ENSAIO

Contos de cidadezinha

Imagem: Madamu/Reprodução.

Júlia Batista Bernardes Farias
São Paulo – SP

A resenha foi publicada também no n. 25 da Opiniães – Revista dos Alunos de Literatura Brasileira.

Em 18 de maio de 2024 ocorreu o lançamento da segunda edição de Contos de cidadezinha, de Ruth Guimarães (1920-2014), livro publicado pela primeira vez em 1996 e que ganhou nova edição em 2023 pela editora Madamu. Para marcar a reedição da obra, um encontro foi realizado na Casa Mário de Andrade, autor de quem Ruth foi uma declarada e fiel discípula, com a presença do escritor e jornalista Joaquim Maria Botelho (Instituto Ruth Guimarães), filho da escritora, e das pesquisadoras Cecília Furquim Marinho e Fernanda R. Miranda, pesquisadoras cujas teses1 tiveram como um dos objetos de estudo o romance Água funda, publicado em 1946. A menção a esse relançamento, no qual também estive presente, faz-se pertinente pois foi um dos poucos espaços onde pude colher mais informações acerca do livro, haja vista que praticamente não há uma fortuna crítica sobre a obra, apesar dos quase trinta anos desde que foi publicada.

Contos de cidadezinha foi a segunda prosa de ficção publicada pela escritora valeparaibana, após exatos cinquenta anos do lançamento de Água funda. Esse dado é, por si só, gerador de vários questionamentos sobre os caminhos e percalços individuais de Ruth Guimarães na publicação de sua obra autoral. É importante ressaltar que a escritora é uma exímia e reconhecida pesquisadora do folclore, da cultura popular e de estudos clássicos, tendo publicado diversos títulos ao longo de sua carreira. Ademais, o problema da publicação de uma obra autoral, mesmo para aqueles que perambulavam em torno do cânone – conforme pontua Fernanda R. Miranda sobre o caso da escritora caipira –, sem dúvida se complexifica, se articulado às condições impostas ao fazer literário, e ao seu reconhecimento e legitimação pelo mercado editorial e pela crítica literária, realizado por pessoas cujas credencias são similares àquelas sublinhadas pela própria Ruth Guimarães: “mulher, negra, pobre e caipira: eis as minhas credenciais”.2 De todo modo, dispondo de poucas obras autorais e esbanjando qualidade literária, felizmente a autora volta a circulação, especialmente com Água funda, que ganhou uma terceira edição pelo menos pela Editora 34 em 2018, além de integrar várias listas de vestibulares, incluindo a Fuvest, o que tem despertado o interesse de cada vez mais leitores e pesquisadores. A torcida é para que Contos de cidadezinha alcance esse mesmo prestígio, mas com alguns anos a menos no caminho – ainda há tempo!

Segundo o relato de Joaquim Maria Botelho na Casa Mário de Andrade, embora Contos de cidadezinha tenha sido publicado somente em 1996 pelo Centro Cultural Teresa D’Ávila, na cidade de Lorena, os contos foram escritos entre as décadas de 50 e 60, sendo um deles publicado individualmente enquanto novela na coleção Novela do bonde, a saber, “Os castiçais de Santo Antônio”, de 1949. Em 2014, o Centro Cultural Teresa D’Ávila publicou uma edição especial da Ângulo em homenagem à escritora Ruth Guimarães, reunindo informações, imagens e textos, alguns inéditos, sobre a vida e a obra da autora. Inclusive, nesta edição da revista está reproduzida a imagem da coleção da Novela do bonde em que o referido conto foi publicado. A proximidade temporal entre as obras pode justificar as semelhanças temáticas e estéticas que saltam aos olhos uma vez encetada a leitura do livro; semelhança simbólica, inclusive, visto que há personagens com os mesmos nomes daqueles presentes em Água funda, como a velha lavadeira Saninha, do conto “Visão”, que reporta a Saninha do Seu Cadinho Carapina, uma das mais velhas moradoras da narrativa de 1946. Fato é que o projeto estético de Ruth Guimarães, já bem definido desde sua estreia literária, parece ganhar mais fôlego e profundidade nesses contos, sem deixar de estar em consonância com o que se mostra ser a espinha dorsal de sua prosa de ficção: a incursão nos dilemas sociais e existenciais do caipira pobre, respeitando sua linguagem e privilegiando a filosofia e o olhar do povo – de forma complexa e não romantizada – ante às vicissitudes da vida. O texto de apresentação do livro, “Duas palavras”, sintetiza essa proposta de literatura:

Ah! Eu conto histórias para quem nada exige, e para quem nada exige, e para quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros, sem erudição nem filosofias. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a única humanidade disponível para mim. Quem me dera escrevesse com suficiente profundeza, mas claramente e simplesmente, para ser entendida pelos simples e ser o porta-voz dos seus anseios. Daí esses Contos de Cidadezinha. Daí essas acontecências sem eco no mundo, mas contos de explicar a vida e seus segredos, que talvez possam conter a alma imortal de cada um, seja do rústico, seja do letrado, com suas virtudes essenciais. […]

Contos de Cidadezinha… Que livro será esse? E nele, onde estou eu? Do que dou testemunho, certamente, é que eu estava mesmo aqui, enquanto os escrevia (Guimarães, 2023, p. 8-9).

