promoveu o funcionamento do sistema para tirar proveito imediato. Intocável sistema ultramoderno. Seria mais adequado usar metáforas medievais tipo: caldeirão, moinho satânico, maquinaria diabólica. Elas são apropriadas para se referir ao caminho e às corporações levando para o fundo dos infernos. Até há pouco vocês estavam descendo alegremente. Agora, como o desastre se avizinha, vocês querem…

Ultra:
— É isso! É tudo culpa do diabo. Nós somos do bem.

Data:
— Do bem bom.



Vice:
— Eu estava ouvindo e acompanhando as movimentações das equipes de investigação. Estou com dossiês sobre várias irregularidades e ordens secretas da Ultra. E, sobretudo, sobre o acobertamento de fatos graves acumulados há tempo. Posso explicar, mas, antes, preciso dizer que vocês não prestaram atenção ao que aconteceu segundos atrás. Houve um estrondo, o prédio balançou. No meu tablet está indicado que os sensores de instabilidade foram acionados. Os elevadores pararam de funcionar e as saídas estão bloqueadas.



Vice:
— Isso é um clichê: bloqueadas, tentarão encontrar uma maneira malandra de escapar. O pessoal administrativo foi para casa no fim do expediente e a equipe de segurança está 29 andares abaixo. Nenhum super-herói está de plantão para nos salvar.

Ultra:
— Sim, isoladas e criticadas por um vice até há pouco abestalhado e inoperante. Ele vai nos ensinar o método psicanalítico, evocar geniais pensadores e fazer analogias literárias. Cala a boca e tenta te comunicar com o general. Ele é meu amigo, disciplinado, confiável. Não deve ter ido para as montanhas.

Data:
— Caraca, isso não pode estar acontecendo comigo! Eu sempre fui empreendedora de sucesso de mim mesma. Danem-se! Preciso sair para…

Audi:
— E os teus comanditários, chefes, sócios? Sei lá. Aqueles três famosos acionistas?

Data:
— Eles, ah… Eles se darão bem em todas as circunstâncias. Quem vai se ferrar é gente sem importância, gente que nem sabe que já está ferrada. Eu vou conseguir me safar. Vice, conseguiste falar com o capitão, o coronel, o general amigo da Ultra? Alguém tem um machado para colocar essa porta abaixo?

Dire:
— Peço que todos fiquem calmos. Como diretora de segurança, conheço os protocolos de emergência. A situação é grave, mas vamos dar um jeito. Tenho uma forma de comunicação que independe de celulares. Não está faltando energia elétrica e os velhos aparelhos telefônicos ainda funcionam. Tem um aí dentro desse painel atrás do frigobar. Silêncio. Vou falar com o… Alô? É a Dire. Vocês estão bem? Onde estão? Sim…, sim, sim, estou ouvindo. Sim. … Então, procedimento A-A, prioridade absoluta.

Ultra:
— E aí? Quando vão nos tirar daqui?

Dire:
— A situação é a seguinte: houve um abalo no prédio. Todas as saídas e os elevadores ficaram bloqueados. Eles vão começar a destravar as portas e vir subindo. O mais sério aconteceu com o reator secundário. O vazamento para o subsolo aumentou. Eles precisam da ordem direta da Ultra com aval do Ministro para desligar o reator do meio e diminuir logo os outros dois.

Data:
— Não! De jeito nenhum. Calma. Vamos esperar a equipe de resgate chegar e avaliar a situação. A Ultra já disse: ninguém precisa saber. Hoje é sexta-feira, cinco minutos para a meia-noite. Vou falar com o diretor de comunicação para ele impedir a divulgação de qualquer notícia. Liga de novo esse bagulho que está na parede.

Dire:
— Ele só comunica com o pessoal da segurança externa. O Ministro já tinha sido alertado e está vindo. Vocês não estão escutando o barulho do helicóptero?



Dire:
— Ele está pousando no heliporto, dois andares acima desta sala.

