1
● seriamos quase nada ●
● nulos como esses q vivem ao nosso redor ●
● esses q passam com olhos e orelhas grandes ●
● esses q vivem de olhar e falar ●
● vivem como parasitas numa baleia ●
● sem viverem o mar e a sublime aventura ●
● pois não ha misterio algum ●
● so o nosso dragão o nosso soberbo dragão ●
● q vive entre nos como vivem cães e gatos ●
● mas nosso dragão ●
● não vive numa casa num quarto num canil ●
● nosso dragão é imenso descomunal e violento ●
● mora nas aguas negras dessa lagoa ●
● cor de sangue de chumbo de lama espelho ●
● essa lagoa q é nossa cara nossa alma ●
● porisso não podem ver o dragão ●
● vcs q passam vcs q so comem e passam ●
● diferentes de nos q somos o dragão ●
2
● ele é como nos ●
● não é deus não é fantasma ou doença ●
● não é coisa morta da imaginação ●
● dessas coisas q nascem por engano ●
● se reproduzem por impaciencia e lassidão ●
● como vermes de mosca na carne dos cães ●
● sem ele nosso gado adoeceria ●
● plantações seriam piores seriam terriveis ●
● queimadas seriam magras e miseraveis ●
● todos seriamos outros ●
● tão outros q não nos reconheceriam ●
● nos mesmos nossos amigos nossos pais ●
● porisso espalhamos ao redor da lagoa ●
● pedaços de carne de porco pedaços de lingua ●
● e jarras de barro com nosso melhor vinho ●
● aquilo q o dragão não come não bebe ●
● crianças servos e ratos comem e bebem ●
● e bebados e fartos rodam e gargalham ●
3
● vendemos leques de papel colorido ●
● peixes do fundo da lagoa mariscos de metal ●
● dragões de madeira de noz e ceramica ●
● carregamos o dia inteiro cestos de madeira ●
● sacos de arroz de trigo cestos de peixe e uvas ●
● pro vinho q vai todo pro nosso dragão ●
● nas janelas cintilantes vendemos ●
● papagaios negros araras brancas e melros ●
● vendemos toalhas roupas meias e panelas ●
● trenos e tendas invadem as ruas ●
● com amendoins avelãs sementes de girassol ●
● q não podemos mastigar nas ruas ●
● nas janelas esfriam e descansam ●
● bolos quentes tortas e rodelas fritas de carne ●
● de salsicha de galinhas q o dragão deseja ●
● por cima das casas vemos a montanha ●
● sentimos os cheiros do nosso mundo e rimos ●
● tudo ta sempre tão bem no seu lugar ●
4
● vivemos felizes assim ●
● nos e nosso dragão na grande lagoa negra ●
● felizes servos ratos e as crianças q dançam ●
● pra sermos ditosos não precisamos saber ●
● se o dragão sabe q vivemos tão plenos ●
● ao seu redor com a vida so pra ele ●
● no fundo da lagoa bem no centro ●
● com certeza o dragão dorme e sonha ●
● não com nossa gente tola mas com dragões ●
● as imensas guerras dos dragões ●
● é o q acalenta o dragão na bela lagoa negra ●
● dormindo como crianças no berço ●
● enquanto nos plantamos e pescamos ●
● vivendo como pulgas carrapatos caranguejos ●
● na terra na lagoa nos trabalhos do sem fim ●
● quando ele acordar não existiremos mais ●
● nem sabera q vermes viveram tanto so pra ele ●
● q nos deu alegria força servidão e grandeza ●
Alberto Lins Caldas é autor dos livros de poemas No Interior da Serpente (Pindorama, Recife, 1987), Minos (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2011) e De Corpo Presente (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2013), a perversa migração das baleias azuis (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2015), a pequena metafisica dos babuinos de gibraltar (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2016), minha pessoa sob o dominio dos barbaros (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2018), tantalo (Flan deTal, Vila do Conde-Portugal, 2019) e corpos de troia (Ibis Libris, 2021). Poema publicado originalmente em “a perversa migração das baleias azuis“. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2015.