POESIA

Reprise, de Pedro Minet

Imagem: Chaeronea, colagem, Léo Tavares, 2025.

Na quinta vez, quando eu

tinha dezesseis, ele me levou no zoológico, foi uma

noite longa que virou manhã e depois tarde do lounge até o bar onde ele disse que ia buscar uma bolsa que tinha esquecido com alguns amigos do

trabalho, então

seu quarto onde senti algo como triunfo quando percebi que podia ser o demônio que sempre quis ou talvez tivesse de ser pra não sentir dor quando

obedecesse me

batessem metessem um três

cinco seis quem e o que for que quisessem meter, morrendo por

mãos de homem sem

nunca realmente morrer, pior que isso, querendo eu mesmo mais e

mais cada vez, eu

disse pra ele que não era

meu primeiro

tiro mas pensando bem acho que era sim, assim

que o céu da boca secou o corpo inteiro em deserto fui de

menino a miragem a

oásis, fiz valer

seu real, já fazia mais de seis horas e o dia clareava mas sempre que eu cansava, por alguma razão – na época encarei como

coincidência, muito engraçado, talvez até sintonia, conexão, empatia, sei lá –,

ele cansava também, e me levava

até o escritório pra pegar mais

Aquilo ali é uma enciclopédia? Minha mãe diz que estudava assim,

antigamente, quando

tinha minha idade…

– me corrigi, lembrei da

mentira, como alguém levanta

a toalha depois de cair, antes

que ele pudesse reagir –

Quer dizer, dizia, quando

eu ainda tava na escola, sabe, antes

de me formar ano passado…

Me deixou folhear: Mercúrio,

Vênus e Marte seguidos de

Vargas, Kennedy e Stálin, Castro

Alves, Romanceiro da Inconfidência, ilustrações de contos de fadas, Curupira, Eros, Jesus, Anúbis, muitos mapas, flores e animais, contei que quando era pequeno

era

obcecado por flamingos, acho que

por causa daquele filme Fantasia da Disney, a cena de Alice no País das Maravilhas em que a Rainha joga croquet com os soldados-carta, um dia no computador pesquisando e salvando imagens descobri o filme do John Waters, peguei na locadora, coloquei no DVD da

sala no volume

máximo e,

bem, flamingos foram banidos

de casa depois disso… Anos

depois, já aos quinze, revendo com meu melhor amigo, expliquei pra ele que achava que a Divine tinha pegado o nome de um livro do Genet, Nossa Senhora das Flores, e ele me explicou que “pink flamingo”, em

inglês, era

eufemismo pra pica

Conclusão: você era obcecado

por pica, então,

Desde pequenininho

Nasceu pra isso

Ele contou que um amigo tinha desenvolvido um pack publicitário pro parque zoológico da Quinta da Boa Vista; oferecera ingressos pra ele e pros dois filhos, mas não podia mais

ver os filhos, então,

Quer ver flamingos?

Quis perguntar por que, mas não

consegui,

Já tô… Vendo, né, haha, desde

tem quantas horas mesmo? A gente se

encontrou às seis?

Lembrei da cena perto do fim de American Psycho, o livro, em que o Bateman, completamente maníaco, sem dormir por dias, visita o zoológico do Central Park, oferece biscoitos a um menino que está esperando a mãe jogar algo fora na lixeira e o esfaqueia no pescoço, ela retorna e encontra o garoto balbuciando no chão, começa a berrar, uma multidão se forma ao redor, Bateman finge ser um médico e contém o sangramento que ele mesmo fez até a polícia

chegar arrancar o

menino das mãos dele e ele morrer de qualquer jeito, despido contra o asfalto, enquanto Bateman, sangue nas mãos, parte por perto,

realizado, mas a

sensação ou ideia de um homem que no fundo sei que não me ama parecendo que se importa, quer cuidar de mim, sempre foi e talvez

sempre seja mais importante que

qualquer sabedoria ou

medo, nunca foi difícil

decidir, responder,

Acho que pode ser

Tinha gente, mas parecia vazio, algo de cúbico, 3D fajuto, Zoo Tycoon, em cada bicho, passante e funcionário; vimos leões, araras, girafas, tigres,

crocodilos, quando finalmente chegamos aos flamingos saltitei até a grade, assobiando nas pontas do pé e

depois de

alguns minutos o pior enjoo da minha vida

me preencheu por completo, coração

palpitando, doendo, toda memória e preocupação e culpa do mundo acometendo minha nuca no

mesmo momento, forcei os pés contra o que nem parecia mais chão, sentindo medo de morrer, me vendo como o menino do livro, deitado, descoberto pela mãe que não sabia quem era eu e o que vinha fazendo enquanto um homem, psicopata brasileiro? fingia que estancava um buraco que não fez mas onde meteu até

romper e partia,

com os dedos sujos, invisível,

por perto

Mas ele me deitou num banco, comprou água, disse que só

precisava respirar

Tá tudo bem com seu filho?

Tá sim, já já vai ficar

E ficou mesmo, depois do que

pareceram quarenta minutos mas na verdade não foram nem quinze era virgem e novo em folha; pedi desculpas, sacudiu a mão por dentre meus cabelos, me deu gorjeta, ofereceu carona e

não aceitei, andei até

a fazendinha, alimentei cabras e

coelhos, comi batata-frita e bebi Iced Tea de pêssego olhando nos olhos de uma coruja que sabia de algo mas

se recusou a me dizer

Sete anos depois ele – não o

mesmo ele, ou…

talvez? – está me chamando de criança mas

não sou mais criança mas estou

fingindo ou

atuando – esquecendo o que é cinema jogo

de cena e o que são minhas

mãos – que não sei

enrolar notas de 100 ou de 50 até ele encontrar na gaveta um canudo de prata estampado com pequenas folhas de louro como uma língua de sogra

olimpiana, feliz aniversário

Ganimedes, as moiras

te mudaram, nem

cobra mais, tudo que

lhe restou foi

divindade

Pedro Minet nasceu e vive atualmente no Rio de Janeiro, capital. Em 2023, publicou seu primeiro livro, “Coleção de Meninos Mortos”, pela Editora Urutau. Sua escrita, em português e inglês, já foi veiculada em publicações como SCAB, Abapanema, Quarup, Arquivo Blush, Leituras.org, Dunce Codex, e agora Especiaria, e textos sobre sua obra apareceram recentemente nas revistas Littera 7 e Sepé.

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