ENTREVISTA

Misael Ruiz, um retrato

Imagem: arquivo pessoal.

Por Thomaz Albornoz Neves,
para a Especiaria.

Nos conhecemos em um festival de poesia em 2022. Misael viajou de Barcelona e eu de Sant’Ana do Livramento para, por acaso, entre dúzias de poetas, nos encontrarmos lado a lado em uma mesa de leitura na Intendencia Municipal de Montevidéu. Ao ouvir de tão perto os versos, sua intensidade existencial, senti uma empatia imediata pela figura reservada que os lia. Um homem de bem com o próprio silêncio.

Para esta matéria, busquei informações sobre o poeta. No seu acervo encontrei, entre tantas outras, afirmações como estas:

“Não sou muito sensível à relação entre os poemas e aqueles que os escreveram. Se um poema me seduz, é muito provável que me interesse mais por ele do que pelo seu autor — que, por outro lado, é muito mais do que o poema —, da mesma forma que me interessa mais a experiência da sua leitura do que as letras mudas no papel. Em geral, os poetas que mais chamaram minha atenção por sua biografia ou por suas reflexões sobre a poesia e a vida literária não exerceram um efeito profundo em mim através de sua obra.”

Sim, para quem está neste ofício tempo suficiente, o talento vira lugar-comum. De modo que, saber das experiências que foram objeto da atenção interessa ao leitor que procura um entendimento não apenas da obra, mas do que a provocou. Ou, em outras palavras, busca o que cada um faz com a sua aptidão, o uso que dá a ela. A série de entrevistas que inicio com Misael Ruiz se origina desse interesse.

Antes de formular as perguntas, pedi ao poeta que me desse alguma informação biográfica. Suas notas criam um retrato mais nítido que qualquer outra introdução feita a seu respeito. Vão como segue:

Infância
Nasci em Bruxelas, em junho de 1960, embora o parto tenha começado em um dos últimos aviões das Forças de Paz da ONU que saíam do Congo devido à guerra da Independência. Posteriormente, voltamos para o Congo, onde fiquei até os dois ou três anos em Bomongo e Boende, no interior. Uma das minhas irmãs nasceu lá, em Mbandaka. Depois, ficamos cinco anos na Alemanha, em Colônia, onde aprendi a ler e escrever em alemão. Minhas primeiras leituras foram os contos dos irmãos Grimm e de Andersen. Meus quadrinhos, os de Winnetou. Mas é uma língua que já não consigo falar. Meus pais voltaram para o Congo e passei um ano com meus avós em Madri, onde frequentei uma escola hispano-alemã. Depois nos reunimos com eles em Kinshasa, no Congo, que é de onde guardo a maioria das minhas lembranças e o lugar que representa, de certa forma, o lugar de onde eu poderia dizer que sou. Mas é um lugar que, na verdade, já não existe e ao qual não voltei. Minha educação foi, a partir desse momento, em francês. Lá fiz os primeiros amigos cujos nomes me lembro. Até os quinze ou dezesseis anos, minhas leituras eram em francês, da biblioteca do meu pai, embora fossem escritores de outras línguas traduzidos. Aos treze anos, fomos enviados para um internato em Madri. Passar de uma vida ao ar livre em um lugar tropical para um prédio antigo na Espanha ainda franquista e em um colégio de padres foi um golpe duro para todos os irmãos. Foi nessa altura que comecei a minha educação em espanhol. Durante esses dois anos, continuamos a ir a Kinshasa nas férias. Depois, os meus pais regressaram a Espanha e nos mudamo para Logroño, no norte, e finalmente para Madri, onde estudei Filologia Inglesa, apesar de ter feito toda a minha formação em ciências.

Trabalho
Profissionalmente, me dediquei à tradução e ao ensino de idiomas. Durante alguns anos, também fiz exposições de fotografia e ensinei história da fotografia em Barcelona. Minha vida adulta transcorreu principalmente em Maiorca (onde morei quinze anos no campo) e em Barcelona, para onde voltei há alguns anos para estar mais perto da atividade literária.

Atividade literária
Embora tenha começado escrevendo poesia, durante anos também escrevi contos, que não cheguei a publicar. Minha trajetória poética pública começa em 2002, quando me incorporei ao terceiro número da revista de poesia Animal Sospechoso, em Barcelona. Desde então, colaborei com o projeto de uma forma ou de outra. Sempre acompanhei a escrita com a tradução de poesia. Mas nunca por encomenda, e sim como uma forma de ler em profundidade um autor e fazer seus poemas meus.

