José Francisco Hillal Botelho
Bagé – RS
O conto foi publicado também no livro O novo horror (O grifo, 2021).
Excerto do VOCABULÁRIO MIRADORINO, obra incompleta de Feliciano Pacheco:
BRUXA: A palavra, é claro, nos chegou por meio dos sesmeiros açorianos e dos flibusteiros portugueses; mas seus significado, na região geral de Mirador e especialmente na Sesmaria Perdida, é diferente daquele que lhe dão na Europa. Ora, bem sabemos que o colonizador ou invasor, ao pisar na terra de seu butim, costumava dar nomes velhos a coisas novas, feito um Adão secundário, a decalcar palavras já existentes em seres que via, ou supunha ver, pela primeira vez. Assim, por muito tempo, em Mirador, chamou-se de tigre a onça-pintada; de calhandra o sabiá-do-campo; e de corvo o carcará. Da mesma maneira, chamou-se inadvertidamente de bruxa uma criatura que em nada se parece com a típica frequentadora de Sabás que assombrou a Idade Moderna europeia. A Bruxa miradorina não tem, nem jamais teve, forma humana: é um ser fantástico, tal qual a Boitatá e o Urutau Maior. Habita lugares inóspitos, como o fundo de um matagal ou a fenda de uma caverna; dali não pode sair, e ali seus poderes estão confinados. Dizem que enxerga pelos olhos de alguns animais; assim se explica que algumas criaturas fitem de maneira insistente os viajantes em regiões semisselvagens. Ciumenta de seu território, a Bruxa pune aqueles que os invadem e não raro escraviza os transgressores, obrigando-os a viver eternamente no domínio encantado, como seus servos.
Em minhas pesquisas, encontrei referências a três Bruxas que habitam, desde tempos insondáveis, a região da Sesmaria Perdida. Abaixo, apresento um relato extraído das Memórias de Desventura e Espanto no Continente Austral, de Juan Ortiz de Guzman, publicada em Paris, em 1851. Ex-padre católico, Guzman renunciou à batina (e à moralidade cristã de forma geral) durante uma estadia nos ermos ao Sul do Brasil. Acompanhado por um certo Archimbold Soames, de Devon, realizou uma estranha viagem pela região do Sumidouro, por volta de 1840. Ambos haviam cometido, juntos, certo delito contra o exército imperial, em Santana dos Desaparecidos, e tentavam alcançar a fronteira do Brasil. O que supostamente lhes aconteceu naquela viagem está relatado nas próximas páginas.
“Tínhamos passado da Coxilha do Fogo e entrávamos no Sumidouro — região assim conhecida pela quantidade de trânsfugas que ali comumente desapareciam. Guiavam-nos dois charruas, sobreviventes de um massacre ao sul; sem eles, não teríamos como achar caminho transitável entre os morros apinhados e os paredões rudes, cobertos de buritis. Nossa ideia era atravessar a região hostil, despistando as tropas imperiais — que talvez estivessem ainda em nosso encalço, pelo incidente ocorrido em Santana dos Desaparecidos. Após avançarmos por metade de um dia, eis que avistamos, assomando numa cúspide formada por penhascos, um vulto verde-cinzento, que afrontava o céu nublado como uma espécie de torre natural. Não foi preciso que os guias nos explicassem: imediatamente soubemos estar olhando a Pedra do Castelo, da qual tanto ouvíramos falar naqueles sertões estranhos. O nome dessa formação rochosa é algo enganador: não há, nem houve nunca, qualquer castelo ali; com efeito, em todo o Sumidouro, jamais se ergueu morada humana além de algum extraviado rancho de barro, feito de improviso por desertores ou celerados. A alcunha da Pedra vinha precisamente de seu desenho tirante a fortaleza solitária. Erguia-se na distância, coroando a serrania quebrada e dominando as solidões; um fiapo de neblina lhe envolvia a cúpula; e atrás dela ia se erguendo a lua crescente, como que a brotar de suas penhas.
