Cadáver esquisito
o poema está com problemas gástricos
vísceras atacadas por sílabas anômalas
apirexia apneia algia anemia
o poema está em maus lençóis
sofrendo de poesia
o poema está com as hemorroidas
latejantes, as varizes inflamadas
o poema sofre de tumores e terçóis
esperança e burrice infectam o poema
todo dia é dia de pneumonia
pelos mil quelônios dos demônios!
o poema está lascado
não consegue pagar o aluguel
nem há comida no seu prato
pé quebrado, fígado estraçalhado
o poema alheia-se à estrela puérpera
“quem diria, nem parece o mesmo poema
está um trapo, irreconhecível”
taquipsiquia no real infernal
ábaco do balacobaco – polaroide
o poema é um androide
ao poema recusaram o
benefício de prestação continuada
porque o poema não presta pra nada
acabaram com o poema, mente e alma
na fila da unidade básica de saúde
o poema pensa nas ironias cósmicas
na identidade nacional (o poema aguarda
doação de sangue no hospital municipal)
o poema está fodido
§
Heartbreak Station
você sempre esteve aqui
olhando a noite por essa janela
cantando baixinho – em uníssono
com o cosmo que,
nestas noites quentes de verão,
mora em seus olhos –
the last
train out of my heart
sua avó disse que havia dito
para o seu avô que
só as estrelas podem
virar as costas para a morte
, e foi a última coisa
que você me disse
então, no súbito tumulto
guardado,
no penhasco perigoso
de um abraço apertado
de despedida,
as nuvens lá longe,
com seu nostálgico rubor de amantes,
tapou o sol que nos cobria carne e ossos
então, era isso
era tudo o que éramos
castelos de éter cuja geometria
sólida de encanto corroera-se sem piedade
pixels guardados em milhares de fotografias
em compact discs
que em breve nenhuma máquina
mais lerá
gastos e já longe da memória
levados pelo silencioso trem de carga
do esquecimento
§
Sindicato dos musgos
a aurora chega tarde
por trémulos sinais de luz
(acaso a sina, afago
no assombro, úmida e
sombria, do que se precisa
no talvez?) – lenta, incandeia (go-
ta de vida que canta à margem,
flor rugosa de vórtice e despejo)
(acaso a sina, mulher febril
que habita as ostras, cante
a bola, dê a letra, a senha,
seria só mais um coração
pescado na emboscada?)
a ruína,
quase uma arte que arde
sem alarde no estômago
de um deus covarde
(quo vadis?)
chamado abandono
vaza do morro do sonho
um veludo viscoso
de moluscos de luz
no musgo cósmico
devoram, vorazes,
o não dito, o alimento maldito,
o urro, o grito, o rito
dos roncos de suas digestões ruidosas
nenhum milagre se sustenta
calor insuportável
barracão de zinco
cai a tarde sem alarde
as borboletas
bebem as lágrimas
das tartarugas
Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 1973. É poeta, editor, tradutor e professor. Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Música possível (CosacNaify/ 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China, 2014), Nominata morfina (Corsário-Satã, 2014), Fliperama (Corsário-Satã, 2020) e O pito do pango & outros poemas (Corsário-Satã, 2024). É editor da revista de poesia Canibal.