Durante cerca de quatro anos, traduzi a poesia de R.S. Thomaz, da qual publiquei uma edição na Trea (2008). Embora não fosse esse o objetivo, como os pintores quando copiavam os antigos mestres, acabamos por aprender com os autores que traduzimos. Depois, publiquei meu primeiro livro de poemas, El hueco de las cosas (Trea, 2010). É um livro do qual ultimamente me sinto próximo, por seu caráter essencial e — acredito — sua falta de concessões literárias.

Durante anos, traduzi outros poetas como forma de continuar escrevendo, enquanto tenho algo próprio a dizer ou não. O autor seguinte a quem dediquei vários anos foi Clive Wilmer, um poeta inglês, tradutor de poesia e professor que conheci durante uma breve estadia em Cambridge e que faleceu há pouco mais de um mês. Durante três anos, mantivemos uma correspondência sobre os poemas que eu traduzia, da qual aprendi, antes de tudo, a precisão e as diferentes camadas que ficam ocultas sob a superfície do poema e que lhe conferem densidade. Publiquei a tradução de seu livro El misterio de las cosas em 2011 (Vaso Roto).

Dentro de alguns meses publicarei uma antologia de toda a sua poesia acompanhada — à maneira das edições antigas com notas nas margens — de uma seleção de seus comentários extraídos de nossa correspondência. No momento de sua morte, Clive Wilmer estava justamente trabalhando na correção das provas. Paralelamente, foi surgindo Todo es real (Pretextos, 2017). Foi um livro que escrevi num período da minha vida de muitas mudanças, durante o qual fui viver no campo. Acho que as plantas me ensinaram, acima de tudo, a ter paciência, a deixar os poemas crescerem por si mesmos: meu trabalho devia limitar-se a regá-los, podá-los e acompanhá-los. Esse livro recebeu o prêmio Antonio Oliver Belmás (2016).

Comecei então a traduzir o poeta metafísico inglês George Herbert (1593-1633) junto com o tradutor e ensaísta Santiago Sanz. Como quase sempre, no início não aspirávamos a traduzir mais do que alguns poemas, mas após quatro anos tínhamos reunido peças suficientes que, juntamente com uma introdução e um conjunto de notas, acabaram por constituir a primeira antologia monográfica desse autor em espanhol. O livro de Herbert, Antologia poética (Animal Sospechoso, 2014), recebeu o prêmio de Tradução Ángel Crespo para a melhor tradução publicada nesse ano.

Enquanto um novo livro de poesia, Una idea de mundo (Animal Sospechoso, 2022), ia tomando forma, fiz uma pequena edição dos poemas de Catherine Pozzi com uma seleção de sua correspondência com Paul Valéry e, novamente com Santiago Sanz, dediquei cerca de três anos à edição dos pequenos ensaios e uma seleção de poemas do filósofo George Santayana. Houve mudanças na minha vida pessoal e voltei para Barcelona. O resultado poético desses últimos anos está no livro que acaba de ser lançado e que apresentarei na próxima semana: La rama vacía (Animal Sospechoso, 2025).

Atualmente, dedico grande parte do meu tempo à diagramação e edição de livros de poesia.

Pessoas
Estou convencido de que apenas uma parte da autoria do que escrevemos nos pertence. De um ponto de vista estritamente literário, várias pessoas tiveram uma influência especial na minha maneira de ler e escrever. Deixo de fora, é claro, tudo o que, não sendo estritamente literário, moldou minha vida. Está, na minha época de formação, meu pai, médico com múltiplos interesses, grande leitor interessado em literatura, línguas, história e música. É um homem de espírito crítico que continua sendo, aos seus noventa e três anos, um dos meus interlocutores favoritos.

Com Santiago Sanz, tradutor e ensaísta com quem traduzi a poesia de George Herbert e George Santayana, compartilhei leituras e comentários por mais de trinta anos. Minha leitura tornou-se muito mais perspicaz e rica a partir da dele; sem querer, ele me ensinou a ver, por baixo dos textos, a corrente subterrânea da tradição. Com Juan Pablo Roa, editor, tenho vinte anos ininterruptos de estreita colaboração e leituras conjuntas de outros poetas e da própria obra. Foi ele, junto com Roberta Raffeto, quem me introduziu no mundo literário e sempre acreditou – de forma crítica – na minha poesia.

