eu precisei voltar
estendo um varal cheio de roupas
em silêncio uma a uma se despede
para me rever mais tarde
o tempo volta quando as roupas se sacodem no varal
já observou?
pude lembrar com detalhes
a colega da primeira série puxou meu cabelo
no outro dia minha mãe foi até a escola
furiosa ao meu lado, na fila:
se tu não puxar o cabelo dela, eu puxo
obedeci
como as roupas presas sem opção
aconteceu rápido
entre uma camiseta e uma bermuda e o tempo de
quatro prendedores
o sol alto
enquanto eu
voltei para buscar meus olhos
§
exercício de equilíbrio
uma criança com um pauzinho
chafurdando
igual a porco no chiqueiro
a larva, a amiguinha larva
a criança na valeta
brincando de rio
para chegar até a água verde
atravessa
sobre uma-duas tábuas descascadas
da casa _ à rua
a infância e as lagartixas se equilibram
sobre a mesma ponte pênsil
§
churrasco de domingo
os olhos do meu pai [semicerrados] diante do fogo.
o estalar do sal.
o mesmo sal que antes era um punhado de pedras
brancas no bojo das mãos.
antes fresco e amigo. agora (sal)tador.
o meu pai íntimo do carvão,
dançando com os espetos
até a carne escorregar dos ossos.
os olhos da minha mãe [úmidos] da cebola crua.
as mãos ágeis na salada de maionese, cebola e tomate,
arroz, aipim.
não pode faltar comida. não pode faltar gente.
gente e música.
a testa franzida, o cigarro à boca:
os olhos da mãe procurando
bagunça no domingo
para arrumar na segunda.
os olhos dos meus primos [entediados]
porque não há nada para se fazer
no domingo em família.
todos os domingos chegam tarde.
os olhos do meu tio [adormecidos]
atrás da nuvem de álcool.
o tio vermelho, convencendo a coordenação motora
para encher o copo,
todo afetuoso e risonho. olhos atrapalhados.
[] os olhos de quem bebe se escondem []
os olhos da minha tia [decepcionados] xingando.
a tia escorrendo pelos olhos, de raiva.
mais um domingo vira brasa
de barriga cheia.
§
meu lugar preferido
meu lugar preferido é a casa vazia à noite.
quando os móveis esfriam dos movimentos do dia.
a casa fazendo os próprios barulhos,
contando como se sente.
minha casa murmura e reclama
do pó nos móveis, do farelo de pão no sofá.
ela se queixa tanto, de mãos na cintura.
quem quiser que ouça.
a casa à noite se habita. delira.
não dorme. sonha alto, para lá do teto.
meu lugar preferido é o silêncio da casa
enquanto ela rumina o que engoliu
goela abaixo
(ouvi dela sobre o ódio do cheiro do amaciante,
da alergia à água sanitária).
ela gosta das roupas suadas das crianças
bem espalhadas. ela gosta.
as janelas conhecem paredes.
as crianças, não. isso faz a casa feliz.
meu lugar preferido é o falso silêncio
enquanto a casa marcha sobre trilhos, locomotiva
com estoque de carvão eterno.
a casa nunca para.
meu lugar preferido acontece à noite.
quando converso com a minha casa,
pés atentos ao piso frio, ao som
do motor da geladeira, ao pingo d’água na pia.
Da "orelha" do
livro |
Sabrina Dalbelo é gaúcha de Porto Alegre e autora de, entre outros livros, “Rasga-ossos” (Penalux, 2020), finalista do Prêmio AGES Livro do Ano e do Prêmio Açorianos de Literatura, em 2021; de “Ab Cena” (Urutau, 2023), vencedor do Prêmio AGES Livro do Ano e Semifinalista do Prêmio Loba, em 2024; de “O nome dela não importa (TAUP, 2024); e de “Voltei para Buscar meus olhos” (Impressões de Minas, 2024). Integrante do Coletivo As Contistas. Foi a Escritora Homenageada da 36ª Feira do Livro de Bento Gonçalves/RS (2021). Participou de oficinas de escrita com Marcelino Freire e atualmente estuda poesia com Pedro Gonzaga.
Que alegria. Honra.
Obrigada.
Sabrina