Na quinta vez, quando eu
tinha dezesseis, ele me levou no zoológico, foi uma
noite longa que virou manhã e depois tarde do lounge até o bar onde ele disse que ia buscar uma bolsa que tinha esquecido com alguns amigos do
trabalho, então
seu quarto onde senti algo como triunfo quando percebi que podia ser o demônio que sempre quis ou talvez tivesse de ser pra não sentir dor quando
obedecesse me
batessem metessem um três
cinco seis quem e o que for que quisessem meter, morrendo por
mãos de homem sem
nunca realmente morrer, pior que isso, querendo eu mesmo mais e
mais cada vez, eu
disse pra ele que não era
meu primeiro
tiro mas pensando bem acho que era sim, assim
que o céu da boca secou o corpo inteiro em deserto fui de
menino a miragem a
oásis, fiz valer
seu real, já fazia mais de seis horas e o dia clareava mas sempre que eu cansava, por alguma razão – na época encarei como
coincidência, muito engraçado, talvez até sintonia, conexão, empatia, sei lá –,
ele cansava também, e me levava
até o escritório pra pegar mais
Aquilo ali é uma enciclopédia? Minha mãe diz que estudava assim,
antigamente, quando
tinha minha idade…
– me corrigi, lembrei da
mentira, como alguém levanta
a toalha depois de cair, antes
que ele pudesse reagir –
– Quer dizer, dizia, quando
eu ainda tava na escola, sabe, antes
de me formar ano passado…
Me deixou folhear: Mercúrio,
Vênus e Marte seguidos de
Vargas, Kennedy e Stálin, Castro
Alves, Romanceiro da Inconfidência, ilustrações de contos de fadas, Curupira, Eros, Jesus, Anúbis, muitos mapas, flores e animais, contei que quando era pequeno
era
obcecado por flamingos, acho que
por causa daquele filme Fantasia da Disney, a cena de Alice no País das Maravilhas em que a Rainha joga croquet com os soldados-carta, um dia no computador pesquisando e salvando imagens descobri o filme do John Waters, peguei na locadora, coloquei no DVD da
sala no volume
máximo e,
bem, flamingos foram banidos
de casa depois disso… Anos
depois, já aos quinze, revendo com meu melhor amigo, expliquei pra ele que achava que a Divine tinha pegado o nome de um livro do Genet, Nossa Senhora das Flores, e ele me explicou que “pink flamingo”, em
inglês, era
eufemismo pra pica
Conclusão: você era obcecado
por pica, então,
Desde pequenininho
Nasceu pra isso
Ele contou que um amigo tinha desenvolvido um pack publicitário pro parque zoológico da Quinta da Boa Vista; oferecera ingressos pra ele e pros dois filhos, mas não podia mais
ver os filhos, então,
Quer ver flamingos?
Quis perguntar por que, mas não
consegui,
Já tô… Vendo, né, haha, desde – Já
tem quantas horas mesmo? A gente se
encontrou às seis?
Lembrei da cena perto do fim de American Psycho, o livro, em que o Bateman, completamente maníaco, sem dormir por dias, visita o zoológico do Central Park, oferece biscoitos a um menino que está esperando a mãe jogar algo fora na lixeira e o esfaqueia no pescoço, ela retorna e encontra o garoto balbuciando no chão, começa a berrar, uma multidão se forma ao redor, Bateman finge ser um médico e contém o sangramento que ele mesmo fez até a polícia
chegar arrancar o
menino das mãos dele e ele morrer de qualquer jeito, despido contra o asfalto, enquanto Bateman, sangue nas mãos, parte por perto,
realizado, mas a
sensação ou ideia de um homem que no fundo sei que não me ama parecendo que se importa, quer cuidar de mim, sempre foi e talvez
sempre seja mais importante que
qualquer sabedoria ou
medo, nunca foi difícil
decidir, responder,
Acho que pode ser
Tinha gente, mas parecia vazio, algo de cúbico, 3D fajuto, Zoo Tycoon, em cada bicho, passante e funcionário; vimos leões, araras, girafas, tigres,
crocodilos, quando finalmente chegamos aos flamingos saltitei até a grade, assobiando nas pontas do pé e
depois de
alguns minutos o pior enjoo da minha vida
me preencheu por completo, coração
palpitando, doendo, toda memória e preocupação e culpa do mundo acometendo minha nuca no
mesmo momento, forcei os pés contra o que nem parecia mais chão, sentindo medo de morrer, me vendo como o menino do livro, deitado, descoberto pela mãe que não sabia quem era eu e o que vinha fazendo enquanto um homem, psicopata brasileiro? fingia que estancava um buraco que não fez mas onde meteu até
romper e partia,
com os dedos sujos, invisível,
por perto
Mas ele me deitou num banco, comprou água, disse que só
precisava respirar
Tá tudo bem com seu filho?
Tá sim, já já vai ficar
E ficou mesmo, depois do que
pareceram quarenta minutos mas na verdade não foram nem quinze era virgem e novo em folha; pedi desculpas, sacudiu a mão por dentre meus cabelos, me deu gorjeta, ofereceu carona e
não aceitei, andei até
a fazendinha, alimentei cabras e
coelhos, comi batata-frita e bebi Iced Tea de pêssego olhando nos olhos de uma coruja que sabia de algo mas
se recusou a me dizer
Sete anos depois ele – não o
mesmo ele, ou…
talvez? – está me chamando de criança mas
não sou mais criança mas estou
fingindo ou
atuando – esquecendo o que é cinema jogo
de cena e o que são minhas
mãos – que não sei
enrolar notas de 100 ou de 50 até ele encontrar na gaveta um canudo de prata estampado com pequenas folhas de louro como uma língua de sogra
olimpiana, feliz aniversário
Ganimedes, as moiras
te mudaram, nem
cobra mais, tudo que
lhe restou foi
divindade
Pedro Minet nasceu e vive atualmente no Rio de Janeiro, capital. Em 2023, publicou seu primeiro livro, “Coleção de Meninos Mortos”, pela Editora Urutau. Sua escrita, em português e inglês, já foi veiculada em publicações como SCAB, Abapanema, Quarup, Arquivo Blush, Leituras.org, Dunce Codex, e agora Especiaria, e textos sobre sua obra apareceram recentemente nas revistas Littera 7 e Sepé.