Com a poeta Mónica Picorel compartilho o dia a dia da poesia a partir da “cortesia da descortesia” de quem diz o que pensa. Isso é algo que todas as pessoas – amigos – que mencionei compartilham entre si: a falta de concessões à imposição e à construção literária, e a necessidade da palavra e da poesia.

Outros
Sempre fui um entusiasta das montanhas, onde continuo subindo de vez em quando. Sinto um interesse especial – ou afinidade – por plantas e pássaros. Durante os anos em que morei no campo, aprendi com as plantas a ter paciência. Não se pode apressar seu ritmo, apenas acompanhá-las, e seus ciclos exigem pelo menos um ano. Tentei incorporar o modo de agir delas à escrita.


Especiaria Teu primeiro livro de poemas “El hueco de las cosas” (Trea), é de 2010. Hoje, quase quinze anos depois, comentas que te sentes próximo dessa reunião pelo seu “caráter essencial” e sua “falta de concessões literárias”. Por outro lado, és um leitor cuja formação leva a procurar sob os textos que te interessam “a corrente subterrânea da tradição”. Em “El hueco de las cosas” quais camadas de influência estão presentes? E quais estão ausentes?

Misael Ruiz El hueco de las cosas nasceu de uma certa vontade de radicalidade, ou seja, da falta de concessões diante de qualquer veleidade literária. Acho que a poesia é algo diferente da literatura, não a concebo como uma construção verbal – embora seja feita de palavras – nem como uma representação mais ou menos fiel da realidade, mas como uma forma de fazê-la aparecer diante de nós. Mas as palavras — como nos famosos “jogos de palavras” — nascem de uma determinada “forma de vida” e, naquele momento pelo menos, eu estava totalmente concentrado na observação do mundo que me rodeava, bem como na observação da minha maneira de observar. É inevitável para mim voltar o olhar para o próprio processo de observação e para o processo de pensar. Naquela época, eu estava lendo com muito interesse, pelo que me lembro agora, José Ángel Valente, Celan e a última poesia de Eugenio Montale. Eu era muito atraído pela precisão e exigência com a palavra, sem, por causa disso, fazer da palavra seu único tema: eu era atraído, de forma mais ou menos consciente — e continuo sendo atraído — pela tensão entre a palavra e seu sentido.

Especiaria“En un torrente seco” é um poema central desse primeiro livro. Reúne muitos elementos presentes em “Todo es real” (Pretextos, 2017) e “Una idea de mundo” (Animal Sospechoso, 2022), teus dois livros de versos seguintes. O olhar solitário em um cenário de natureza agreste. O indivíduo não está fora do cenário. Ao contrário, o cenário está nele. Não há apenas o tempo presente, mas o instante em movimento, o transcurso do momento captado por uma atenção intensa a serviço do poema. Atenção que funde exterior e interior, o universo objetivo com o universo subjetivo ao mesmo tempo, em que pondera a relação com a linguagem. São três dimensões, certo? O mundo lá fora, o mundo aqui dentro e a palavra. Até que ponto essa escritura é consciente, até que ponto ela é premeditada? Qual o papel da inspiração no processo criativo?

Em um leito seco

Sozinho, além das amendoeiras,
na forquilha do penhasco e os pinheiros,
observa atentamente o silêncio.

Escuta a fina ramagem
cinza verde no céu;
cheira a crista das rochas;

apalpa, no ápice do nariz,
o pólen, os esporos, as volutas
de névoa; desfaz na boca

o grito histérico de um pássaro
oculto na mata, entre os caules
tostados do medronheiro e as folhas

afiadas da mirta. Escurece
nas raízes da azinheira, somem
as verrugas e a flor amarela

do hipérico, os dentes minúsculos
do falso quermes, aristocrático,
e se ilumina o céu,

vermelho, sem a inquietude, agora,
do inverno: não teme a transição,
imensa mudança do mundo.

As palavras são os ramos e as folhas
da mente: brotam, crescem,
caem. Apodrecem no chão

com as chuvas de outono. O corpo
é também terra escura
quando chega a primavera.

Brotam as folhas, jovens
turgências nos bustos jovens,
sílabas assustadas se juntando

em palavras e frases que procuram
a claridade do céu, ali,
no meio do bosque, em um corpo

ainda sem nascer, através da greta
não aberta por dentes em outra gengiva.
As sílabas, a seiva da boca,

caem entre as folhas secas,
em um leito seco, um lugar
de pedras sem nome. Sem forma.

