MAIS AREIA
todas as noites mais areia nos ombros
nos olhos
nos sapatos
mais areia na memória
até não ser mais possível
contar as horas
até que o tempo se intrometa
(na areia a própria aurora)
e algo
quem sabe alguém
vire a ampulheta
§
O QUE É O TEMPO
somente
este eterno presente
que ninguém
no fundo sente
e tem formas mil
que ninguém viu
ou sentiu
somente este presente
que mal nasce já morreu
e cujo brilho
é menos luz
que breu
§
A MÁQUINA EMPERRADA
de repente o medo
de que este dia jamais termine
de que seja suspenso o filme
ali diante de todos
em pleno cine
de que cortem de vez a energia
que alimenta este dia
partido o fio que o sustenta
puxem-no da tomada
o dia
este dia
velha máquina emperrada
sob a minha biografia
§
MUDAR TUDO
há sempre os que não mudariam nada
se tivessem apenas uma chance
repetiriam cada lance
do xadrez
e fariam tudo igual outra vez
eu
por mim
mudaria tudo
empregos livros amores cidades desejos diplomas
e vejam bem
até meu longo estudo
eu mudaria tudo
no fim
se ainda tivesse outra chance
(no mesmo tabuleiro
velho e desnudo)
sim
de novo e sempre eu mudaria tudo
§
O MESMO CORVO DE POE
não sei como cheguei ao horto
àquele horto afastado
e fiquei assim meio perdido meio morto
até que a noite deitou-se ao meu lado
nada mais a fazer: nada
o irremediável enfada
o lado direito
do peito
foi então que a morte veio
me ofertar seu seio
: devo voltar pra casa
duas vezes sozinho
um longo par de asas
me aponta o caminho
Iacyr Anderson Freitas (1963) já publicou mais de vinte livros de poesia, além de três de ensaio, da novela El buitrero e do volume de contos Trinca dos traídos (2003), detentor da menção especial do Premio Literario Casa de las Américas, em Cuba, sendo também inserido na lista de títulos literários de leitura obrigatória para os vestibulandos da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-EDESP). Sua obra já foi traduzida para diversas línguas, tendo sido publicada em muitos países – Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Malta, Nicarágua, Peru, Portugal, Suíça e Venezuela –; obtendo, inclusive, quase uma vintena de importantes premiações, com destaque para as duas vezes em que conquistou o 1º lugar no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte. De seu vasto percurso bibliográfico podemos realçar os seguintes livros de poesia: Quaradouro (2007 – semifinalista do Prêmio Portugal Telecom), Viavária (2010 – 1º lugar no Prêmio Literário Nacional do PEN Clube do Brasil), Ar de arestas (2013 – finalista do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom), Estação das clínicas (2016) e Os campos calcinados (2022 – semifinalista do Prêmio Oceanos).