Era uma visão fantástica, sem dúvida; mas, no que dependesse de mim, poderíamos simplesmente contorná-la e seguir até o Tucumirim, onde pegaríamos a balsa. Minhas intenções, no momento, resumiam-se a escapar daqueles confins e encontrar um modo de voltar ao Velho Mundo. Logo descobri, no entanto, que Mr. Soames tinha ideias diferentes. Ao fim da tarde, à beira do fogo, ele comunicou seu desejo de avançar até a Pedra, pois desejava fazer, em seu caderno de desenhos, alguns registros da fauna e flora locais. Não discuti. Fora ele quem arranjara o pagamento para os guias, enquanto eu ficara de me entender com os balseiros do Tucumirim, aos quais conhecia de outras desventuras. Pareceu-me justo que fizéssemos um pequeno desvio para saciar seus caprichos de biólogo diletante. Ademais, perscrutando o horizonte, para leste, já não se viam traços das forças imperiais. Talvez houvessem desistido de nos perseguir. Diversas fontes nos haviam garantido, com efeito, que ninguém viria em nosso encalço se entrássemos no Sumidouro.
A reação dos guias, ao escutarem o desejo de Mr. Soames, foi bem menos favorável que a minha. É bem verdade que os charruas, como os patagões, são naturalmente fleumáticos e apenas em momentos extremos deixam transparecer algum vestígio de emoção na fisionomia severa. Porém, notei sua relutância por meio de certas cifras que, ao longo do convívio, me acostumara a identificar. Não responderam de imediato; por um longo tempo, evitaram olhar diretamente para Mr. Soames; fitaram as chamas, um deles cutucou as brasas; depois, conferenciaram brevemente em sua língua secreta, na qual nenhum forasteiro jamais adquiriu fluência (conosco, falavam às vezes em espanhol; às vezes, em português; às vezes, numa espécie de idioma bastardo). O charrua mais velho, Yotiguar, vestia um resto de cayapi por cima de ceroulas de chita; o mais novo usava roupas à castelhana e o conhecíamos apenas pelo apelido de Crispín. Eram parecidos, talvez parentes, mas Yotiguar se distinguia por uma única mecha grisalha e uma cicatriz recente na testa. Foi ele quem pronunciou a decisão conjunta. Disse que nos levariam até a orla dos matagais e ali se deteriam, porque não desejavam chegar às vistas da salamanca. A palavra “salamanca”, naquelas regiões, refere-se a certas cavernas ditas encantadas e cujas profundezas jamais foram totalmente sondadas. A Salamanca do Castelo era célebre na Sesmaria Perdida, e sobre ela já escutáramos diversos relatos.
Mr. Soames concordou com a exigência dos guias. No dia seguinte, partimos cedo, desviando-nos brevemente para o noroeste.
Em pouco tempo de cavalgada, notamos que a natureza ia se alterando acentuadamente: era como se a Pedra emanasse uma atmosfera própria. As sombras eram mais fundas; as plantas, mais cerradas; e os animais já não pareciam ter exatamente as mesmas formas que avistáramos algumas léguas atrás. Aqueles arbustos espinhosos, que os nativos chamam de gravatás ou caraguatás, atingiam por ali alturas assombrosas, e de tal forma se emaranhavam as ramas perfurantes que às vezes deixavam o caminho intransitável. Subindo um declive, por uma trilha que só nossos guias conseguiam enxergar, avistamos enormes aranhas verdes penduradas em teias grossas, que encimavam nossa passagem como arcos estendidos entre as árvores. Ao descambar a tarde, vimos um jaguar totalmente preto descendo por um rochedo; nossos cavalos ficaram sobressaltados e só se acalmaram graças a certos esconjuros sussurrados por Yotiguar. Avistei muitos pássaros cuja aparência não me era familiar: por exemplo, uma espécie de urubu branco e amarelo, com um olho dourado e outro verde. Mais um detalhe curioso — e, admito, um pouco desconcertante — era que os bugios ali não gritavam, nem chiavam, nem emitiam qualquer barulho vocal: apenas nos fitavam dos galhos altos, com seus olhinhos brilhantes no anoitecer.
