ENSAIO

Instinto e estigma no regionalismo

Imagem: Tomada parcial de livro da Coleção Província.

Lucio Carvalho
Bagé – RS

Versão ampliada de artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, em 20.03.2021.

Um risco que definitivamente os escritores nascidos no vizinho Uruguai nunca correram e jamais correrão é o de abordarem a sua população interiorizada e verem suas obras armazenadas na gaveta taxonômica do “regionalismo”. Para os escritores do Rio Grande do Sul, isso poderia até suscitar alguma espécie de inveja ou trauma se não constituísse esse contraste mesmo um espelho privilegiado pelo qual se pode observar e apreender o distanciamento cada vez mais radical que é travado no campo literário quanto ao impasse da representação rural na literatura rio-grandense, seus temas e dilemas.

Também para com os argentinos sentimento semelhante poderia guardar-se, pois, apesar daqueles viverem num país subdividido em províncias, não consta que sua literatura seja subdivida geograficamente. Politicamente sim, é mais provável, pois desde a publicação das obras de Evaristo Carriego e Leopoldo Lugones o estabelecimento de uma matriz em Buenos Aires se tornou presente, no entanto ao restante dos autores não bonaerenses parece nunca haver pesado a denominação “regionalista” e muito menos “provinciana”; por estranho que pareça, é como “nacional” que se costuma definir a produção literária não produzida a partir da capital Buenos Aires. O caso dos uruguaios é ainda mais radical porque o país mesmo se autodenomina “la patria gaucha“, então essa figura humana é ali mais do que central, é absolutamente natural.

Para o Rio Grande do Sul e sua literatura, de outro modo, trata-se de uma caracterização inescapável cujos personagens estranhamente vão sendo obliterados na ficção aqui produzida. O fenômeno não é recente, vem de pelo menos algumas décadas, e o desaparecimento paulatino de personagens e enredos interioranos ou rurais na literatura rio-grandense se acompanha por outros fenômenos culturais, como a preponderância dos meios audiovisuais no lazer urbano desde os anos 60, a hegemonia tradicionalista da representação popular e o crescente deslocamento para temáticas urbanas e cosmopolitas, com o recalque da representação rural dirigida aos conteúdos marcadamente históricos, nos quais vigora certa proteção conceitual e, ao menos aparentemente, baixo risco autoral.

Todo esse deslocamento vem acontecendo ao longo da história literária do Rio Grande do Sul dentro de uma perspectiva conflitiva na qual a literatura historicamente se debate entre o acesso ao “instinto de nacionalidade”, conforme proposto por Machado de Assis em 1873 e confirmado mais tarde entre os historiadores da literatura, e sua refutação pela identificação com a literatura produzida no Prata, especialmente a gauchesca. Para não complicar menos, considere-se que as relações políticas entre a província e a metrópole desde a Revolução Farroupilha foram fraturadas, competindo inclusive no destino sanguinário consequente à instalação do republicanismo por aqui. Tudo isso, todavia, nunca competiu em que os autores rio-grandenses procurassem alijar-se do sentimento nacional, apenas que desejavam manter suas características culturais e históricas a salvo de uma alienação que, ao fim e ao cabo, foi confirmar-se quase um século mais tarde, no desenlace contemporâneo deste processo.

Toda essa intenção, clarificada desde a presença de Alcides Maya na Academia Brasileira de Letras e sua tese do “federalismo literário”, entretanto nunca se confirmou longitudinalmente e, no decurso do séc. XX, produziu-se por aqui de forma concomitante uma literatura motivada na vida rural e do interior e outra levemente cosmopolita, sediada nos bairros de Porto Alegre e conformada já por interioranos emigrados. Apesar de que se consolidasse e cristalizasse uma crônica de costumes em muitos aspectos passadista e saudosista, no plano editorial a convivência com os temas urbanos era pacífica e a redescoberta da obra de João Simões Lopes Neto elevou a um patamar superior a narratividade autenticamente rio-grandense, descolando-a sensivelmente do criollismo platino.

