eu não faço perguntas, eu protejo o meu susto, explico à fuga porque foge, eu atraso as catástrofes, troco de vento às escondidas, troco os meus argumentos por uma trovoada autêntica, lanço uma armadilha à razão e a todas as verdades, eu meto medo ao sangue, eu peço desculpa aos relâmpagos, por amor de Deus eu minto à mentira e devolvo as perguntas para ter mais frio, eu adoeci para que a luz confiasse em mim, prometi alimentar-me com água, poeira e dúvidas, eu esvaziei as veias e nem assim a verdade me mente, eu falo por mim quando me calo, eu peço constantemente conselhos ao sono e duvido de quem não duvida, eu juro hesitar melhor e ser mais eficaz a mentir ao frio, eu tracei há muito o destino das minhas sílabas e venho agora tentar de novo, eu, isto é, se fosse eu diria de tudo isto qualquer coisa, apenas qualquer coisa.
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por vezes, muitas vezes, perco livros como se fossem amigos, ou os livros afastam-se quando os amigos saem da minha vida. os livros erguem uma cratera no lugar dos amigos, olham-me com uma terrível prudência, calam-se, envelhecem(-me). não domino a arte de me confessar a um livro, tal como há muito não o fazia com os amigos, a ferrugem disfarça a humilhação, esse vício impune de me queimar nas lombadas. trago para os livros palavras que os amigos mastigaram mal, maledicência, sapiência, benevolência, indigência, essa frágil caridade verbal onde o meu refúgio por vezes me escapa. mas alguns nomes podem atar muito bem a memória dos livros e dos amigos, a perdida espessura de ambos, esse fio de frio ao qual me seguro, como um náufrago – temível será sua doçura.
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Parte do que me arde é o vento. O ar do que me arde é em parte o vento.
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/ alheio incólume /
para mar becker.
aberto exercício indeciso – diria como se assim dirás – uma verba de algo ou uma palavra não verbal, precioso provisório me dirás então, como se ainda, ou assim ainda te disse em breve ou no desastre naquele antro ou se ainda podes dizer-me assim tão transferido para outro texto.
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não negativo, não de nada, não de ninguém, o que não disse aqui, não de alma, ou mater, ou de Halma Mater, Halma de seu nome minha mãe, mãe do texto, mãe de Halma no texto, mãe do texto.
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manhã incompleta, escrita à míngua de linguagem, paralela à manhã de abstractas vogais no centro exacto de uma vírgula. no lugar desse centro desenho o contorno da manhã, no centro incerto de um corpo, suspenso da manhã suspensa, como se assim penso quando a sombra nos fere, plácida luz de uma ferida, ferida pela manhã.
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está intacto ainda, o aceso indefeso, código de rasuras na pele, breve rasto de silêncios na língua. e sobe pela corda de um vício até à face, até muito para lá da distância onde já não vejo nem uma ruga sob o peso, sob o vagaroso peso de uma cicatriz, minha assinatura selvagem.
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demasiado cedo para sangrar; que me sagre primaveril no catre, sublime ausência.

José Oliveira nasceu em 1959 em Lisboa. Frequentou cursos de Antropologia e Etno Musicologia. Foi percussionista na área da música livremente improvisada entre 1980 e 2023 e nas artes visuais realizou performances, instalações e electrografia. Cria, investiga e colecciona livros de artista. Publicou os livros de poesia “Melancolismos” (edições Inapa 1988, prémio revelação de poesia Inasset), “Livro de Obra” (2018), “Acto de Silêncio” (2019) e “Ars Subtilior” (2022), todos em edição de autor. Autor de poesia visual publicada em inúmeras revistas e outras publicações nacionais e estrangeiras.