De tempos em tempos, ao longo da viagem, Mr. Soames sofreava o cavalo para fazer esboços no caderno; porém, notei que desenhava com um ar algo distraído, o que me deixou um tanto surpreso, tendo em vista a variedade de coisas estranhas que nos cercavam. Na metade do segundo dia, sentimos uma espécie de bafejo frio por entre o cipoal; os guias quiseram parar; mas eu e Mr. Soames avançamos até o esgarçar da mataria. A cerca de cem braças, morro acima, erguia-se o paredão da grande Pedra, rasgado na base por uma fenda triangular. Dali se emanava aquela espécie de miasma gelado. Lá atrás, os charruas armaram seu bivaque ao abrigo de umas taineiras, prendendo os cavalos num cercado feito por dois laços esticados. Caía a noite, e imaginei que, saciados os interesses zoológicos e botânicos de Mr. Soames, poderíamos partir ao amanhecer. Contudo, enquanto os guias alimentavam o fogo, meu companheiro me chamou à parte e expressou seu desejo de adentrar a salamanca à primeira luz do dia seguinte.
Nesse ponto, abandonei minha relutância natural e expressei a opinião que me parecia mais justa, qual seja: não fazia sentido algum meter-se naquele buraco; já víramos estranhezas suficientes aqui fora; e a escuridão de uma gruta profunda não era o ambiente apropriado para se fazerem desenhos! Nesse momento, Mr. Soames ergueu seus olhos acinzentados e quase mortiços; passou a mão pelas suíças ruivas e fez um gesto de ombros, como quem desiste de uma farsa. Confessou-me que não viera ali para desenhar macacos e espinheiros; seus interesses eram outros e, se eu me dispusesse a ajudá-lo, era possível que disso tirássemos um ganho substancioso.
Antes de partirmos de Santana dos Desaparecidos — continuou —, ele escutara uma conversa entre dois vaqueiros, do tipo que por essas bandas se chamam changadores, a respeito da formação rochosa a cuja sombra agora nos encontrávamos. Segundo o rumor local, havia muitos anos um certo padre jesuíta, por nome Covarrubia de Las Palmas, metera-se no Sumidouro, carregando consigo um baú de antigas riquezas, salvas da ruína de sua ordem; dizia a lenda que fora visto pela última vez a cavalgar seu jumento em direção à Pedra do Castelo. A crença geral era que o tesouro de Las Palmas se encontrava ainda no interior do cerro penhascoso. Mr. Soames pretendia afrontar aquelas trevas com um de nossos candeeiros e assim experimentar sua Sorte.
Para contrapor sua explanação, fiz referência a outro rumor, que eu próprio havia escutado: o de que essas grutas eram fatais, e quem nelas entrasse não mais retornava ao convívio dos Homens. Acrescentei que todas as minhas superstições haviam sido abandonadas junto à batina; mas que, se tais rumores circulavam, era de se imaginar que houvesse na Salamanca do Castelo algum perigo natural de grande monta. Não seria inconcebível que se abrisse lá dentro algum abismo, ou que no fundo das grotas morassem bestas-feras sanguinolentas. Mr. Soames redarguiu que tais riscos eram inevitáveis para quem busca a Fortuna e acrescentou que levaria seu plano adiante, ainda que eu decidisse partir sem ele. Disse-o naquele tom meio fosco que dava a todas as coisas: um modo de falar que era ao mesmo tempo firme e esbatido, como a cor de seus olhos. Todos sabem que não me agrada discutir, e como não houvesse alternativa perceptível, aceitei aguardar que realizasse suas explorações; recusei-me a entrar na caverna, mas disse que o aguardaria aqui fora durante dois dias. Findo o prazo, prosseguiria até o Tucumirim. Ficamos assim combinados.
Os charruas não chegaram a escutar nossa conversa; mas as intenções de Mr. Soames ficaram evidentes na manhã seguinte, quando apanhou o candeeiro nos arreios e começou a empapar o chumaço de óleo. A princípio, nossos guias não disseram nada, limitando-se a sorver, junto ao borralho, a sua infusão pagã, preparada com água quente numa cabaça. Mr. Soames estava apanhando uma manta de carne seca no alforje, quando Yotiguar depôs calmamente a cabaça fumegante e disse estas palavras, que não esqueci:
— Agazanup o’zoba.
Mr. Soames deteve-se com a mão dentro do alforje. Virou-se e olhou para Yotiguar. Era raríssimo que os charruas pronunciassem, em voz audível, qualquer coisa de sua língua secreta. Também supus que a frase devesse conter algo importante, e estava prestes a perguntar o que significava, quando o charrua mais jovem, estendendo-se um pouco para apanhar a cabaça, disse em português, num tom casual e meramente informativo:
— A Lua fará que te arrependas.