Misael Agradeço tua observação. Não tinha percebido até que ponto esse poema antecipa e reúne elementos que aparecem em livros posteriores. Agora, ao reler o poema, vejo que, de fato, há uma fusão entre os três elementos que mencionas: o interior, o exterior e a palavra. Embora a realidade não seja a soma desses elementos, somos nós que a desmembramos e reduzimos para falar ou pensar analiticamente sobre ela. Acho que o poema tenta reunir o que já era uma unidade, mas, para isso, precisa superar a capacidade discriminatória da linguagem: por isso, no poema, “as sílabas [são] seiva da boca, / caem entre as folhas secas” e produz-se uma sinestesia constante que permite ouvir os galhos, cheirar a crista das ondas, desenhar na boca o grito histérico de um pássaro… O mesmo acontece com o tempo, que também é uma forma de ordenar a experiência. O poema nasce, como bem dizes, de estar atento a uma paisagem agreste — uma paisagem concreta, da qual poderia indicar o lugar e a circunstância particular — e de prestar atenção ao processo de observação através dos sentidos, bem como às palavras que dão forma ao que, sem elas, não tem forma.

Especiaria A questão é mais ampla. O poeta busca deliberadamente a experiência que provoque a criação?

Misael Não procuro experiências para escrever. Qualquer experiência pode dar origem a um poema. O mundo está em toda parte e a poesia não é mais do que uma linguagem sem limites na qual tudo deveria caber. No meu caso, é uma prolongação do diálogo interno que mantenho com a própria linguagem que, na realidade, extrai seu sentido do uso de todos os seus falantes. Por isso, falar consigo mesmo é falar com uma infinidade de vivos e mortos.

EspeciariaJoão Cabral de Melo Neto me disse em uma entrevista que sentia aversão pela verborragia descritiva da poesia moderna, em especial a dos surrealistas. Que teve dificuldade de entrar na poesia inglesa através dos românticos, de Byron, Shelley e Keats. Foi somente quando leu os poetas renascentistas, em especial George Herbert, que encontrou a fresta. É curioso porque Cabral nada tem de metafísico e Herbert é um poeta espiritual. Te dirijo, Misael, a pergunta que deveria ter feito a Cabral em 96. O que leva alguém aparentemente tão ancorado no mundo concreto como tu, a mergulhar em um poeta como Herbert e traduzi-lo? Haveria na experiência espiritual do clérigo inglês alguma correspondência com a transcendência que alguns poetas experimentam durante o ato de criação? Ao ler o poema Plaza Vasari, Arezzo de “Todo es real” me pergunto se o estremecimento mencionado no poema tem algo de despertar? De epifania? Ou é apenas uma sensação provocada ao vislumbrar um sentido no meio do caos?

Praça Vasari, Arezzo

A praça, irregular como um diamante
imaginário. O duplo plano
inclinado desdobra sem esforço
a ordem da luz na pupila:

o espaço cresce no vão que separa
a lógia do palácio. Vários séculos
da oferta flutuam na memória
deste caçador de essências. Estremece
ao compreender na raiz, a delicada

dobradiça da extensão e o pensamento
o gume em que a ideia é o corpo.

Misael Não sei se meu poema tem um efeito semelhante. Não sei se é uma epifania, ou se é de uma forma muito particular, quase inversa. Eu não poderia separar minha escrita do processo — e do prazer — de perceber algo que até então não passava de uma reflexão: que as coisas e sua ideia são o mesmo, que formam uma unidade.

EspeciariaEm que grau “Todo es real” é um livro de amor conjugal? Um livro em que o corpo é objeto do poema para que o poema possa nomear o incorpóreo, nomear o inominável?

Misael – Amor conjugal! Eu nunca teria pensado nisso, salvo se for em sentido figurado. Mas tens razão, o corpo é o objeto do poema, mesmo sendo um corpo, como tu mesmo apontas, problemático, que se desfaz diante de nós assim que tentamos capturá-lo, fixá-lo, dar-lhe forma. Qual é o seu limite? No poema “Dissolução” fica bem claro: “[…] Eu sou / água feita corpo, o ar / que sai dos meus pulmões e o que fica / são algo diferente do que eu sou?” Assim que atribuímos uma forma a um objeto, suas formas começam a desbotar, como quando vemos figuras nas nuvens e um momento depois elas desaparecem.

EspeciariaQue tudo é real, inclusive a irrealidade?

