A. D. Cattani
Garibaldi – RS
2ª Parte
(leia aqui a 1ª Parte)
Luz do amanhecer. Mesma paisagem externa entrevista pela janela, um pouco mais escura. O Ministro continua no sofá. Os demais, sentados ao redor da mesa, vão despertando.
Audi:
— Linda manhã. Tão bonita que anula os pesadelos da noite. Vou subir até o heliporto para ver se está acontecendo alguma coisa. Não podem ter se esquecido do Mini Ministro deixado aqui ontem à noite.
Ultra:
— E eu? Eu é que sou a importantona aqui. Por que meu motorista e os guarda-costas não vieram me buscar?
Dire:
— Além de tudo, é uma hipócrita. Aquela história de jogar tênis na sexta-feira à tarde ou ir jantar na casa de embaixador é só para despistar tuas visitas a um gatîîînho, cujas contas são lançadas como “verba de representação”. Ganhando o que tu ganhas como CEO, precisas ainda colocar as despesas do teu affaire na conta da empresa?
Ultra:
— Vamos falar de coisas importantes. Temos que sair desse prédio. Liga de novo para teus jagunços. Eles não precisariam levar a noite toda para subirem trinta andares.
Dire:
— Já liguei. Ninguém responde. Enquanto tu dormias, tentei destrancar as saídas de emergência. Foi só o prédio balançar alguns centímetros para todas as portas saírem dos gonzos e ficarem bloqueadas.
Audi:
— Justamente, não dá para subir até a cobertura, nem para descer até o térreo.
Data:
— Acho que foi um atentado. Só podem ter sido os russos ou os chineses. Vamos evitar entrar em pânico, mas olhem o estado em que eu estou. Meu vestido de festa novo amarrotado, não acho minha bolsa. Por que meu celular não funciona?
Dire:
— Durante as reuniões tratando de assuntos se segurança nesta sala funciona um bloqueador de sinal.
Ultra:
— Me lembrei de uma coisa. Éramos seis e continuamos todos aqui. Tinha uma sétima pessoa. Não lembro se era homem ou mulher. Pela roupa, era homem e não parecia chinês. Talvez um agente infiltrado. Ele entrou trazendo uma bandeja com coisas que foram colocadas no frigobar. Alguém sabe quem é ele?
Dire:
— Boa lembrança! Vou conferir. Olhem, temos água e sanduíches. Podemos morrer das radiações, mas não de fome. Ah, o Minion acordou. Teremos que repartir tudo por seis.
Mini:
— Continua tudo igual? Vocês não providenciaram nada? Eu tenho compromissos, preciso informar meus followers, quero dizer, meus eleitores.
Ultra:
— Vocês se deram conta que não faltou energia elétrica? Sei o que aconteceu. Esse prédio deve ter sofrido um pequeno abalo nas fundações e balançou alguns milímetros. Nada grave, ele foi feito para aguentar até um terremoto. Vocês são uns frouxos. Vou reestabelecer a autoridade.
Dire:
— Balançou alguns centímetros. O problema não são os terremotos. É o que está fervendo aí embaixo.
Data:
— Exceto pelas portas trancadas, não aconteceu nada. Pensem nas pessoas em casa ou passeando durante um fim de semana tranquilo. Vamos estragar isso fazendo alarmismo? Olhem pela janela, que belo dia… ahn, apenas algumas nuvens pretas. É só termos paciência e os serviços de resgate logo chegarão. Dire, Audi, vocês fizeram muito barulho por nada.
Entra o copeiro e, sem falar, aponta para a janela.
Dire:
— É preocupante, parece não ter vento e as nuvens estão cada vez mais pretas. Vamos acender as luzes da sala.
Data:
— Onde estava esse sujeito? Ele é a sétima pessoa. Número trágico da cabala chinesa. Os chineses são dissimulados.
Dire:
— É o copeiro. Ele serve água, café, sanduíches. Ele está conosco desde o início e trabalha todos os dias fazendo as mesmas coisas. Apesar de tempos em tempos reclamar do comprimento do cabelo, Ultra nunca tomou conhecimento da sua existência. Se os chineses o tivessem recrutado, teriam providenciado um uniforme mais bonito. Cabala chinesa? Num concurso de asneiras, essa ganharia o primeiro prêmio.
Audi:
— Estamos perdendo tempo. Já deu para saber como cada um pensa e como vai agir. Podemos fazer uma votação. Ultra e Data votam para dar o fora. Dire e eu votamos para ficar aqui e resolver o problema. Quem vai desempatar é o Vice que…
Data:
— Votação? Excelente ideia! Vamos votar. O Mini Ministro não conta. Vocês duas mulheres e o Vice, um voto cada. O copeiro, nenhum; eu e a Ultra, alguns milhares. Além do mais, eu represento os outros acionistas, então, mais alguns milhões de votos.
Ultra:
— A Data tem razão. Eleição democrática vencida por larga maioria. Eu assumo o comando e quero obediência absoluta. O que aconteceu foi algo sem importância. Vocês ficam inventando problemas do nada. Vice e Dire, vocês serão removidos das funções. Audi, teu contrato termina hoje e tu estás proibida de entrar nesta empresa. Sigilo absoluto, sob pena de processos judiciais. O Mini Ministro é uma ficção e o copeiro será deportado.
Data:
— Ultra, querida, eu sempre soube que tu és brilhante.
Ultra:
— Vou me encarregar pessoalmente do caso. Se qualquer informação vazar, vou declarar que é teoria da conspiração ou fake news. A maioria das pessoas não quer se preocupar com bobagens ambientais. Elas querem ordem, querem tempo para interagir nas redes sociais. Data, querida, esquece essas invejosas, vamos viajar o mais rápido possível. Não precisamos dar explicações para ninguém.
A paisagem vista pela janela desaparece. As luzes da sala são apagadas. Ouve-se um novo estrondo externo. Por um segundo, um clarão amarelo ilumina os sete personagens petrificados.
Breu completo. Dez segundos de silêncio. Resmungos ouvidos na plateia. Silêncio.
A escuridão continua total na sala e no palco. Nem os sinalizadores de saída de emergência estão ligados. Barulhos mais fortes de gente se movimentando na plateia. Ouvem-se vozes: “Palhaçada”, “Abram a porta”, “Quero sair”, “Sai, pô”, “Não tem luz nessa peça?”, “O que houve em Angra?”, ”Nada, que eu saiba”, “O que está acontecendo?, “Acendam as luzes”…
A.D. Cattani. Obras mais recentes: Elisabeth BBA (Zouk, 2025), Milhões & Milhões (Cirkula, 2020), A síndrome do mal. El síndrome del mal (Cirkula. H’Arpax, 2024) e Tenebris Diebus (Zouk, 2024).