No momento, achei que fosse uma espécie de praga ou afronta: talvez os guias não quisessem ficar ali esperando, no coração obscuro do Sumidouro; e talvez se ressentissem das meias-verdades que Mr. Soames dissera a todos nós (e, nisso, eu próprio não poderia culpá-los). Um cisco de luz tremeu nos olhos parados de meu companheiro: seria um sinal de receio, estranhamento, raiva? É sabido que aos ingleses, mesmo àqueles mal situados nas hierarquias de seu país, repugna serem confrontados pelos habitantes de outras terras. Temi que a situação acabasse mal, pois Mr. Soames trazia à cintura a garrucha e o sabre, e nossos guias andavam aparelhados de adagas. Para meu alívio, contudo, vi a chispa esmorecer nos olhos de meu companheiro; e sua mão voltou ao alforje. Afinal de contas, não era a primeira vez que nossos guias se expressavam de forma enigmática. Guardando a carne no gibão, Mr. Soames acendeu o candeeiro com a pederneira e levou a mão ao chapéu.
— Bem, amigos, — disse — interpretarei seu adágio como uma metáfora.
Deixou o chapéu sobre a sela, despediu-se de mim com um aceno de cabeça e pôs-se a caminhar em direção à caverna.
Os charruas seguiram tomando sua beberagem, de tempos em tempos preenchendo a cabaça com a água de uma panela improvisada, que chiava na fogueira. Avancei alguns passos além do arvoredo e fiquei olhando o vulto de Mr. Soames, que agora entrava no triângulo de sombra. A brasa da lâmpada piscou ao contraste das trevas, depois sumiu. Voltei à beira do fogo; fiquei pensando nas palavras de Yotiguar e na tradução fornecida por seu parceiro; mas achei melhor ficar em silêncio, pois sabia que seria inútil pedir-lhes explicações.
Dias mais tarde, compreenderia que aquelas palavras não eram uma praga, nem sequer uma ameaça: eram um aviso.
***
Passei o dia sentado à raiz de uma taineira, lendo a Vulgata — um dos hábitos de meu passado clerical que, por motivos estéticos, reluto em abandonar. Yotiguar e Crispín pareciam ainda mais quietos que o habitual; nem sequer conversavam entre si, e todas as palavras que pronunciavam, dirigiam-nas aos cavalos, para acalmá-los. De tempos em tempos, seus nitridos se erguiam na sombra do matagal, embora quase já não houvesse sinal de animais selvagens nas redondezas: tudo à volta da Pedra parecia silencioso e imóvel. Avistei apenas, o cair da noite, pousado sobre uma rocha ali perto, um dos estranhos urubus locais: a lua cheia, que vinha subindo pelos penhascos, delineava a silhueta angulosa e também destacava a brancura insólita de suas penas. Ficou ali me olhando por algum tempo, depois saltitou para dentro do matagal.
No alvorecer do dia seguinte, pestanejando os últimos vestígios de sono, me sentei junto ao borralho e tive um sobressalto: do outro lado da fogueira, me fitava um par de olhos desencontrados — um fulgor dourado e outro azul. Era, de novo, o urubu. No lusco-fusco da aurora, sua plumagem parecia de um azul que se ia pintando de rosa. De repente me perguntei há quanto tempo a criatura estaria ali parada: a noite toda? Os charruas estavam acordados havia muito tempo e agora cuidavam dos cavalos. Estávamos sós, o urubu branco e eu. Desagradava-me a situação: apanhei um carvão frio e atirei em seu bico. O animal gingou para um lado, gingou para o outro, depois recuou lateralmente para dentro de um gravatal.
Fui lavar-me num córrego e me sobressaltei com a imagem trêmula de meu próprio rosto; há quanto tempo eu não me detinha para olhar a mim mesmo numa superfície de água! E há quanto tempo eu não via um espelho de verdade! Aquele que anda pelos ermos acaba esquecendo suas próprias feições; e quando volta a reencontrá-las, nem sempre tem uma experiência agradável. Nossos olhos fitam a si mesmos como se observassem a efígie de um animal, ou um ícone desconhecido que subitamente vem à tona… Que coisa estranha é nosso próprio rosto, quando consideramos as coisas como realmente são!