Data:
— Maravilha! Por que não me avisaram antes que tinha uma saída lá em cima? Vamos aproveitar e ir embora com ele. É só abrirem essa porta de merda. Vocês falavam do inferno. O céu está nos esperando dois andares acima.



Data:
— Asno, imbecil, jumento! Onde está o helicóptero?

Mini:
— Não estou sabendo de nada. Só recebi o chamado para vir aqui. O código indicava segurança nacional máxima, ou prioridade estratégica total. O que está acontecendo? Ultra, quem são essas pessoas?

Ultra:
— Já vais ficar sabendo.

Mini:
— Tenho a impressão de conhecer essa mal educada. Vou ligar para o meu agente, digo, para o meu advogado, para iniciar um processo. Ninguém grita assim com um Ministro de Estado. Ninguém me ofende impunemente. Está pensando o quê?

Data:
— Estou pensando que tu és um quadrúpede, um asinino que zurra, iô, iô, iô-iôôh. Estou pensando que nós fizemos bobagem financiando a campanha de uma besta. Moleque bonitinho, influencer, impulsionamos tua carreira para ganhar aquela eleição quase perdida. Depois, o fofo cai nas graças da presidente, vira Mini Ministro. Na primeira incursão emergencial, pousa na cobertura e manda o helicóptero embora! Tua querida protetora não vai te salvar dessa asneira.

Mini:
— Isso não é uma filmagem? Ultra, me explica o que está acontecendo.

Dire:
— Senhor Ministro, estamos enfrentando algo muito grave. O senhor pode entrar em contato novamente com o piloto do helicóptero?

Mini:
— Não, meus assessores não desembarcaram. Eles estão com os celulares. Ultra, por favor!

Ultra:
— Precisamos sair daqui o quanto antes. As fundações dessa torre estão quase em cima de um depósito radiativo, e parece que ele está soltando fumaça. Estamos sem comunicação, as saídas estão bloqueadas.



Dire:
— Voltamos ao início. A CEO e a Data querem se safar antes do desastre acontecer. A “otoridade” não tem ideia de nada e, valentemente, vai choramingar num canto. Se pudesse, ele faria uma live. Vice, Audi, alguma sugestão?

Audi:
— Tudo parece inverossímil. A resolução de algo tão complexo jamais depende das atitudes de quatro ou cinco pessoas trancadas numa peça. Deve haver gente lá fora se preocupando.

Vice:
— Acho que nada acontecerá logo. Mesmo quem está com cargos de responsabilidade custa a se dar conta das ameaças. As pessoas comuns ficam sentadas, assistindo. Pensam que esse tipo de perigo acontece lá longe, não os afeta, que basta ter boa vontade para sobreviver. Ficam conectados nas redes sociais, enviando likes e dislikes e assinando petições online. Falta ou excesso de informação? De jeito nenhum! É preguiça mental, desinteresse, negacionismo e, lá no fundo, uma pulsão de morte. A vida contemporânea é complicada? A vida sempre foi complicada.

Audi:
— O senhor Vice-presidente não sabia de nada, não tinha nenhuma responsabilidade? Esse discurso é uma manifestação tardia de consciência culpada. Se ele não vier acompanhado de atitudes, além de tardio, é papo inútil.

Vice:
— Pois é…

Ultra. Vice. Dire. Audi. Data.

— Inúteis…

— Assunto grave… Colapso… Ninguém precisa…

— Custos… Celular… Inferno…

— IA… Água…

— Asno…

— Água…



— Inúteis…

— Assunto grave… Colapso…

— Ninguém precisa…

— Custos… Celular… Inferno…

— IA… Água…

— Asno…

— Água…

A.D. Cattani. Obras mais recentes: Elisabeth BBA (Zouk, 2025), Milhões & Milhões (Cirkula, 2020), A síndrome do mal. El síndrome del mal (Cirkula. H’Arpax, 2024) e Tenebris Diebus (Zouk, 2024).

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