Pobres, ingênuos, ignaros, pessoas “sem erudição ou filosofias”, dentre outros desvalidos, são a maioria dos protagonistas dessas “acontecências sem eco no mundo”. Já no conto “Visão”, por exemplo, o tormento pelo qual passa o velho Malaquias instiga o leitor: um homem pobre, negro e cego em completo desequilíbrio emocional por causa do suposto sumiço de sua esposa, Maria, a quem o velho chama insistentemente, tal qual uma criança que suplica pela mãe: “aiiiia!”. Assim sendo, a completa ausência de Maria é o enigma no qual a narrativa se alicerça: ela realmente desapareceu ou o cego Malaquias não a enxerga? Seria Malaquias aquele que vê antes de todos, tal qual o profeta do Antigo Testamento? De todo modo, o drama de Malaquias mobiliza todo o povo ao redor, sobretudo as freiras que dele cuidam na Santa Casa. Por fim, a necessidade de acabar com o sofrimento desse pobre cego faz Irmã Rita fingir ser essa tal Maria, uma mulher que “nem parecia existir” – não muito diferente de uma outra Maria, em quem todos creem em momentos de desespero, mesmo sem jamais tê-la visto.

Se em Água funda, uma obra em plena consonância com as tendências modernistas de seu tempo, Ruth aproveitou, dentre outros elementos, o folclore, a cultura popular e a tradição oral enquanto subsídios estéticos, Contos de cidadezinha apresenta uma proposta similar, mas sutilmente diferente. Aqui, a superstição e o fatalismo seguem balizando as narrativas e o tratamento literário concedido ao imaginário caipira. Contudo, a vida interiorana tende a ser mais explorada no seus vieses católico e cristão, religião e religiosidade que marcam a identidade e a experiência histórico-social do homem do campo desde as expedições bandeirantes e as evangelizações jesuítas, ambos processos violentos e predatórios. Em suma, associações bíblicas, como aquela sugerida no comentário em relação ao conto “Visão”, são inevitáveis, pois o catolicismo percorre a maioria das histórias do livro, sendo “Os castiçais de Santo Antônio” um caso que se destaca.

Este longo conto se debruça sobre a angústia de Benedito após ele ter furtado os castiçais de Santo Antônio no altar da igreja. Embora não tenha sido visto por ninguém no ato do crime – apenas pelo dono dos objetos, isto é, o próprio santo –, é aquele de quem todos desconfiam, inclusive Padre Joaquim, que, no alto de seu poder concedido por Deus, sente mais nojo que piedade pelo protagonista, um homem fatalmente preso ao estigma do bêbado maltrapilho e ladrão. Benedito até tem a oportunidade de ir ao confessionário revelar ao padre o seu feito; porém, nessa conversa mais amedrontadora que acolhedora, escolhe não contar nada sobre os castiçais, pois esse pecado também desperta nele uma importância jamais sentida, como se Benedito começasse a se perceber enquanto sujeito ao ver-se como dono de um segredo. Em suma, o dilema em torno do furto dos castiçais – devolvê-los ao santo e à Igreja, vendê-los, desfazer-se deles, confessar o crime etc. – parece resvalar em muitos medos: o castigo divino; a cadeia; e, principalmente, a morte de uma individualidade recém-descoberta.

A obsessão de se desfazer dos castiçais começa a perseguir Benedito. É fácil entregá-los, mas não quer fazê-lo. Sente que este ato anularia o furto e sente que o furto é qualquer coisa de esforço, de vontade, de iniciativa, de afirmação, que não deverá ser anulado. Ainda não perdeu de todo a esperança (Guimarães, 2023, p. 118).