Tentei ler, mas não consegui. Por volta do meio-dia, sem ter mais o que fazer, e agindo de forma vagamente automática, acendi o segundo candeeiro e subi a encosta até a boca da caverna. Musgos fosforescentes orlavam a fenda, de forma que a escuridão ali emoldurada parecia ainda mais densa. O frio que avançava da furna tinha uma natureza invasiva e parecia meter-se pelas narinas e por baixo das unhas, como um óleo. De repente, ocorreu-me que, se Mr. Soames atrevera-se a entrar naquele buraco, por que eu não faria o mesmo? Ousei avançar, sentindo o beiço de rocha bafejar sobre minha cabeça. Uma vez lá dentro, passei a observar um curioso fenômeno. Eu dava um passo nas trevas: a chama do candeeiro se contraía. Dava outro passo: e o lume minguava mais um pouco. O exíguo clarão projetado pela lâmpada não delineava coisa alguma — parecia esvanecer-se diretamente na matéria da sombra. Contudo, eu pensava avistar, em algum ponto indefinido lá na frente, uma espécie de faísca, como um fragmento de lua ou um vagalume trêmulo. Não havia parâmetro para avaliar a distância: aquele brilho perdido, que nada iluminava, poderia estar a alguns palmos de meu rosto, ou uma légua para dentro do abismo. Seria a lâmpada de Soames? Gritei seu nome. Porém, minha voz foi engolida pela sombra: tive mesmo a impressão de que o escuro me entrava na boca, tapando-a. E a luzinha fugidia, de tanto que a fitava, parecia ir-se gravando em minhas retinas: permanecia fixa à minha frente quando eu pestanejava, assim como às vezes um espectro do sol fica desenhado no interior de nossas pálpebras. Enquanto isso, a chama do candeeiro continuava a minguar. E era fácil calcular que, após algumas braças, àquele ritmo, extinguir-se-ia completamente.
Nesse instante, lembrei o célebre trecho do Eclesiastes: Vanitas vanitatum, et omnia vanitas. Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade — inclusive a valentia… Achando que não fosse uma boa hora para ser vaidoso, dei meia volta e retornei ao bivaque.
Os charruas estavam lá, bebendo aquela coisa que não terminavam nunca de beber; notei que os alforjes estavam fechados, como se esperassem partir em breve. Tive de piscar os olhos várias vezes para apagar a luz espectral das órbitas; pensei que talvez fosse o momento de provar da vinha de Noé, ou alguma variante. Apoiado à taineira, dei uns goles no odre de aguardente, que trazia em minha própria bagagem, e comecei a considerar a cruel, mas justa possibilidade de partir com o raiar do sol, ainda que para isso tivesse de deixar atrás meu outrora comparsa de maus feitos. Sopesava esses pensamentos, deixando a aguardente queimar minha garganta, quando, no perímetro do laço, um dos cavalos arregalou os olhos e recuou, com um relincho agudo. Olhei para a encosta. Por ali vinha descendo uma figura esfalfada e tétrica. Era Soames. Faltavam-lhe a garrucha e o sabre; as roupas estavam rasgadas em vários pontos; e as mãos sangravam. O que mais me intrigou, no entanto, foi que trouxesse os olhos vendados com um farrapo de sua própria camisa.
Fiz que Soames se deitasse; dei-lhe água; removi brevemente a venda, mas ele pestanejou com força, pois o sol da tarde lhe feria as vistas, já desacostumadas à luz. Decidi só descobrir-lhe os olhos quando anoitecesse. Sua voz parecia mais presa do que rouca: era como se estivesse meio afogado. Após beber meio odre de água, e um quarto de aguardente, o dom da fala foi-lhe retornando aos poucos. Consegui pô-lo sentado; e ele conseguiu expelir, de forma entrecortada, o que lhe acontecera na salamanca. (Só mais tarde percebi que Yotiguar e Crispín não se haviam movido para ajudá-lo. Observavam-nos à distância, como quem contempla algum evento natural; e iam alimentando a fogueira à medida que a tarde tombava).
