FICÇÃO

Arbítrio

Imagem: Quarto de casal, colagem de Léo Tavares, 2025.

Valesca Lins
Rio de Janeiro – RJ

Parece que me tornei alguém com coração empedrado ou um rio transbordante que invade margens e não sabe para onde ir ou voltar. Um Rio de Janeiro errante, prisioneiro duma indignação e da comoção das mortes que duram uma semana até a próxima.

Vivo em cantos da cidade aterrorizada, aqueles que têm que morrer para que outra parte possa viver a salvo, com possibilidades e seus jovens místicos.

A solidão e o silêncio me aprazem. A única coisa que me move é a excitação, não busco romance. Necessito de algo sem expectativas, sem futuro, presente ou passado. Isso já é o suficiente, até porque me fazer dobrar a cintura com minhas costas duras, não é fácil. Sou uma mulher forte, de caráter! Mas posso ser um pêssego bem doce jorrando calda, se me conduzem bem. Outra coisa importante sobre mim é que não preciso de álcool ou substâncias alucinógenas para me soltar. Passo de uma mulher virtuosa para uma desvairada e louca, assim mesmo, à capela.

Vou lhes contar um segredo: não gosto de homem que cheira a perfume. Prefiro sentir o aroma do corpo nu e cru. Os cheiros das virilhas muito me excitam. Eu era, como dizem por aí, bicho solto. Ganhei vários apelidos: Zezita, boca louca, Zezita mil volts, Gripe, aquela que todo mundo já pegou. Eu achava até graça, não ligava. Queria me divertir com quem me desse na telha, se assim fosse da minha vontade.

— Você é Maria José, né? Zezita!

— Sim, sou eu, sim!

— Somos amigos do seu pai. Ele mandou a gente se encontrar com ele aqui na sua casa. Podemos entrar?

— Não sei, não. Melhor, não!

— Deixa de coisa, garota! Sabemos muito bem que você não é nenhuma santa. Ninguém vai estranhar a gente na tua casa. Além do mais, somos parceiros do teu pai. Tu não vê a gente nos botecos com ele por aí?!

— Vejo, sim! Mesmo assim… – Estava receosa.

Então, empurraram a porta. Os caras entraram. Um era alto, tinha uma marca de cicatriz no pescoço, e o outro, magricela, mais baixo, faltava-lhe um pedaço da orelha. As pernas bimbalhavam aflitas, percorrendo os cantos da casa, os olhos vermelhos acesos espoucavam apertos e perturbações. Invadiram.

O mais baixo trancou o portão, o mais alto tirou uma arma. Não deu tempo de mais nada. Amarraram minhas pernas abertas e quase me quebraram o braço esquerdo de tanto que torceram.

— Cala a boca, sua puta! Você não é a vagabundinha da rua? Dá pra qualquer um. Vai dar pra gente também!

Eu iniciei uma gritaria, mas fui interrompida por um vômito, ao vê-los arriar as calças. O vômito entupiu minha boca e minhas narinas. Não conseguia respirar.

— Isso, grita, sua preta safada. Eu fico mais doido ainda!

Um deles, não sei qual, montou em mim e botou a seco. Eu ganicei de dor. O outro deformou meu rosto com vários socos, me obrigando a silenciar. Meus olhos se fecharam. Com minhas náuseas, senti algo espesso e muito nojento no cabelo. Com o queixo duro, machuquei um. Ele pegou o cano da arma e começou a enfiar no meu sexo. Eu gritei de novo.

— Para de gritar! Vou te enterrar a faca.

O da cicatriz meteu a mão inteira dentro de mim com punho fechado e batia forte na minha vagina, com muito ódio. Eles se divertiam com meu contorcer e com o sangue que vertia. Meu coração paralisava e insistia em bater depois. Passaram a morder meu peito com força.

— Mata ela, mata ela! Não vale nada!

Começaram a cortar a minha barriga com uma tesoura. Abriam-se feridas dolorosas. Meu corpo se contraía e dava espasmos.

— Olha como ela gosta! Está toda se tremendo!

O sangue flutuava em poças pelo chão. Implorava para que minha vida tivesse fim naquele instante.

— Mata ela, mata ela! Não vale nada!

