Claudinei Sevegnani
Indaial – SC
Recebe a foto. Há um corpo com a cara de Din. Parece do avesso, um monstrinho de filme de terror de baixo orçamento. Abre o chuveiro. A água quente está piorando o estado do pé, que incha mais. O vômito craquelado se dissolve. Sente nojo e não coloca as mãos. Deixa a água agir, por isso aumenta a temperatura para que a gordura se desfaça. No piso, se forma uma mancha. Quando está razoável, Din esfrega a nuca, as costas e o resto do corpo com uma bucha vegetal que depois jogará fora. O banho demora mais do que o usual, e o pé incha cada vez mais. Os vapores tomam conta do banheiro. Din fecha o registro, pega a toalha e se seca em frente ao espelho. Percebe que a pele está vermelha, tanto pela água quente quanto pela fricção da bucha vegetal. Veste uma roupa leve de algodão, passa muito perfume e tenta calçar os sapatos. O inchaço é grande. Se assusta. Liga pra Zuíla, que não atende. Bem devagar, Din calça chinelos, desce as escadas do prédio e chama um carro.
Din está na clínica médica, esperando no corredor. São muitas salas. Lembra que a do Dr. Ornelas é a penúltima à direita. Senta por perto, aguardando a chamada. Parece um dia normal, outra segunda-feira qualquer. Olha o celular e vê as notícias. Um tapiti foi encontrado dentro de uma máquina de lavar louças no dia anterior num restaurante da região. O caso vem ganhando repercussão e comoção. O dono do restaurante não sabe explicar o que aconteceu e as câmeras de vigilância estavam desligadas. Num site, Din consegue ver o tapiti enroscado em talheres. As orelhas ovaladas estão presas entre pratos branquíssimos, contrastando com a pelagem marrom do bicho. Os olhos já esbugalhados. O tapiti está muito limpo. O dono conta que usam o detergente da foreverclean&smellin’good, conhecido pelo poder de limpeza profunda. Tentam compreender como o tapiti entrou na máquina, se estava em busca de comida ou de abrigo. Din não sabe reconhecer se é o mesmo tapiti que viu dias atrás. Tende a achar que sim, mas a falta de familiaridade com tapitis provoca uma homogeneização do pensamento, e todos os tapitis acabam sendo iguais.
A clínica está fria. Isso é bom pro pé, o frio. Sente que está desinchando. Antes do nome ser chamado, Din passa por uma espécie de pré-atendimento, onde são checados alguns sinais vitais. Fazem algumas perguntas e preenche um formulário com X em locais de sim e não. Olha pela janela, o tapiti em sua cabeça. Sente vontade de correr. Está ventando. É o ar-condicionado na potência máxima. O ar que se move passa sobre a pele e Din sente novamente o cheiro de vômito. Pensa não ter se lavado direito, mas logo percebe que o azedume vem de uma pessoa que acabou de chegar. Não deu tempo de segurar enquanto aguardava uma consulta. O corredor está sujo. Por um instante, Din pressupõe que a pessoa que vomita é a mesma que vomitou sobre a sua nuca ainda no ônibus. Mas a falta de familiaridade com pessoas que vomitam provoca uma homogeneização do pensamento, e todas as pessoas que vomitam acabam sendo iguais.
Din finaliza o formulário, olha mais uma vez através da janela da salinha e retorna ao assento próximo à sala do Dr. Ornelas. Tenta erguer a perna pra ver se desincha, mas sente a gravidade atuando sobre os músculos. As pessoas estão quietas. Algumas são sugadas com mais velocidade, outras levam tempo até serem chamadas pelo som das caixas dispostas nas paredes. Uma das lâmpadas está falhando, e o efeito estroboscópico faz o corredor de espera se distanciar no tempo. De fundo, há uma música de sons quase sempre agudos.
Do outro lado do corredor, um homem de barbas longas cochila de olhos abertos. Ele reclama que não consegue mais sonhar, e diz pro enfermeiro que precisa ser atendido com urgência. O enfermeiro explica que os encaixes emergenciais não vão permitir essa agilidade. Acredita que uma virose tenha se espalhado na região, pois aquele homem não é o primeiro a fazer o relato. O homem desmente o enfermeiro e diz que seu caso é crônico, que os sonhos não existem desde a adolescência, quando um evento traumático o chacoalhou. O enfermeiro entra numa das salas e Din se interessa pela história.
“O que aconteceu pra você não sonhar mais?”
O homem não responde e olha fixo pra porta da enfermaria.
Din, com vergonha de ter invadido um tipo de privacidade, presta atenção nas lâmpadas do corredor. Quer identificar o efeito estroboscópico. Pula o olhar de luz em luz até encontrar, do outro lado, o problema. Levanta e procura o interruptor. Ao desligar, as pessoas soltam interjeições de alívio e começam a conversar sobre temas variados. Dizem sobre o tempo, algas marinhas, verduras em conserva e calotas de pneu. Quando Din retorna ao seu lugar, o homem começa a falar.
“Eu tinha uns catorze anos. Frio, um breu, ninguém enxergava nada. A vara quase quebrando. O peixe era diferente, eu sentia, e tava com medo da linha arrebentar. Fui puxar com força, achando que era pesado. Mas ele veio com tudo e bateu na minha testa. Senti as barbatanas nos olhos, entrando, espetando o cérebro. Vi um grupo de pessoas dançando nuas ao redor de uma fogueira de flores. Depois desse dia, não consegui mais sonhar.”
“Isso é história de pescador.” O rapaz sentado ao lado dele ri. É seu filho. Din também acha graça, mas fica em silêncio quando percebe que o homem está sério.
“Se não foi isso, não sei o que me fez parar de sonhar.”
“Paciente Din, favor se dirigir ao consultório do doutor Ornelas Júnior, sala 5.”
Minutos depois, o Dr. Ornelas está prescrevendo um raio-X.
“Deve ter sido uma entorse. Você vai fazer compressas com gelo e tomar este analgésico e este anti-inflamatório. Como foi que você conseguiu a lesão?”
“Eu estava descendo do ônibus quando torci o pé. Pisei em falso.”
(…)
Claudinei Sevegnani nasceu no Vale do Itajaí, na cidade de Indaial, Santa Catarina, em 1989. É artista e professor, doutor em artes cênicas e mestre em dança. Publicou os livros de ficção Cisne de vidro e Adelaide em terceira pessoa e o livro de poemas mapas dos campos minados. Desenvolve criações em dança, artes visuais e literatura.