POESIA

Flávio Ferrarini: pegam fogo dentro de mim fósforos queimados

Imagem: Silvana Toazza/Reprodução.

Apresentação e seleção por Marco de Menezes,
para a Especiaria.

Foi o Eduardo Dall’Alba que me apresentou ao Flávio, lá nos idos de 1996/1997? Creio que sim: quando participamos do projeto organizado pelo Eduardo chamado Matrícula 2, uma referência ao grupo Matrícula do final dos 60 (Pozenato, Paviani, Gritti e Trentin); a fama do Flávio já o precedia: era um cara inquieto e dedicado, generoso, de quem José Paulo Paes havia dito que os “minutos interiorianos” de sua poesia valiam bem “horas inteiras de muito poeta de cidade grande”. Flávio acabaria por escrever a orelha do meu primeiro livro, de 1999.

Aquele grupo do Matrícula 2 foi uma experiência bastante intensa e também foi uma grande invenção do Dall’Alba, num gesto de intriga talvez borgeano de construir continuidades/descontinuidades e antecipar as forças do futuro, que ainda existia, àquele momento, enquanto futuro. Eu via naqueles poemas do Flávio, e ainda vejo agora que me debruço outra vez sobre alguns volumes da sua poesia, uma alegria docemente magoada, no máximo uma alegria que ria do nada, dionisíaca mais que apolínea, mas leve, mais caos que cosmo, parecida com a minha alegria que vinha lá da fronteira, de certo modo irmanando o canto dos sapos da minha cidade com o blém-blém do sino no pescoço da vaquinha na subida da encosta de relva molhada de Flores da Cunha (ou de Nova Pádua, não sabemos ao certo, a biografia do autor diz que ele é natural ora de uma ora de outra cidade; no meio das duas há o Travessão Paredes, que também consta como local de nascimento do poeta). Eu ainda vejo nesses poemas do Ferrarini uma beleza frágil e fragmentária incrivelmente intensa e uniforme.

Uma vez fomos àquele Travessão Paredes ter com o Flávio, eu dirigia então uma Marajó que nos levou a todos, poetas que éramos naquele tempo em que ainda se via futuro no retrovisor – Dall’Alba, Dinarte, Petry – no rumo de encontrar o Flávio lá com pinhões e vinho, para uma noite terna e louca.

Foi tão trágica sua morte, tão rápida, que nos deixou emparedados em uma saudade do futuro, de como seriam hoje os seus poemas, com quais tábuas montaria seus epigramas, que fósforos ele acenderia pra alumiar essa próxima sala de luzes apagadas que ainda não logramos alcançar.

Mais sobre o poeta Flávio Ferrarini pode ser encontrado em web.archive.org e em www.institutoflf.com.br. Abaixo, uma seleção de seus poemas.


O epigrama é um fósforo aceso entre os dedos
Que vai queimando devagar a tua cabeça.

§

atlas

ninguém nunca me deu um atlas
onde constasse reais pontos de referência
na curva quase sempre me desgoverno
entro direto pelos caminhos do inferno

§

coração

curriculum vitae
duas fotos três por quatro
traga à rua dos cães cantores
no lado esquerdo uma placa diz
em letras grandes: há vaga

§

espuma

todo amor um dia acaba
como as ondas do mar
eternamente virando espuma
como a noite desesperada
chutando postes
acendendo luz nenhuma

§

tenho andado de lado
como quem anda cheio
como quem anda e cai
como quem sai do meio

tenho andado sozinho
sinto falta da sua voz
metade dando bronca
metade sendo carinho

tenho andado triste
disfarço olho pro lado
um inseto incerto insiste
no meu olho machucado

nos caminhos em que ando
um dia não sei quando
no tropeço do seu passo
você e eu num abraço

§

cidade pequena

as casas na cidade pequena
são vacas deitadas à sombra
as ruas são cobras tristes
esticadas ao sol

na cidade pequena as línguas
são enxadas que carpem intimidades
como cobras tristes
tristes como as vacas deitadas

na cidade pequena as intimidades
são roupas esticadas no varal
confissões de pequenas cobras
sobre as vacas deitadas

os rostos na cidade pequena
são molduras tristes
como cobras à sombra
das janelas das vacas deitadas

na cidade pequena são os postes
que vigiam as cobras das vacas
se a língua neles encosta
os postes desabam

desabam os postes na cidade
pequena de vidas menores
sobre as cobras tristes
à sombra das vacas deitadas