Passados pouco mais de dois meses no silêncio e nos afogadilhos de fúrias entorpecidas, tropecei em Rangel. O homem era calado e tinha uma polidez gélida. Mas eu sabia desnorteá-lo. Tirava a roupa pouco a pouco, devagar, dando voltas pelo quarto. Gastava apenas cinco minutos para satisfazê-lo, pressionava a pelve e as paredes da vagina. Ele não resistia, e logo o orgasmo se esparramava e acabava com aquela minha tortura. A minha gravidez já era aparente, cinco meses do adeus ao prazer e chegada das agonias. Meu pai disposto a qualquer coisa para se livrar de mim e do embaraço. Vivia reclamando que não teria como alimentar outra boca. Num desejo de cajá verde com sal, sonhei enviar a criança para a terra dos anjos, mas Rangel me assumiu, e à minha barriga também.

Ficamos os três morando no barraco. Minha filha nasceu. Quando a menina tinha de seis para sete anos, Rangel pegou a mania de deixá-la na cama enquanto a gente transava, alisava a garota dormindo. Dizia que fazia bem pra ela. Meu coração gelado não se movimentava. Nada doía mais em mim, o terror havia me anestesiado. Eu não ligava mais pra muita coisa.

Passei a delirar nas febres de uma paz simulada. Quanto mais chamava pela calmaria, mais ela se afastava de mim. Rangel incorporava a violência quando bebia, me batia e me obrigava a fumar com ele. A criança que eu pari era agora uma moça problemática. Acabei sendo avó bem cedo. A menina era cabeça de vento, não aguentava pancada da vida como eu. Eu estava apinhada de insônias, visões demoníacas, medo de um dia aqueles homens retornarem e revelarem o que fizeram comigo.

Eu tive vontade de denunciar, mas quem acreditaria numa mulher que tinha aquele jeito? Talvez dissessem que eu só estava arrependida da orgia.

Lancei-me numa visão idílica de aventura. Expurgar a presença daquele homem, que passou a me chatear muito, era o certo a se fazer. Eu notava o ódio que minha filha nutria por ele e punha óleo fervente para fritar aquela cupidez árida dentro dela, até que tivesse coragem de deixar explodir uma onda violenta. Eu não precisaria mover uma palha. O tempo avançou, e nada da garota ser valente. Atirei-me à felicidade, eu mesma me encarreguei do serviço. Temperava o prato de comida de Rangel com chumbinho. Passava muito mal, jogava o alimento para as galinhas do quintal. As bichas morriam, o homem não. Ele insistia em comer em casa, a dosagem do tempero foi aumentando.

Numa manhã de nuvens mormacentas, após o almoço regado a chumbinho, percebi que ele caiu inconsciente na cama.

— Nada, sem pulso!

Tentei sentir algum sopro de vida pela munheca, no pescoço.

— Nada, nadinha! Minha mãe do céu, enfim está morto!

Minha filha adentrou o ambiente, parecia decidida a fazer uma loucura, portava a tesoura fio de navalha. Até que enfim! Essa menina sempre foi muito frágil, cheia de não-me-toques. Eu me escondo dentro do armário e a vejo a atacar aquele corpo já moribundo e sair desesperada em seguida. Nunca mais a vi depois daquele dia. A boba surtou, até das filhas esqueceu. Não foi capaz de sustentar um sofrimentozinho sequer! Não fiz questão de explicar ou elucidar os fatos. A garota me trazia problemas demais, já carregava duas filhas dela nas costas. Eu sofri muito, ela também tinha que sorver um pouco da minha dor. À polícia disse que estranhos entraram na casa para roubar algo, porque Rangel era maconheiro e estava com dívidas na boca. Ficou por isso mesmo, disseram que foi acerto de contas. A essa altura, já havia aceitado Cristo como único e suficiente salvador. Supliquei humanidade! Em vão! Nas mães estão encerradas todas as culpas. As mazelas deixam a alma banguela e apalermam a boca. Eu vivo com medo todos os dias. O vulcão da recordação ainda emite lavas ácidas que me queimam por dentro. Teve uma vez que uma mulher cochichou no meu ouvido: “Você não fale nada mesmo, não! Não conte a ninguém o que lhe aconteceu. Eles podem voltar e cortar sua língua”. Quando me virei para olhar, ela já havia dobrado a esquina.

Arbítrio é um conto do livro “Rio, o Ori” (Editora Appris, 2023).

Valesca Lins é carioca, escritora, dramaturgista, pedagoga da rede pública do Rio de Janeiro e mãe da Marina Morena. Participou das antologias “Negras Crônicas: escurecendo os fatos com as crônicas“, “104 histórias como esta”, “Revelações de Cenas do Cotidiano”, “Parem as Máquinas”. Publicou os livros de contos “Minhas conversas florescidas no khat” (2020), ganhador do Prêmio Literário Maria Firmina (2022) e “Rio, o Ori”. É autora dos textos teatrais “Mãe Preta” e “Espelhos”.

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