Durante os anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, ao passo em que se confirmava um campo literário sobretudo pelo empenho editorial da Editora Globo e seus articuladores, entre eles intelectuais do porte de Augusto Meyer, Érico Veríssimo, Mansueto Bernardi, Mario Quintana e outros, o eco modernista se fez presente numa geração (a de 30) que seria revista apenas mais tarde. Neste longo período entre os anos 20 e a década de 60, o apogeu e o ocaso da Globo confundiu-se ele mesmo com o destino da literatura rio-grandense posterior e a fixação do seu “regionalismo” com edições de luxo e populares de autores que inventariavam o que se poderia talvez chamar de “instinto regional”. A Coleção Província e seus vários volumes, um sucesso comercial sem precedentes, foi o exemplo mais perfeito do casamento de uma necessidade de afirmação identitária, autores produtivos e sistema azeitado.

No entanto, a expansão acachapante dos meios de comunicação de massa audiovisuais, a crise mundial da guerra fria e o interesse cada vez maior da crítica literária e dos estudiosos em desconstruir o discurso nacionalista vitorioso e em ampliar a compreensão do mundo encontrou no ethos da geração de 60 o ambiente perfeito para frutificar. Munidos, como relembra Alfredo Bosi em um dos ensaios de Entre a literatura e a história, do instrumental estruturalista e materialista, intelectuais empreenderam a recuperação de elementos regionais e autores críticos como os da geração de 30: Cyro Martins, Pedro Wayne, Ivan Pedro de Martins e Aureliano de Figueiredo Pinto. A obra destes autores, tributários diretos da geração anterior de Maya, Simões, Callage, revelou o modernismo na literatura rio-grandense com uma forte tintura realista e de denúncia social, bem ao gosto dos intelectuais e acadêmicos dos anos 60.

Foi então que se viu como evidente que os autores rio-grandenses, Érico Veríssimo inclusive, haviam criticado a sociedade de uma forma muito menos idealizada e ufanista como contemporaneamente costumam se interpretar todas as referências ao meio rural, notadamente o da região da Campanha. E mais: mesmo Maya e Simões, os dois principais sustentáculos da estética sulista, haviam mantido o olhar crítico para as condições sociais e políticas pelas quais o poder se organizava no Rio Grande do Sul numa literatura que o professor Antonio Hohlfeldt, por exemplo, identificou como centrada muito mais na figura do peão que na do estancieiro.

Ainda assim, por uma pecha nunca removida por completo, os escritores rio-grandenses muitas vezes são localizados na história literária no que seria um regionalismo agônico e interminável. Porque na história literária brasileira algumas vezes duvidou-se do afastamento total da literatura rio-grandense em relação aos temas e enfoque propostos no regionalismo romântico e a própria designação adquiriu, ao referirem-se aos escritores gaúchos, muitas vezes uma conotação pejorativa com o debate acirrando-se no sentido de marginalizar todos os seus autores, inclusive Érico Veríssimo, o único sucesso nacional emitido desde sempre desde o sul. Trata-se de uma situação complexa, pois vis-à-vis, se analisada na materialidade, em nenhum momento nem Érico nem seus antecedentes colaboraram no recalque ou sublimação das características sociais nem da elite e nem populares. Muito pelo contrário, basta que se os releia para verificar o quanto foram autores que trataram as características de seu tempo e a própria história de forma crítica e realista.

Talvez por um excesso de animosidade crítica, ou pelo crescente desejo por um “instinto de globalização”, aos poucos o que era um “regionalismo” inocente foi se transformando de particularidade em estigma; e o tipo humano característico da região perdendo a aura heroica para dar vez a uma série de tipos cômicos que a popularização de certa vertente tradicionalista contribuiu sensivelmente em consagrar, contagiando também o métier literário.

Com a crise cultural estabelecida na universidade, a presença marcante de um movimento cultural abrangente e hegemônico como o tradicionalista e uma caracterização desfigurada, transformada em estereótipo, o pior do homem do campo passou a ser dinamizado como essência representativa e todos os seus preconceitos afiliados, como o machismo, sexismo, misoginia, etc., elevados à condição de consenso em um “novo” pitoresco. Já num cenário de intensa representação e exploração midiática, como um produto cultural exótico sobretudo ao Brasil, a literatura rio-grandense viu-se na situação de deixar de lado e obliterar a imagem indesejável, rude e reduzida às vezes ao grotesco, do gaúcho rural. Exemplo mais evidente dessa caracterização talvez se possa localizar no Analista de Bagé, personagem de Luís Fernando Veríssimo, e sucesso comercial dos anos 80.

