das vulvas de que nascem as poetas
os figos são flores que crescem para dentro
; comê-los é contaminar-se da modéstia do que não se exibe
, mas também não se exime.
os figos não se curvam aos elogios de casaca
, não se rendem às facilidades de toalete plástica
, são orações mudas e implosões de sentidos
as vulvas de que nascem as poetas
não são um conjunto genital de partes externas
são figos
e híbridas searas
podem abrigar um corpo além
é gente que gera
é mulher que não espera
pode ter qualquer genitália
pênis vagina teta cotovelo língua dedo umbigo orelha dedo perna
as poetas inventam seus corpos e suas primaveras
§
o meu nome é impropéria
existe um lugar chamado país que dizem ser pátria nação e coisa assim
] como deveria ser a casa da mãe [
e em pátria e mãe vem a raiz do que a cultura naturalizou como parentes
mas os sujeitos que pouco valem
– como as poetas –
são filhos das putas
: dEUSAs da podadura
que são transparentes
tanto eles como elas
porque ninguém conhece a vida das poetas
até que elas vêm a óbito
quer dizer, até que elas morrem
e pode ser que algum verso caia no gosto de uma pessoa
ou de algumas
e essa poeta vire um nome que alguns lembrem
por alguns minutos, às vezes,
em algumas crises de solidão, ou de paixão
ou em um sarau elegante, ou em um sarau de estudante
ou essa poeta pode ser dignamente enterrada nomeando praça, avenida, prédio
: se inventarem uma doença da melancolia mais terna
podiam oficializá-la doença da poeta fulana
mal de cada século é a mesma merda que muda só a cor do enfeite neon
a solidão de uma palavra entalada no gargalo
de uma garrafa lançada à deriva
:
poeta sábia repousa na gaveta
] poeta suicida seus versos quando não os livra em agonia [
poeta mesmo, só é boa depois
bem depois
poeta boa é quando morre
e consome a imagem de si mesma
com o senso da égua do lorde inglês
que enxerga no escuro e
quando deita
vira signo de sensatez
maria navalha
minha pátria não é pétrea
voo das pedras
e do pólen
minha pátria é pena de pássaro
e poeira
me confere o direito das asas
a dor do corte nas árvores
o sabor do sangue
lambido com músculo de bálsamo
porque vertido na peleja
nunca vã
de habitar qualquer espaço
e parir-se de toda manhã
minha pátria
minha nunca degredada pátria
é feita de matéria vira-lata
felinos olhos e tronco de cão-guia
minha pátria é uma desmaria
num rosário furtacor
cada semente em um tom
cada sulco de chão
acolhe um oco sem mapa
legitimando o lugar do desvão
meu pai foi minha mãe
em útero de avesso
me ensinou tantos nãos
que em mim se viu no espelho
e “em assim sendo”
, senhora gramática
outro fio de regra se puxa
: minha mátria não é genitália
meu chão é onde se espalha
a genealogia de bruxa
§
depósito digital
essa ideia de existir como uma insistência
ancorada em mar revolto
essa teimosia de ser o próprio porto
móvel
praticável
desmontável
com lanterna de segurança e porta sem tranca
[ indo de encontro à manada / para desmontar a visível cilada ]
uma convicta força que se espalha
feito poeira no vento / imagem tão gasta
: um vírus convicto de vida
) se para nós querem morte
, seremos outra saída (
: poema escrito no envelope do banco
– que não serve ao depósito senão de espanto –
que se desenha lápide
da poeta / mulher nada discreta
: daquelas que senta de pernas abertas
brincando de fazer fissuras por onde passa
para das entranhas parir outras [est]éticas
Renata Pimentel nasceu em Recife. Transita pela literatura, dança, dramaturgia e pelo audiovisual. É professora de Literatura da UFRPE. Publicou Uma lavoura de insuspeitos frutos, em 2002, estudo sobre o romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, e, pela Confraria do Vento, Copi: transgressão e escrita transformista, 2011, Da arte de untar besouros, 2012, e Denso e leve como o voo das árvores, 2015.