Lição de ornitologia
A paixão entrou pela janela
Escancarando gavetas,
Rasgando livros,
Quebrando taças de cristal,
Pisoteando intimidades encaixotadas sob a cama,
Tombando paredes.
Paixão é pássaro truculento.
A crueldade, não.
Crueldade requer delicadeza.
§
Fragmento de um poema incinerado
… e que o amor
fosse como o Bolero de Ravel
cada vez maior
cada vez maior
cada vez maior
e silêncio…
§
Mais um soneto…
Quis escrever um último soneto
E deixar para trás as esperanças
Daquilo que se quer, mas não se alcança;
Daquilo que se diz, mas é secreto.
Suturei as palavras no meu peito,
Mas fui traído pelas circunstâncias:
Se falo, não inspiro confiança;
Se calo, mesmo assim me comprometo.
Então mais um soneto vem-me à pena
No susto de um desejo repentino;
Outros virão, às dúzias de centenas.
Engenho ardente, ainda que mofino!
Outro soneto, a mesma cantilena…
É o coração seguindo seu destino.
§
(de)Primaveril
Quanto mais o tempo passa,
menos a rememorar:
a brasa daquele desejo
derreteu ao relento
nem sequer virou cinza
(chovia uma chuva fina
de límpidas fagulhas).
Quando o sol resolveu brilhar,
era noite outra vez
e pássaros lobotomizados
esqueceram a canção.
Perderam-se os nomes das flores
e, indigente,
a Primavera
vende enfeites de papel crepom.
§
Canção do desamor
Meu amor, não te quero bem.
Não quero teu sorriso desfraldado feito
o Cruzeiro do Sul sobre a Baía
da Guanabara; quero vê-lo
arrastado pelas sarjetas, borrado de cinzas.
Teu olhar, quero-o todo
coagulado de lágrimas,
grossas como cacos de vidro;
e teus cabelos, impregnados de fuligem e orvalho,
feito a coberta dos mendigos
na Praça Princesa Isabel.
Então recolher teu corpo do meio-fio
e cobri-lo de beijos
como se de varíola, e feri-lo
de carícias, e torturá-lo de ternura.
Depois, dissecar teu sexo com a boca seca.
Mas, amor, não te quero bem.
§
Penélope
Da janela deste quarto, o Rio
de Janeiro parece mais sombrio
sob o brilho empalidecido da garoa.
Daqui vejo o mar — mancha que se alastra
devagar, com sua fluorescência
de medusas venenosas e anêmicas anêmonas.
Até mesmo o sol vaga sonâmbulo
pelos céus, à deriva e opaco
feito a íris de um gato morto,
contraindo-se atrás de toneladas de nuvens.
Quem me dera irrompesse agora
uma tempestade, abrupta
e brutal, convulsionando as ondas
num ataque epilético, mas a tarde
mantém-se inerte, anestesiada pela chuva fina.
Não há pessoas na praia.
O hotel está deserto.
Aviões derretem no Santos Dumont.
Checo o celular pela última vez.
A chuva simplesmente se cansou de molhar
e as nuvens vão se diluindo numa luz
âmbar, formando um céu cor de bronze
a pairar muito próximo de nossas cabeças.
O sol ensaia um brilho desesperado,
já corroído pela ferrugem e abafado
pela luz disciplinar dos postes elétricos,
dispostos em fileiras, como soldados.
Enquanto o crepúsculo se desfaz na púrpura
espuma de mares noturnos, choro
feito Penélope à espera do marido,
ouvindo o áspero ruído de ondas desmoronando.
Emmanuel Santiago, nascido em São Lourenço/MG, é poeta, crítico literário, tradutor e professor de Literatura. Autor dos livros “Pavão bizarro” (2014) e “A ave Lúcifer “(2020). Atualmente, reside em Jacareí/SP, e prepara um livro de haikus.