Cruz e Sousa
Florianópolis – SC
Tu, na emoção desse encanto doloroso e acerbo da Arte, te sentirás, um dia, velho, fatigado, como um peregrino que percorreu ansiosamente todas as vias-sacras torturantes e perigosas.
Essa maravilhosa seiva de pensamentos, toda essa púrpura espiritual, as vivas forças impetuosas do teu sangue, agindo poderosamente no cérebro, irão aos poucos, momento a momento, desaparecendo, num brilho esmaecido, vago, o brilho branco e virgem das estrelas glaciais.
A tu’alma será condenada à solidão e silêncio, como certas formosuras claustrais de monjas que brumalmente aparecem por entre as celas, deixando no espírito de quem as vê, quase que o mistério de um religioso esplendor…
E, já assim emudecido e gelado para as nobres sensações do Amor, ficarás então como se estivesses morto – sem cabelos, sem dentes, sem nariz, sem olhos – sem nenhumas dessas expressões físicas que tornam os seres humanos harmoniosamente perfeitos.
Em vão te recordarás da doçura de mãos aveludadas e brancas, da amorosa diafaneidade de uns olhos claros…
As tuas Iedos, as tuas Lésbias e as tuas Aldas, fluidamente te passarão na memória, alvas e frias…
Pó infinitamente tratar de idéias como de astros prodigiosos, sonhaste com os opulentos, doirados prestígios da Glória; pensaste na Elevação, como na solenidade augusta das montanhas.
Mas, velho já, lembrarás um sol apagado, cuja forma material poderá persistir talvez ainda e cuja chama fecundadora e ardente se extinguirá para sempre…
Não crer em nada, não sentir nada, não pensar nada, será tua filosofia da senilidade. E, neste estado do ser, mais cruel que Budismo, deixarás, como disse Heine, que a morte vá enfim tapar-te a boca com um punhado de terra…
No entanto, pela tua retina cansada, desfilará tudo o que tu outrora amaste com intensidade: os ocasos, de verberações de metal sobre o mar e sobre o rio. Os finos frios radiantes, de azul resplandecente. A Lua, como estranha rosa branca, perfumando o ar, derramando lactescências luminosas nos campos alfombrosos. Os navios, as escunas e os hiates, todas as embarcações admiráveis, que fazem sonhar, balouçando nas ondas, em relevos nítidos, em gravuras esmaltadas ao fundo dos horizontes.
Tudo o que pensaste, o que trabalhaste pela Forma, com nervos e com sangue; tudo o que te deixou despedaçado, na amargura da luta com o estilo e com a frase, cantará grandioso, solene, como os Salmos de Salomão.
Com essa natureza mística, quase religiosa, que possues, o Mundo te parecerá uma catedral vastíssima, colossal, de biliões e biliões de torres de cristal, de safira, de rubim, de ametista, de onix, de topásio e d’esmeralda.
E, à hora longínqua de profundo luar glacial e imóvel, de cada uma dessas torres sugira um espectro branco dos teus sonhos, como uma ronda fantástica, e os sinos plangentes vibrarão ao mesmo tempo, com tristezas noturnas e lancinantes, por todo o sepulcramento de teus Ideais.
E tu, velho, embora, na torre verde d’esmeralda, ficarás egrégio, vencedor, imortal, eterno, só e sereno, ao alto, sob as estrelas eternas.
A figura central do movimento foi o negro João da Cruz e Sousa (1863-98), natural de Florianópolis. Os pais do poeta eram escravos do marechal Xavier de Sousa, o qual, quando teve de seguir para a Guerra do Paraguai, os alforriou. O menino João era tratado com todo o carinho na família do ex-senhor; recebeu boa instrução secundaria, tendo tido entre os seus mestres o naturalista Fritz Miiller. Mortos os seus protetores, teve de lutar pela vida, militando na imprensa, organizando em sua província natal a campanha abolicionista, correndo o pais de Sul a Norte como secretario ou ponto de uma companhia dramática. Em 90 muda-se definitivamente para o Rio e após um estagio de três anos no jornalismo carioca, obtém um emprego ínfimo na administrac4o da Estrada de Ferro Central. Em 93 casa-se com aquela a quem chamou “meu tenebroso lirio” (era negra como éle) e publica dois livros, um de prosas líricas — Missais — outro de versos — Broquéis. Deles costuma-se datar o inicio do movimento simbolista brasileiro. A onda de sarcasmo com que foi recebida essa arte a um tempo espiritual e barbara num meio dominado pela cautelosa lógica parnasiana contrapôs o poeta o seu bravo orgulho e a persistência febril no trabalho noturno. A má sorte o perseguia: a esposa perde durante seis meses a luz da razão; em 97 o Poeta contrai uma tuberculose galopante e morre no ano seguinte, deixando por publicar dois livros de versos — os Faróis e os Últimos Sonetos, e outro livro de prosas líricas — as Evocações. A mulher morre três anos depois, do mesmo mal; quatro filhos do casa mento morreram também.
Manuel Bandeira
Bandeira, Manuel. Apresentação da poesia brasileira seguida de uma antologia de versos. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 19 de abril de 1886 – Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968) foi um poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro, considerado um dos maiores expoentes da poesia brasileira e uma figura-chave do modernismo no Brasil. (Wikipedia)
João da Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro, 24 de novembro de 1861 — Curral Novo, 19 de março de 1898) foi um poeta brasileiro, reconhecido como o primeiro e o principal expoente do simbolismo no Brasil. Filho de escravos alforriados, teve a vida marcada pela negritude e pela causa abolicionista, pelo que recebeu as alcunhas de Dante Negro, Cisne Negro e Poeta Negro. Foi influenciado pelo trabalho de Charles Baudelaire e introduziu o simbolismo no país em 1893 com a publicação dos livros Missal e Broquéis, tendo realizado as primeiras experiências nacionais com o poema em prosa e a prosa poética. Em vida, foi reconhecido por Luiz Gama, Olavo Bilac e muitos outros intelectuais, contudo, morreu em relativa pobreza e sua obra só foi devidamente valorizada com o desenvolvimento do modernismo no século seguinte. (Wikipedia)