Misael As palavras criam a realidade e, por outro lado, são uma convenção. Eles não são uma base sólida de significado. E, no entanto, penso que “tudo é real”. Há quem diga que nada é real. É um problema linguístico, como geralmente acontece: depende de como usamos a palavra real. Dizer que nada é real sugere que existe ou deveria existir uma realidade real à qual não podemos acessar, de certa forma transcendente e metafísica. Mas eu só posso acreditar — com “fé animal” — naquilo que sinto ou penso, independentemente de tocar com os dedos, de ser um sonho ou o fruto imaginário do desejo. Meu uso da palavra real abrange todo o espectro da imaginação. Um corpo ou objeto hipotético supostamente independente da minha existência tem tanto peso na minha vida quanto uma imagem ou ideia alojada na minha mente; especialmente se, como acredito, a mente e o pensamento nada mais são do que certas configurações do nosso corpo.

EspeciariaApesar da evidente afinidade com o zen, de teres participado com o argentino Alberto Silva e com o colombiano Juan Pablo Roa na criação de um poema coletivo encadeado, um renga, de te interessares por Chuang Tse, dizes que tua poesia não deve ser lida desde uma perspectiva orientalista.

Misael – Não pratico meditação Zen nem professo nenhuma fé orientalista. No entanto, há muito tempo me interesso pelo taoísmo de Chuang Tse e Guo Xiang. No caso de Renga (Animal Sospechoso, 2022), embora Alberto Silva seja um tradutor e grande conhecedor da poesia clássica japonesa, estávamos mais interessados ​​na criação coletiva do que em imitar uma tradição exótica. O próprio processo de escrever a três mãos provocou – após um primeiro ensaio – a dissolução de um ego que sempre foi central na poesia ocidental. Tínhamos muita consciência disso e queríamos evitar a todo custo a possibilidade de que se tornasse um duelo ou uma afirmação da expressão individual, a ponto de não conseguirmos dizer quais estrofes foram originalmente escritas por cada um de nós. Essa é talvez a maior conquista do livro.

EspeciariaPorém, em grande parte dos poemas de teu terceiro livro, “Una idea de mundo”, se adverte a fugacidade dos temas e a transitoriedade do pensamento de uma forma mais circunstancial, cotidiana, que nos volumes anteriores. Não que te orientalizasses de fora para dentro, mas a presença zen se faz sentir em uma poesia que é o que sempre foi: cerebral.

Misael Há quem diga que minha poesia é filosófica ou cerebral. Discordo amavelmente. Poesia é algo distinto de filosofia e, ao mesmo tempo, poesia também é pensamento. A princípio a distinção não era tão clara. Penso em Heráclito, por exemplo, pelo menos na forma fragmentária como o lemos. É claro que não existe poesia sem um sentimento que a torne necessária. Eu diria que nos meus poemas há o que normalmente chamamos de pensamento – isto é, fragmentos mais ou menos discursivos – assim como há expressão de emoções e também, inevitavelmente, uma percepção sensível do mundo ao meu redor. Gostaria de pensar que eles não deixam nada de fora. Acredito que o mais próximo que podemos chegar do mundo é reconhecendo sua presença e observando suas formas.

EspeciariaA provocação da pergunta anterior — se é possível transcender através da inteligência — vem ao encontro dessa tensão. Se, no lugar da experiência direta da realidade e da prática da meditação, utilizas um método racional e sistemático para “estar no mundo”, à la Spinoza, como vês filosoficamente tua poesia?

Misael Não tenho nenhum modo racional e sistemático. Quando começo a escrever, nunca sei o que vou dizer. Não entendo como seja possível saber o que pensar antes de pensar. O mesmo ocorre com poemas. Se já se sabe o que se quer dizer, o poema termina por dar uma lição, o que incomoda qualquer leitor. A linguagem poética não tem limites nem formas pré-determinadas, ela pode ser qualquer coisa. Além disso, o poema deve sempre evitar a ideia que temos do que é um poema. Outra coisa é que, no meu dia a dia, tenho algumas ideias gerais mais ou menos estabelecidas sobre o que é o mundo. Mas quando escrevo, preciso seguir em frente sem um rumo fixo, como alguém que sai para passear.

Especiaria

A faísca
do que compreende y o compreendido
são uma única luz


(…)
La chispa
del que comprende y lo comprendido
son una sola luz

Esses últimos versos de “Todo es real” me lembram o Éluard de “Le miroir d’un moment”. É possível transcender através da inteligência?