A princípio, Soames relatou uma experiência semelhante à minha: a chama de sua candeia minguava à medida que avançava pela caverna, e fora inútil alimentá-la com mais óleo. O pobre Archimbold, contudo, lera o Eclesiastes com menos cuidado que eu, e não lhe ocorrera que de nada serve mostrar coragem num lugar onde ninguém mais pode vê-la… Enfim, prosseguiu até que a lâmpada se apagou; e, depois disso, já não pôde voltar. As paredes de pedra haviam sumido; percebeu que não se encontrava num túnel, mas em algum espaço amplo e inavegável. Por mais que perscrutasse a treva, não conseguiu avistar a luminosidade da entrada; enxergava apenas a chispa, o vagalume fátuo, a lasca de lua que eu também avistara, e que pairava sempre à mesma altura, a uma distância impossível de calcular. Primeiro Soames tentou seguir a luzinha; depois, tentou fugir dela; mas, por mais que desse voltas, o brilho maldito estava sempre à sua frente. Percebendo que o lume estranho ao mesmo tempo o desorientava e o atraía (era-lhe custoso fechar os olhos), rasgou a camisa e improvisou uma venda. Tentou gritar, mas sentia que as trevas o engasgavam. Andou por um tempo indeterminado (não sabia se passara horas ou dias lá dentro); às vezes trombava contra penedos, esfolando as mãos; deixara os apetrechos caírem pelo caminho, pois tudo parecia impossivelmente pesado. Por fim, como num sonho, pensou escutar seu próprio nome, em alguma distância impossível; andou naquela direção e, assim, seguindo aquele meu único grito, conseguira voltar à luz do sol.
Quando terminou de fazer seu relato, o sol estava posto. Amornei uma água para lhe lavar o rosto e comecei a desamarrar a venda.
— No lo hagas — disse Crispín.
Virei-me para fitá-lo. Ele me devolveu o olhar de forma neutra e ergueu vagamente a mão, apontando para o céu, ao leste. A lua cheia vinha surgindo atrás dos penedos, espalhando um incêndio branco sobre a noite do sertão. O clarão frio e preciso delineava os rostos de Crispín e Yotiguar; esboçava o vulto dos cavalos no cercado; traçava pormenores nas rochas, nos troncos, e pincelava até mesmo as florezinhas da encosta. Era uma noite tão clara que eu poderia ler minha Vulgata sem candeia.
De qualquer forma, ignorei a advertência de Crispín e puxei a venda, descobrindo os olhos de Mr. Soames. No início, ele bateu as pálpebras intensamente, como fizera da primeira vez; mas logo suas retinas perceberam a ausência do sol, e se acalmaram, e se detiveram por um instante em meu rosto — sobre o qual o clarão do plenilúnio incidia em cheio, agora que a lua emergira totalmente dos penhascos e navegava solta entre a Pedra do Castelo e a orla do mato.
Neste ponto, as palavras me faltam; mas farei o possível para descrever o que ocorreu nos olhos de Mr. Archimbold Soames, ao contemplar minha face à luz da lua cheia. Imaginem um poço de águas foscas e paradas: imaginem que as águas subitamente se turvam, começam a borbulhar e transbordam. Os olhos de Soames, geralmente tão imóveis e sem expressão, eram essa água; e a coisa que as fazia ferver era o terror. Percebi que, até aquela noite, eu jamais contemplara o medo verdadeiro: mas o contemplava agora, nos olhos de meu companheiro, enquanto ele fitava as minhas próprias feições. Na cara de Soames, nenhum músculo, nenhuma linha parecia estar no lugar certo: o horror lhe dera um novo semblante. Apavorado por seu pavor, recuei. O grito dele, quando finalmente veio, foi quase um alívio, pois me pareceu menos terrível que aquela máscara muda e cravada na sombra.
Archimbold Soames precipitou-se pela noite enluarada como um homem acossado por demônios. Cada vez que seu olhar incidia em qualquer coisa, um novo grito lhe subia da garganta já esgarçada. Viu Yotiguar; viu Crispín; viu os cavalos; viu as árvores; viu as pedras. Todas essas imagens, uma a uma, causavam-lhe novo paroxismo. Era como se Archimbold Soames houvesse acordado de repente num mundo infernal, onde até os ínfimos pormenores fossem ininteligíveis e intoleráveis. Ao mesmo tempo, parecia incapaz de fechar os olhos. Em certo momento, tropeçou para dentro do mato, como se buscasse se enfurnar na sombra; mas a lua era tão intensa que se filtrava pela galharia; vi Soames tombar no chão e, de repente, olhar as próprias mãos num raio de luar. Seus gritos cessaram: o horror agora o emudecera. E, como se houvesse ultrapassado um limiar, como se houvesse compreendido que não lhe restava esperança, ou como se o último frio de sanidade acabasse de se romper, Soames ergueu-se e disparou com uma agilidade animalesca encosta acima, na direção da salamanca. Segui-o, correndo, rogando que voltasse; mas foi inútil. Ao clarão prateado, vi Archibold Soames, de Devon, meter-se novamente pela boca da caverna — e de lá, pelo que me consta, nunca mais saiu.
