Cláudio Trasferetti
Indaiatuba – SP
Afonso Schmidt, grande escritor cubatense, cresceu ouvindo o avô, dono de um engenho no pé da Serra do Mar, contar histórias sobre escravizados fugidos que passavam por sua propriedade rumo ao Quilombo do Jabaquara nos anos que precederam a Abolição. Chegavam todos estropiados depois de percorrerem longas distâncias descalços e famintos. Essas histórias certamente plantaram no escritor o gérmen da vontade de escrever sobre essas pessoas, o que ele concretizou na década de 1930, publicando em folhetim, no suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo, seu romance “A MARCHA – ROMANCE DA ABOLIÇÃO”.
O livro começa descrevendo a maneira como se constitui a fazenda Paineiras, na região de Capivari, por meio da posse de terras levada a cabo por um senhor, o Pedro Alvim, com o auxílio de seus escravizados, no início do Século XIX. Passam-se alguns anos e entra em cena o filho de Pedro Alvim, Antonio, um cafeicultor bem estabelecido, senhor de muitos escravizados. Nesses dois primeiros capítulos, Schmidt apresenta a dinâmica entre a casa-grande e a senzala da Paineiras, mediada pelo feitor Simão.
O filho de Antonio, Laerte, o sinhozinho que cresceu com o escravizado Salustio, é mandado à capital para estudar Direito no Largo de São Francisco. Certas cenas desse trecho do livro me remeteram à comovente canção “Morro Velho”, de Milton Nascimento. Os capítulos que mostram a chegada de Laerte e seus deslocamentos pela São Paulo de 1886 são lições de turismo histórico. Schmidt fala de prédios e lugares que não existem mais e chama os logradouros por seus nomes antigos. Como esse assunto me interessa muito, acompanhei os passos de Laerte por meio da “Nova planta da cidade de São Paulo e subúrbios: publicada por Jules Martin”, de 1881. É assustadora a quantidade de construções e espaços de interesse histórico que foram destruídos em nome do “progresso”.
Laerte se envolve com o movimento emancipador e se torna um caifaz, por influência de Lu, moça da elite paulistana por quem se apaixona. Os caifazes participaram da organização de uma série de fugas das fazendas cafeeiras e tiveram Luiz Gama, que a essa altura já havia morrido, e Antonio Bento como líderes. “A Marcha” se refere ao deslocamento a pé de um grupo de escravizados da Fazenda Paineiras, em Capivari, e de seu entorno, até o Quilombo de Jabaquara, em Santos. Uma longa peregrinação de dor, cansaço, fome, sede e tensão. A história oficial realmente registra uma fuga massiva de escravos dessa região que ficou conhecida como “Êxodo de Capivari”.
Para escrever o livro, Schmidt teve a oportunidade de conversar com muitas pessoas que vivenciaram esse momento histórico. Seu texto é convincente e muito envolvente, com um léxico recolhido das culturas caipira e caiçara, pelas quais transitava. Talvez o livro soe um pouco ingênuo aos leitores do nosso tempo, mas diria que é uma leitura necessária dadas a importância e complexidade do movimento abolicionista e a maneira simplista com a qual ele é comumente apresentado nas escolas.
Soube que o livro gerou um filme dirigido por Oswaldo Sampaio e estrelado por Pelé. Imagino que ele tenha feito o papel do Preto Pio, uma das lideranças da Marcha. Espero que “A Marcha” funcione como uma antessala para outras leituras de Schmidt. Em nosso horizonte estão: Colônia Cecília, A Sombra de Júlio Frank e Zanzalá.
* “Largo dos Remédios, 1862”, quadro de Benedito Calixto pintado a partir de fotografia de Militão Augusto de Azevedo. A igreja retratada abrigava a sede da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, cujo provedor, o juiz Antonio Bento, foi um líder dos caifazes. Nela funcionou uma escola para os primeiros cidadãos brasileiros que nasciam livres em decorrência da Lei do Ventre Livre. Foi demolida em 1943, apesar dos apelos de Mario de Andrade. Ficava onde hoje é a Praça João Mendes. Técnica: ÓLEO SOBRE TELA Dimensões (a_cm, a_sm X l_cm, l_sm): 64,5-47,5-80-63 Coleção:BENEDITO CALIXTO DE JESUS – CBCJ Foto: José Rosael-Hélio Nobre-Museu Paulista da USP Acervo: Museu Paulista da USPDomínio Público
Claudio Trasferetti é químico e leitor diletante.