Misael Na verdade, penso exatamente o oposto. Não creio que haja nada a transcender. Eu só acredito no que está aqui, seja em extensão ou em pensamento: como eu entendo a palavra real, o que eu toco é tão real quanto o que eu penso ou o que eu sonho, e não há além. Essa realidade inclui, é claro, tudo o que podemos imaginar enquanto criamos a realidade, expandindo-a. E essa compreensão, como dizem os versos que você cita, não é algo que fazemos com a realidade como se fosse algo externo a nós, mas sim, é o encontro entre o “que entende” e o “compreendido” na palavra: então a “faísca” salta. Embora esta seja uma mera exposição discursiva: o poema é sempre uma intuição, uma apreensão imediata na palavra. No poema, o que se apresenta como real nos é revelado sem necessidade de ser interpretado. Só podemos apontar para ele, como alguém aponta para uma árvore ou uma pedra para indicar sua presença.

EspeciariaEntre o Zen e Spinoza, onde entra Santayana?

Misael Mais do que Zen, estou interessado no taoísmo de Guo Xiang, sua interpretação de Chuang Tzu. E Spinoza, é claro. Traduzi Santayana, junto com Santiago Sanz, e o li durante anos. Gosto muito da maneira como ele não abre mão dos valores — aquilo diante do que deveríamos nos calar mas nos impede de fazê-lo — ao mesmo tempo em que mantém uma fé animal na existência material do mundo. Sua prosa é maravilhosa, e cada argumento é sempre acompanhado de um contra-argumento, então nunca sentimos que ele está reduzindo o mundo a uma fórmula. Não sei se lê-lo ajuda minha poesia, talvez algum poema tenha se contagiado do seu espírito, quem sabe.

EspeciariaAntes de publicar poesia, foste fotógrafo, fizeste exposições e lecionaste história da fotografia em Barcelona. Seria justo dizer que o click da foto, o tempo justo que apreende o instante também está na tua poesia? E, sendo assim, esse tempo suspenso não seria o mesmo do haikai?

Misael Depende do tipo de fotografia. O instantâneo, o “instante decisivo”, é uma coisa, mas a maneira como olhamos para uma fotografia mudou ao longo do tempo e se tornou cada vez mais problemática. Estamos mais conscientes dos vieses que moldam uma fotografia: o ponto de vista, a escolha do tema, o pós-processamento da imagem, a criação da cena, a apresentação dessas imagens individualmente ou em série… Hoje, com a criação digital, o vínculo entre a fotografia e o mundo foi definitivamente quebrado: a verossimilhança importa mais do que a verdade. O haicai, assim como a fotografia, está sujeito a uma série de convenções, não apenas formais, mas também relacionadas ao conteúdo. A espontaneidade exige, para não cairmos na ingenuidade, que superemos tudo o que a linguagem – visual ou verbal – carrega consigo. Cada vez que usamos uma palavra ou uma imagem, estamos ativando muitas camadas de significado na mente da pessoa que a lê ou visualiza. Portanto, um verdadeiro poema é um milagre.

Especiaria De que forma o homem claramente moderno que és, lida com a pós-modernidade? É possível manter nítida a identidade do autor hoje em dia? Nítida o suficiente para sobreviver em termos geracionais?

Misael Parte desses problemas se dissolvem quando deixamos de prestar atenção neles. Manter uma identidade como autor é tão difícil ou tão fácil quanto manter uma identidade em nossas vidas. A pior coisa que podemos fazer é tentar construir uma identidade para nós mesmos voluntariamente. Resultará sempre falsa. Vejo minha poesia como o rastro do que escrevi, nunca escrevo com um propósito explícito; pois não encontro outro propósito na vida além de vivê-la. O significado que nosso trabalho pode ter no futuro está além do nosso alcance.

EspeciariaQual o impacto do mundo digital – sua velocidade, seu imediatismo, sua dispersão – no teu trabalho?

MisaelO impacto digital é evidente porque um poema, como qualquer outra manifestação expressiva, é lido em contexto, e atualmente estamos cercados de palavras, imagens e aplicativos em formato digital. Sinto que uma certa articulação do pensamento se perde, uma conexão sintática mais complexa e, ao mesmo tempo, as palavras agem como unidades justapostas. A maior desvantagem é que, à medida que damos mais atenção à representação digital do mundo, roubamos isso de tudo o que não aparece nas telas: a observação direta de objetos, paisagens e animais, o que os outros fazem ou dizem ao nosso redor… As telas nos aproximam do mundo e nos distanciam dele. Se lhe oferecermos a nossa atenção — a coisa mais valiosa que temos — e nos permitirmos momentos de silêncio, o mundo retorna para nós de alguma forma: ele está sempre lá, quer saibamos disso ou não.