§

como homenagear a mãe

esconder o sapato em um canto qualquer
pedir à mãe para sapato encontrá-lo
como custe a dar com o pé no sapato
ficar um sapato qualquer no canto amarrado
chegar tarde em casa com um caso triste
procurar o ombro travesseiro da mãe
a mãe de tarde em casa só e cansada
chegar em casa e dar o ombro para nada
em maio do dia das mães a mãe de um dia
dar a ela um beijo e um polvo de abraços
jurar que ela é o mais puro dos diamantes
depois voltar a fazer tudo como antes

§

conversa em família

numa roda de pessoas
um punhado de silêncio
passa de mão em mão
ninguém ousa quebrá-lo
até o gato sob a cadeira
pára para escutá-lo

§

noite 1
nada de diferenças na noite imensa
todas as casas iguais
todas as árvores iguais
todos os cães iguais

noite 2
noite quadro negro
estranho mestre
negro ensinamento

noite 3
noite enfermeira
sentada à cabeceira
aplicando esquecimento
nas veias do tempo

noite 4
noite sem raiz e terna passageira

§

fósforos queimados

dentro de mim ando muito sozinho e um pouco
parado dentro de mim quando ando quase muito
revisito inteiro minhas pedras de saudade
quase humana quase muito vivas pela metade

dentro de minha ilha sempre cultivo pomares
plantados nas gavetas cheia de terra e mares
todos e eu vazio de amizades muito usadas
pegam fogo dentro de mim fósforos queimados

§

ressaca

são os ossos todos
atirados a um cão

§

tarde de domingo

a tarde de domingo é uma teta caída

§

na fazenda a vida não passa

na fazenda a vida não passa
a vida dá cabo a tudo ao que carpe
a aba do chapéu cobre o passo
da vida que se espalha

na fazenda a vida não passa
a vida se arrasta pela estrada
a navalha corta o fumo de corda
a vida queima no cigarro de palha

na fazenda a vida não passa
a vida anda de costas à vida
sobra mais tempo para a vida
do que pernas que ao tempo falta

na fazenda a vida não passa
a vida é um açude de águas paradas
onde os sapos com seus martelos
deixam a vida num prego dos diabos

§

olho vermelho no centro do espelho

na frente do espelho
somos um troço
brinquedos mecânicos
com olhos vermelhos
e planos satânicos

na frente do espelho
protagonizamos perfeito
a fábula de la fontaine
lobos disfarçados
de bom pastor

na frente do espelho
olhos submarinos
de tão fundos se distraem
emergem meninos
e as armaduras caem

na frente do espelho
a alma coça
as paredes do estômago
dobramos os joelhos
e nos surpreendemos
com os olhos vermelhos

§

fósforos

quarenta irmãos
deitados
logo serão mortos
ao serem acordados

Flávio Luis Ferrarini nasceu em 5 de agosto de 1961, no interior de Flores da Cunha – RS, onde é hoje o Município de Nova Pádua. Faleceu aos 53 anos, vítima de acidente de trânsito, em 16 de junho de 2015. Ferrarini foi um publicitário, palestrante, escritor, poeta, cronista, contista, autor de narrativa infanto-juvenil. Um dos primeiros escritores do município de Flores da Cunha a lançar livro individual em 1985 (Volta e meia um poema na veia), abrindo uma série de 26 livros publicados, sendo três obras póstumas. Participou de antologias, publicou em revistas literárias nacionais e internacionais. Publicou em torno de três mil crônicas entre os jornais: O Florense (Flores da Cunha), O Semanário (Bento Gonçalves), O Pioneiro (Caxias do Sul), Folha de Hoje (Caxias do Sul) e Revista Literária Blau de Porto Alegre. Como publicitário foi sócio-diretor da primeira agência de publicidade de Flores da Cunha, a CRIARTE (1986 a 2015), e redator chefe da Planet House Propaganda de Caxias do Sul/RS (1989 a 2015). Além disso, foi um dos percursores do projeto Autor na Sala de Aula, com o qual esteve palestrando em inúmeras escolas públicas e particulares do RS e SC.

Um comentário sobre “Flávio Ferrarini: pegam fogo dentro de mim fósforos queimados”

  1. Betine disse:

    Que poemas ágeis e belo os do Flávio Ferrarin. Feliz de conhecer um novo poeta, que permanece na leitura sempre renovada.

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