POESIA

Poemas de “Voltei para buscar meus olhos”

Imagem: Impressões de Minas/Reprodução.

eu precisei voltar

estendo um varal cheio de roupas
em silêncio uma a uma se despede
para me rever mais tarde

o tempo volta quando as roupas se sacodem no varal
já observou?

pude lembrar com detalhes
a colega da primeira série puxou meu cabelo
no outro dia minha mãe foi até a escola
furiosa ao meu lado, na fila:
se tu não puxar o cabelo dela, eu puxo
obedeci

como as roupas presas sem opção
aconteceu rápido
entre uma camiseta e uma bermuda e o tempo de
quatro prendedores
o sol alto
enquanto eu
voltei para buscar meus olhos

§

exercício de equilíbrio

uma criança com um pauzinho
chafurdando
igual a porco no chiqueiro
a larva, a amiguinha larva

a criança na valeta
brincando de rio

para chegar até a água verde
atravessa
sobre uma-duas tábuas descascadas
da casa _ à rua

a infância e as lagartixas se equilibram
sobre a mesma ponte pênsil

§

churrasco de domingo

os olhos do meu pai [semicerrados] diante do fogo.
o estalar do sal.
o mesmo sal que antes era um punhado de pedras
brancas no bojo das mãos.
antes fresco e amigo. agora (sal)tador.
o meu pai íntimo do carvão,
dançando com os espetos
até a carne escorregar dos ossos.

os olhos da minha mãe [úmidos] da cebola crua.
as mãos ágeis na salada de maionese, cebola e tomate,
arroz, aipim.
não pode faltar comida. não pode faltar gente.
gente e música.
a testa franzida, o cigarro à boca:
os olhos da mãe procurando
bagunça no domingo
para arrumar na segunda.

os olhos dos meus primos [entediados]
porque não há nada para se fazer
no domingo em família.
todos os domingos chegam tarde.

os olhos do meu tio [adormecidos]
atrás da nuvem de álcool.
o tio vermelho, convencendo a coordenação motora
para encher o copo,
todo afetuoso e risonho. olhos atrapalhados.
[] os olhos de quem bebe se escondem []

os olhos da minha tia [decepcionados] xingando.
a tia escorrendo pelos olhos, de raiva.

mais um domingo vira brasa
de barriga cheia.

§

meu lugar preferido

meu lugar preferido é a casa vazia à noite.
quando os móveis esfriam dos movimentos do dia.
a casa fazendo os próprios barulhos,
contando como se sente.
minha casa murmura e reclama
do pó nos móveis, do farelo de pão no sofá.
ela se queixa tanto, de mãos na cintura.
quem quiser que ouça.

a casa à noite se habita. delira.
não dorme. sonha alto, para lá do teto.
meu lugar preferido é o silêncio da casa
enquanto ela rumina o que engoliu
goela abaixo
(ouvi dela sobre o ódio do cheiro do amaciante,
da alergia à água sanitária).
ela gosta das roupas suadas das crianças
bem espalhadas. ela gosta.
as janelas conhecem paredes.
as crianças, não. isso faz a casa feliz.

meu lugar preferido é o falso silêncio
enquanto a casa marcha sobre trilhos, locomotiva
com estoque de carvão eterno.
a casa nunca para.

meu lugar preferido acontece à noite.
quando converso com a minha casa,
pés atentos ao piso frio, ao som
do motor da geladeira, ao pingo d’água na pia.


Da "orelha" do livro
por Mar Becker

Há livros que nos abordam como grito, como vociferação. Surgem abrindo via e se lançam para frente, num ímpeto expedicionário. Outros nos alcançam por seu teor de segredo e íntimo chamado, pelo modo como nos convidam a virar o rosto e olhar para trás, recriando o mundo a partir das pequenas coisas vividas, dos detalhes.

É dentro desse segundo conjunto que percebo "Voltei para buscar meus olhos", da gaúcha Sabrina Dalbelo. Há aqui uma voz que me espanta por sua espessura de eco, como viesse reverberando o que já foi experimentado e sentido há muito. Num canto de harpia, ela se infiltra pelas atividades mais banais do doméstico – e logo no poema de abertura toma a forma de uma pergunta, deslocando-me para uma infância que não é a minha mas bem poderia: "o tempo volta quando as roupas se sacodem no varal / já observou?".

Não caminhamos impunes pelos meandros desta escrita. Aquela que confessa no título voltar para buscar os próprios olhos, ela nesse regresso vai se movimentando ainda às cegas, e nisso nos seduz a acompanhá-la. Deixamos que pegue nossa mão, e seguindo-a encontramos uma língua estremecida, suspensa naquele registro sutilíssimo de proximidade com o primeiro corpo, o sonho, o deslumbramento e o terror.

Somos levados a conhecer um mundo tateando-o, explorando-o diretamente na pele do vivo: suas cores e cheiros, seus silêncios e sons, sua voragem. No percurso, topamos com cenas e rostos que, por particulares que sejam, assumem aquele claror de universalidade: são mães em "chamadas de longa distância", mães difíceis de alcançar – ficam sempre "do outro lado da linha" (no indizível da linha das mãos, da linha do horizonte ou do verso); são ciganas em esquinas, "feito oráculos móveis / vendendo futuro aos porto-alegrenses"; são o desejo mais cru e o pudor tomando quadris na pré-adolescência, na idade da vergonha que todos atravessamos – “roçando os fundilhos na pedra”, sentados no chão, a atenção voltada aos pequenos animais que rastejam e à certeza muda de que sim "há um cheiro de sexo na cadeia alimentar".

Com dicção única e carga expressiva surpreendente, Sabrina faz nascer nestas páginas uma poética que pulsa – como um coração na mão, como o refugiado coração de quem procura casa. É um projeto ao mesmo tempo poderoso e delicado – e insisto nesse último adjetivo. São palavras ditas em voz baixa, típicas de quem se devota à minúcia e se dá conta de que é em torno deles que a vida acontece. Basta ter olhos para ver. Basta buscá-los.


Sabrina Dalbelo é gaúcha de Porto Alegre e autora de, entre outros livros, “Rasga-ossos” (Penalux, 2020), finalista do Prêmio AGES Livro do Ano e do Prêmio Açorianos de Literatura, em 2021; de “Ab Cena” (Urutau, 2023), vencedor do Prêmio AGES Livro do Ano e Semifinalista do Prêmio Loba, em 2024; de “O nome dela não importa (TAUP, 2024); e de “Voltei para Buscar meus olhos” (Impressões de Minas, 2024). Integrante do Coletivo As Contistas. Foi a Escritora Homenageada da 36ª Feira do Livro de Bento Gonçalves/RS (2021). Participou de oficinas de escrita com Marcelino Freire e atualmente estuda poesia com Pedro Gonzaga.

Um comentário sobre “Poemas de “Voltei para buscar meus olhos””

  1. sabrina dalbelo disse:

    Que alegria. Honra.
    Obrigada.
    Sabrina

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