EspeciariaNão poderia estar mais de acordo contigo quando afirmas “estar convencido de que nos pertence somente uma parte da autoria daquilo que escrevemos”. É uma afirmação que diz respeito à relação entre tradição e originalidade, o coletivo e o individual, o ancestral e o contemporâneo. Está na linha do tempo da poesia milenar chinesa. Já entre nós, remete também ao futuro, à posteridade e ao cânone ocidental, categorias tão esvaziadas na atualidade.

MisaelA tradição é inevitável. Todas as palavras que usamos são herdadas, as primeiras devemos à nossa mãe, ao nosso pai. Pensamos e sentimos com eles: graças a eles e contra eles. Quanto à tradição literária em si, parte dela é subliminar e o resto temos que conquistar. Ler certos poemas nos faz ver e pensar coisas que jamais imaginaríamos sozinhos. A leitura ativa e criativa é o que nos permite fazer da tradição, ou parte dela, nossa. Quanto à originalidade, ela não pode ser buscada, ou é uma consequência natural da nossa própria intuição ou não. Existe algo mais ridículo do que alguém tentando ser original?

EspeciariaComo situarias “La rama vacía” em relação aos livros anteriores? Há a mesma continuidade estilística ou é um livro que, diferentemente de certo minimalismo anterior, cresce em exuberância?

MisaelÉ um livro muito recente e, por isso mesmo, me falta perspectiva. Ele responde a quase cinco anos de escrita. As circunstâncias em que comecei a escrevê-lo me fizeram querer me livrar de tudo que eu não sentia ser estritamente necessário para o poema. Adotei a afirmação de Goethe de que todo poema é sempre um poema de circunstância e, por outro lado, não queria que ele fosse “nem muita poesia, nem muita prosa”, como escreveu Milosz. Falo sempre a partir de uma experiência concreta: claro, entendendo experiência num sentido muito amplo: uma ideia, por exemplo, também é uma experiência. Ao mesmo tempo, aquilo de que falo só existe no poema.

Eu não tinha percebido que, como tu disseste, a partir de certo ponto os poemas se expandem para territórios que eu não havia explorado antes. Me alegro porque gostaria de pensar que se estendem a outras regiões da realidade, que expandem meu próprio mundo.

EspeciariaAos 64 anos, sentes a atemporalidade poética com mais intensidade?

MisaelPor um lado, não há atemporalidade: a linguagem muda, a sensibilidade muda, e os leitores e as formas de ler mudam. Às vezes, elas não apenas mudam, mas desaparecem. Mas, por outro lado, tudo o que acontece – não apenas poemas, mas qualquer experiência – permanece como uma ideia fora do tempo. Minha avó costumava dizer: que me quiten lo bailao. A dança acabou, mas a ideia de ter dançado continua ali, na mente. A mesma coisa acontece com poemas. Tudo mudou desde que João da Cruz escreveu seu “Cântico Espiritual”, e ainda assim o poema continua lá para ser lido de maneiras que o autor não poderia ter previsto.


Sete poemas de “La rama vacía


salta a faísca e a chama aviva
até que tudo seja cinza

Sentir o ar entre as nuvens
esquecer que a carne é nossa

Deixar que alguém nos respire
entrar nele e ser, por fim
sopro de outra boca

§

salta la chispa y se aviva la llama,
hasta que todo sea ceniza.

Sentir el aire entre las nubes:
olvidar que la carne es nuestra.

Dejar que alguien nos huela,
entrar en él y ser al fin
aliento de otra boca.

o quebra-mar de novo
Não é um retorno, é só um simulacro
fundo na mente

Lentamente o barco avança
dando tempo ao pensamento.
Ida ou volta, tanto faz
se o centro é móvel, o equilíbrio
importa mais

Então
um pequeno milagre: dois delfins
saltam junto ao casco enorme
O barco é brinquedo para eles,
nenhuma videira trançada ao mastro.

Mergulham e o mar emudece
Apoiado na amurada
não sei se vou ou se volto.

§

el espigón de nuevo.
No es un regreso, es sólo un simulacro
al fondo de la mente.

El barco avanza muy despacio,
ofrece su tiempo para pensar.
Ida y vuelta es lo mismo
si el centro es móvil, lo importante
es mantener el equilibrio.

Entonces
un pequeño milagro: dos delfines
saltan junto al enorme casco.
El barco es su juguete,
ninguna vid enroscada al mástil.