— La Bruja — disse Yotiguar, quando voltei perplexo ao bivaque. —Ela embruxou os olhos dele.
— Com um gesto de cabeça, apontou o céu. — Agora ele só enxerga o que a Lua quer.
— A Bruxa? — eu balbuciei, estupidamente.
— Si — Yotiguar lançou um graveto ao borralho, e apontou a Pedra. — A Bruxa que vive lá.
***
Aqui nada direi do restante trajeto pelo Sumidouro, da balsa no Tucumirim, de minha travessia aos Campos Neutrais, depois a Montevideo, e finalmente ao Velho Mundo. Sobre esses eventos, o leitor poderá consultar outros capítulos de minhas Memórias. Vale repetir, contudo, as informações esparsas que consegui extrair de Yotiguar e Crispín ao longo da viagem e que talvez lancem alguma luz — perdoem-me a blague de mau gosto…— sobre o destino de Archimbold Soames.
A Bruxa da Pedra amaldiçoa os olhos daqueles que invadem seus domínios. Quando a luz da candeia se extingue, o feitiço entra pela retinas e de lá não sai. Quem tem os Olhos Embruxados jamais poderá viver entre outros homens — a menos que encontre um modo de viver apenas durante o ápice do dia. Pois, para ele, sempre que a lua surgir no céu, o mundo será transfigurado. A tênue lua das tardes distorcerá os rostos e as coisas; a lua minguante ou crescente despertará imagens inquietantes; e o plenilúnio revelará a Terra como se quem a houvesse criado não fosse Deus, mas o Diabo; ou, similarmente, como se o mundo fosse criação de uma divindade mórbida, alucinada. A Doença da Lua — assim a chamavam meus guias — só se aquieta caso o amaldiçoado volte para o interior da salamanca, onde andará para sempre com os olhos enfarados de sombra, fugindo do pavoroso mundo exterior e seguindo o lumezinho inalcançável que o faz dar voltas e voltas e voltas na escuridão… Ad aeternum.
Quem é essa Bruxa? Donde veio? Qual sua forma? Qual o seu nome? A respeito disso, Yotiguar e Crispín nada me disseram. E, pensando bem, acho melhor não saber.
Anos se passaram e ainda hoje, em meu apartamento na Rue du Pas-de-la-Mule, às vezes acordo de repente, pensando se Archimbold Soames, nas trevas da salamanca, haver-se-á deparado com seus companheiros de infortúnio — como o padre Covarrúbia de Las Palmas, que lá se meteu para esconder seu tesouro e nunca mais saiu. O que farão eles, os embruxados, sob o domínio de sua Mestra? Esse, contudo, não é o pensamento que realmente me assusta. O temor vem quando me levanto e me olho no vidro da janela — e então, contra a vontade, imagino o que Soames terá visto ao olhar para mim naquela noite claríssima e terrível. Como será meu rosto sob a lua vingadora? E se aquela visão terrível — que só os olhos embruxados podem enxergar — for minha face real?
Quando essas ideias me acometem, limito-me a fechar a cortina e beber um pouco de rum. Ora, de que importa meu rosto, neste ou em qualquer mundo possível? À luz de certos astros, todos nós somos monstros.
José Francisco Hillal Botelho nasceu em Bagé (RS), em 1980. É jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema, havendo colaborado com diversos veículos de circulação nacional. Autor de “A Árvore que Falava Aramaico” (Zouk, 2011) e “Cavalos de Cronos” (Zouk, 2018). Como tradutor, recebeu dois troféus Jabuti: um por sua tradução de “Contos da Cantuária” (Companhia das Letras) em 2014, e outro por sua tradução de “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, em 2017.