No evento de lançamento, Cecilia Furquim Marinho pontuou outro elemento bastante explorado em Contos de cidadezinha, e que em Água funda foi mais sugerido do que demarcado textualmente: os conflitos advindos do preconceito de raça dentro da sociedade caipira. Se no romance de 1946, uma narrativa ancorada na transição do século XIX para o XX, o que prevalece é justamente a reflexão de que “as continuidades ruinosas imperam, muito mais do que as rupturas reais”, tal como pontuado por Fernanda R. Miranda em seu estudo, pois a colonialidade é um fio contínuo, nos textos de Contos de cidadezinha, por sua vez, a aura escravista e patriarcal é examinada a nível micro. Em outras palavras, os resquícios do racismo podem ser localizados nas miudezas do cotidiano, na intimidade de um casal, na sociabilidade do grupo, na subjetividade de personagens explicitamente descritos como negros, como o que se vê, por exemplo, em “A história besta de Manelão”: “A senhora sabe que sou trabalhador, sou trabalhador, sou trabalhador, e não havia meio de se lembrar do que mais disse. Olhou as mãos negras. Sou trabalhador”.

O trecho acima trata-se de um pensamento de Manelão, um homem apaixonado que, acreditando ser correspondido, pede à Dona Mariquinha para se casar com Lindoca, uma “mulatinha sarará, cria da casa dos Pacheco” (grifos meus). A moça, dissimuladamente, recusa a proposta, mas guarda para si o real motivo: “Casar com aquele negro, preto até o beiço? Deus me livre! A gente precisa apurar a raça”. Contudo, tal soberba, na verdade, esconde uma inocência sobre a própria condição, pois pouco tempo depois Lindoca aparece grávida de uma criança que, como ela mesma, não tem pai, mas “é a cara do padrinho Pacheco”. No fim, sem saída, casa-se com Manelão, aquele com quem sempre comungou da mesma raça.

Outro destaque de Contos de cidadezinha é a centralidade concedida à mulher, retratada em variadas circunstâncias sociais e situações, principalmente como uma espécie de elemento deflagrador e revelador da fragilidade do homem, ainda que este tenha toda uma sociedade arquitetada a seu favor. No conto “No dia em que deu a cobra”, a caboclinha Tunica, por algum motivo misterioso, começa a apostar compulsivamente no jogo do bicho, gerando burburinhos maldosos no bairro, fato que enraivece o seu marido, o maquinista Mamede. Este, um “homenzarrão de dois metros”, quase como um súdito, atendia a todas as vontades da esposa no convívio privado do casal, porém, ao ter a honra masculina ridicularizada publicamente, trata Tunica com violência para reafirmar o seu poder de (suposto) marido-provedor-dominador.3 Inclusive, a linguagem desse conto é muito similar àquela vista em Água funda, sobretudo no que tange à construção da voz narrativa, aqui completamente onisciente, e à estetização das vozes do povo, de forma a imprimir na escrita, como bem observou José Paulo Paes, em uma crítica publicada na revista Ângulo, aquela “espécie de simbiose entre o indivíduo e o grupo”, tão característica da cultura caipira.

Também no conto “As mãos de Teresa”, a falecida Teresa, pelo simples fato de cultivar o hábito da escrita (de cartas, diários e textos afins), atormenta o marido, o intelectual João Luís, que não quis ler os escritos deixados na gaveta da escrivaninha mesmo depois da morte da esposa, pois “não há nada pior no mundo do que saber”. Relembrando a postura de Paulo Honório com Madalena, em S. Bernardo, livro de Graciliano Ramos de 1934, a narração deixa entrever que João Luís sente ciúmes ao perceber que o letramento de Teresa dá a ela certa autonomia, simbolizando algo que nela ele nunca pôde controlar: os pensamentos e as palavras. Nesse sentido, o fardo do conhecimento, na verdade, esconde a angústia de um homem que não teve a posse absoluta sobre a vida da esposa, nem mesmo na morte dela: “Por que, se sua vida estava em minhas mãos e não foi por mim que ela morreu?”, pergunta-se o personagem.

Apesar desses pequenos atos de insubmissão, tais atitudes não são suficientes para subverter a ordem patriarcal ou mesmo poupar essas mulheres da violência. Aliás, quando tal empreitada se volta para fora do âmbito privado, as determinações impostas pelo lugar de gênero, reforçadas pela Igreja Católica, são severas e castigam as mulheres com finais trágicos, como é o caso de Maria, no conto “Duas mães”. Maria, arrependida de ter largado a filha e a família para seguir uma “paixão infeliz”, escreve à mãe, Dona Matilde, pedindo perdão e abrigo. Mais do que temer os julgamentos de toda a gente, inclusive do Padre Joaquim, aquilo que faz Dona Matilde não acolher a filha é o ressentimento por Maria ter conseguido, de certa forma, ir contra o que está prescrito a uma mulher simples: “Comigo que fico em casa e cumpro a minha obrigação, ninguém se importa. De mim, ninguém tem pena”. No fim, Maria foi rejeitada por todos e, vítima dos seus próprios desejos, matou-se com um tiro no coração.