Se hunden y el mar enmudece.
Acodado en la barandilla
no sé si voy o vuelvo.

_

vivo nos parques
como outros em sonhos.

Na falsa intempérie das tílias
se oculta o tempo, rápido
como as asas de uma mosca.

Lá fora,
o informe vai rumo à forma,
depois retorna ao informe.

Por isso busco a murta
o viburno, o eleagno
com a tenacidade da mutuca.

§

vivo en los parques
como otros en sus sueños.

A la falsa intemperie de los tilos
se oculta el tiempo, rápido
como las alas de una mosca.

Fuera,
lo informe va hacia la forma,
después vuelve a lo informe.

Por eso busco el mirto,
el durillo, el eleagno
con la tenacidad del tábano.

_

em terras de acácias
a rubra argila em nossas mãos

a manga, o mamão,
a muda e pardacenta água dos rios, o ímpeto
do corpo contra o corpo

a surpresa do símio e da gineta
o homem que, virando o rosto, oferece
sua flor de lepra;

o cheiro da fogueira,
as tranças enredadas, o estalo
de uns dedos duros como a pedra;

as camisas brancas, os pés descalços.

Já ao longe,
em um lugar sem nome,
invernal

e triste, a terra extinta: somos
do jardim do nada.

§

en un país de acacias
la arcilla roja en nuestras manos;

el mango, la papaya,
el agua muda y parda de los ríos, el ímpetu
del cuerpo contra el cuerpo;

la sorpresa del mono y la jineta,
el hombre que al volver el rostro ofrece
su flor de lepra;

el olor de una hoguera,
las intrincadas trenzas, el chasquido
de unos dedos duros como la piedra;

las camisas blancas, los pies descalzos.

Ya lejos,
en un lugar sin nombre,
invernal

y triste, se apagó la tierra: somos
del jardín de la nada.
_

o pardal cruzando a choça
iluminada no meio da noite
o mergulho no mar de um penhasco
um simples trânsito, uma luz que muda
a última transformação;
virar pássaro, menina, peixe,
cabra, a perna de um inseto,
um fígado de rato, ser a face
verdadeira, lentamente esculpida
ano a ano, a máscara no reino
do pensado, o pó e o vapor
de um corpo exausto em sua memória;
o silêncio que aflora como espuma
entre as mãos, dissolve o rastro
não selado de outras mãos, não vês
como a névoa procura?

§

el gorrión atravesando la choza
iluminada en mitad de la noche;
el salto al mar desde un acantilado,
un simple tránsito, un cambio de luz,
la última transformación;
volverse pájaro, muchacha, pez,
cabra, la pata de un insecto,
un hígado de rata; ser el rostro
verdadero, lentamente esculpido
año a año, la máscara en el reino
de lo pensado, el polvo y el vapor
de un cuerpo exhausto en su memoria;
el silencio que aflora como espuma
entre las manos, disuelve la huella
no cerrada de otras manos, ¿no ves
cómo busca la niebla?

_

a impotência do corpo
reiterada
contra o corpo
até que seja dada a palavra
prova comum de respirar

Inesperados,
os lábios recorrem a nuca,
silencioso, delicado cortejo
às margens
do pensamento.

§

la impotencia del cuerpo
reiterada
contra el cuerpo,
hasta que la palabra es dada,
prueba común de aliento.

Inesperados,
los labios recorren el cuello,
silencioso, delicado cortejo
a orillas
del pensamiento.

_

talvez dizer
“amor para dentro”
perder o norte da luz
entender o vazio, ser
vazio, amar esse vazio
com paixão de gelo
–entrar então
com pés de feltro–.

§

quizá decir
«amor hacia dentro»,
perder el norte de la luz,
comprender el vacío, ser
vacío, amar ese vacío
con pasión de hielo
–entrar entonces
con pies de fieltro

Misael Ruiz (Bruselas, 1960) é autor dos livros de poesia El hueco de las cosas (Trea, 2010), Todo es real (Pretextos, 2017, XXX premio oliver belmás), Una idea de mundo (Animal Sospechoso, 2022), e La rama vacía (Animal Sospechoso, 2025). Editou e traduziu a obra de R.S. Thomas (2008)Clive Wilmer (2011), Catherine Pozzi (2018), Lala Blay (2022) e, com Santiago Sanz, a poesia de George Herbert (XVIII Premio de Traducción Ángel Crespo, 2014) e George Santayana (2022).

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