Da década de 60 em diante, em que pese o esforço editorial de casas como a Movimento, a Mercado Aberto, a editora Tchê e em parte a L&PM, os motivos rurais ou decaíram para o segundo plano ou foram preteridos por enredos desenraizados do laço local. Alie-se a constatação ao fato da perda sistemática de relevância da região da Campanha na economia local, a migração simbólica para a zona industrial e serrana, o panorama literário rio-grandense fez apenas seguir as inclinações de mercado, excetuando-se aqueles momentos que historicamente representam uma inflexão para dentro, como a Revolução Farroupilha, mas mesmo assim sob um olhar crítico severo, radicalmente distante do romantismo e suas reincidências.

Quando contraposta à historiografia, a literatura normalmente confere com uma visada de um momento histórico, de uma determinada realidade, mas sempre sujeita a releituras e reinterpretações. Teóricos importantes como Erich Auerbach, Roger Chartier e Paul Ricouer atestam que o valor literário é mais simbólico que factual, mas um bem cultural que preenche muitas lacunas da compreensão. De período à escola, de estética a projeto, de projeto à pecha, muito se tem confundido entre o que seja uma manifestação regionalista política, tal como o reiterativo separatismo e, outra, cultural, dada sobretudo pelas realizações artísticas. Talvez porque os autores rio-grandenses tenham inserido as questões políticas e as permeado no enredo de suas obras, as duas situações pareçam inextrincáveis. Essa é uma confusão recorrente e que mereceria atenção redobrada dos estudiosos e também dos leitores.

De uma forma que é natural na literatura, pois a literatura e a história inquirem-se uma a outra o tempo todo, o “regionalismo” rio-grandense tornou-se cada vez mais um fantasma literário, como aponta a professora Regina Zilberman, e muito emblemático de uma crise complexa. Pois se abandonar a memória, o antecedente e mesmo as pessoas que sobrevieram à povoação original e continuam vivendo no interior é de uma violência atroz, não é menos violento caracterizá-los unicamente pela lente da decadência. Não é nem realista, pois é evidente que as pessoas, em sua aventura, atravessam experiências dignas e verossímeis, tanto do ponto de vista real, existencial, quanto literário. Se o “regionalismo” pode ser considerado a tábua de salvação dos maus escritores, também pode ser muito mais exigente no que se refere à originalidade. Os autores contemporâneos atentos devem pensar muito nisso ou, ainda melhor, não levar os preconceitos tão a sério a ponto de introjetá-los.

Da mesma forma que acontece na vida prática, na leitura normalmente faz-se necessário superar a intuição do já visto, do conhecido, para só então obter-se simpatia pelas coisas e por sua narração. Superada a negação inicial, a recompensa reside não na confirmação do esperado, mas no flagrante do próprio espanto. Certo que isso exige o trabalho perceptivo da atenção, mas o atordoamento que se segue ao descortinar-se um mundo desconhecido ainda é o trunfo principal da boa literatura. A dificuldade maior reside em que as mediações já consolidadas impõem uma série de preconceitos e estereótipos que encobrem o humano e a experiência do reconhecimento que a literatura pode propiciar.  Ocorre que os estereótipos competem num estreitamento mental e superá-los requer uma leitura desimpedida ou ao menos esclarecida quanto a essa realidade. Enquanto o caminho orientado ideologicamente conduz à recompensa da confirmação, a boa arte costuma ser a que desorienta o previsível e propicia tanto a reorganização da memória social quanto do auto conhecimento.

Lucio Carvalho nasceu em Bagé (RS) e mora em Porto Alegre (RS). Autor de “La Minuana” (2023, TAN), “Down House, 1858: o memorial de Charles Waring Darwin” (Dialogar/2024) e outros.

Um comentário sobre “Instinto e estigma no regionalismo”

  1. José Maria Hess disse:

    Excelente artigo, parabéns.

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