Jozias Benedicto
São Luís – MA
As mães nunca morrem, dizem. O vento é que as leva e, assim como as levou, as pode trazer de volta conforme sua vontade. Seus desejos. Seus quereres, volúveis como o vento, como a vida.
Quando minha mãe morreu, nossa família continuou muito unida. E antes até de completar um ano de sua morte, ela comentou comigo, com a mesma voz doce e firme de quando era viva: queria fazer uma viagem conosco, eu e meus irmãos. Sou o mais novo dos filhos, mas acho que o mais atento e ajuizado; e era comigo que minha mãe falava quando estava arreliada com um dos filhos ou com meu pai.
Meu irmão mais velho, Pedro, é quieto e estudioso; desde menino tudo anotando em uns cadernos com letra pequena e tortuosa; escrita cheia de parênteses do jeito escarrado como ele fala, pleno de minúcias.
Joaquim, o do meio, desde criança foi sempre o querido de todo mundo, tarimbado em dançar as músicas da moda; poucos adjetivos e advérbios, a vida pão-pão-queijo-queijo, sem voos de imaginação ou sonhos e ideais.
Eu acho que sou o mais judicioso, ponderado, o mais comedido, embora com certeza não sou destas inteligências assim. Após a morte de minha mãe, sou eu aquele a cuidar das galinhas e da cabra e dos cabritos e a cobrar o aluguel das lojas e das casas das putas em uma vila beirando o rio, construída por meu pai. Com o dinheiro eu compro as coisas no mercado e dou uma ordem na casa e ainda sobra um pouco de dinheiro para ir ver as rinhas de galos. Nós nunca brigamos, acho que discutimos tudo o que era para divergir quando éramos crianças e depois de crescidos passamos a viver em paz.
Quando minha mãe falou comigo que precisava fazer esta viagem, pois o desejo dela era passar na capital o seu aniversário, o primeiro dela depois de morta, a reação dos meus irmãos foi diversa. Pedro não gosta de dormir fora de casa, quanto mais de pensar em sair de nossa cidadezinha, e ficou muito amuado; Joaquim ficou alegre e passou a sonhar o tempo todo com as festas da capital, os bailes, os clubes, os cabarés. Eu é que fiquei cheio de inquietações, ia ser uma despesa grande, e a nossa vidinha era assim bem simples; se do dinheiro das cabras e das rendas não sobrava quase que mais nada, como a gente ia conseguir fazer uma viagem longa e custosa como a tão desejada por nossa mãe mesmo depois de morta?
Mas não tem pai ou mãe que morre e pede à família coisas muito complicadas? Como construir um mausoléu de mármore importado ou para um filho farrista se ordenar padre ou para uma filha entregar a um pobre as posses todas herdadas? Nós, como filhos, precisamos dar um jeito de cumprir o desejo de nossa mãe de fazer esta viagem, mesmo com a carência de recursos. Com isso ela pode enfim descansar.
Jozias Benedicto é escritor e artista visual, com especialização em “Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo”. Vive e trabalha entre Lisboa e o Rio de Janeiro. Tem oito livros publicados, entre eles: “Nada permanece nunca”, livro de contos, lançado em Portugal em 2024 pela Mercador Editorial; “Estranhas criaturas noturnas” (finalista Prêmio SESC 2012/13); “Como não aprender a nadar” (Prêmio Governo de Minas Gerais 2015 e Prêmio Moacyr Scliar (UBE-RJ 2019); “Um livro quase vermelho” (Prêmio Fundação Cultural do Pará 2018); “Aqui até o céu escreve ficção” (Prêmio Fundação Cultural do Maranhão 2018). Finalista do Prêmio LeYa de literatura 2024 com o romance, ainda inédito, “As vontades do vento”, que será lançado no segundo semestre de 2025 em Portugal e no Brasil pela Caravana Editorial e do qual integra o excerto destacado.