Sem dúvida, conforme pontua José Paulo Paes, a grande força do livro está nos momentos em que a autora, valendo-se de uma linguagem coloquial e poética, consegue “descobrir, no dia a dia da gente mais simples, as raízes da humana condição”. É o que vemos no belo conto “Figueira marcada”, no qual Sontonho, um velho rancoroso que, no primeiro dia do ano, acorda com raiva de tudo e todos, pega o machado e começa a dar fortes punhaladas na grande, bela e florida figueira do quintal. Embora ninguém entenda o porquê de Sontonho querer cortar a figueira, a cada golpe de machado, da mesma forma que os troncos e galhos da árvore se agitam, qualquer coisa também se remexe dentro do homem, como se ele e a figueira fossem dois seres opostos, ao mesmo tempo que uma extensão do mesmo fio, tal qual a morte e a vida.

Desceu o caminho. Raiva no coração, como um veneno. Olhou para a figueira. Sentiu que o ofendia com um riso, o escurão da coma, a árvore teimosa e viva, poderosa, nenhuma solidão. Ninhos pelos ramos. Pássaros esvoaçantes, galharada sonora de trilos, de pios de gorjeios. A árvore não bulia mais. Parou o vento. Ainda parecia mais viva, mais gente, e ele perguntou num arranco, – assustando-se com a própria voz: – Quem está aí?

Só ela. Imensa, presença verdoenga, enchendo o campo. Maliciosamente ela lhe fez um aceno com um dos galhos mais altos.

– Eu tenho é que matar essa praga (Guimarães, 2023, p. 63-64)

Finalmente, Contos de cidadezinha captura o “ethos da vida da cidade pequena”, nas palavras de José Paulo Paes, alocada um contexto no qual o sujeito interiorano, compelido a se incorporar minimamente às dinâmicas da urbanização, já não está mais tão apartado da cultura da metrópole. As tendências emergentes da capital paulista repercutem nas cidadezinhas, de modo que o músico João Faria, personagem de “A primeira história de amor de João Faria”, é figurado como ex-aluno de Mário de Andrade; ou mesmo em “No dia em que deu a cobra”, em que o povo se atenta aos toques que anunciam as sessões das salas de cinema para não perder a fita do Mazzaropi. Ademais, o humor ruthiano em muito agrega força ao livro, haja vista que muitas das histórias têm um forte caráter anedótico, elaborado de maneira sofisticada, dispondo de um discurso narrativo que o tempo todo intercambia o trágico e o cômico. Por fim, o tom de prosa fiada, marcante no romance Água funda, encontra-se mais tênue, embora Ruth Guimarães continue “praticando a narrativa de tipo tradicional”, debruçando-se amorosamente na “fala acaipirada”, como bem salienta Paes.

Notas:

1 A tese de Fernanda R. Miranda, de 2019, foi publicada pela editora Malê com o título Silêncios prEscritos: estudos de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006). O estudo de Cecilia Silva Furquim Marinho, A palavra da mulher e o mundo do homem: três obras de autoria feminina na primeira metade do século XX, está disponível para download no Banco de Teses da USP.

2 Afirmação feita por Ruth Guimarães em 1983 em um discurso na Bienal Nestlé de Literatura, segundo informa seu filho Joaquim Maria Botelho no artigo “Ruth Guimarães: centenário de uma pioneira”, publicado na Revista Cultem janeirode2024.Disponívelem:https://revistacult.uol.com.br/home/cult-301-ruth-guimaraes/. Acesso em: 10 dez. 2024.

3 Dadas as devidas ressalvas quanto às circunstâncias sócio-históricas, é interesse resgatar uma observação de Carlos Rodrigues Brandão a respeito do papel da mulher na sociedade caipira tradicional: “Ainda que submissa por direito costumeiro às ordens do marido, a mulher de certo modo domina o cotidiano, porque é o seu trabalho doméstico que, na prática, dirige as atividades de produção da comida, do vestuário, do cuidado dos filhos. O próprio trabalho que o marido realiza no rancho serve aos interesses da esposa”. (Brandão, Carlos Rodrigues. Os caipiras de São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. p. 73-74).

Júlia Batista Bernardes Farias é escritora, professora de italiano, tradutora (italiano-português) e mestranda em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisas sobre produções literárias de autoria negra desde 2018 e, a partir de 2021, concentra-se na obra de Ruth Guimarães.

 Exportar PDF

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *