POESIA

É inútil resistir ao poema

Imagem: Barker Marshal, 1850.

dizer tanto sobre tudo
na incerteza a ele inerente
mesmo que não valha a pena
mesmo que alma lhe caiba
mesmo que sobretudo
o que venha de forma pungente
cause estrago se quebre se rompa

se dilua se revele se guarde se feche
como fenda que obtura
mesmo a algazarra de uma turba em baderna
que com nada se contenta
distraída percebe a ideia que atenta a um poema

alguma coisa se aprende
nunca se perde ou apenas se ganha
e na maioria das vezes
mesmo aquele que não lhe entende
se distancia por um breve momento
do inerte instante presente

depois de um primeiro poema
toda a mensagem se torna uma senha

uma ideia mesmo que vaga
um pensamento que a voz interior anula
a normalidade de uma frase absurda
em qualquer alvitre que a lembrança traga
uma palavra que insistente teima
mas a memória que nos engana oculta
sobre isso
sobre o agora
sobre tudo
sobre algo insurgente
sobre coisa nenhuma

repara bem se te ilumina ou te apaga
se te devora ou te alimenta
se a duras penas te consome
é um poema

ao poema
o julgamento alheio é uma confissão
a compreensão ditando limites
sobre coisas que talvez você não deseja entender
se é autêntico como um mantra
como um crivo como um hino

sonho quando ao despertar espanta
cicatriz que vem de infância
cópia falsa ou genuíno

há quem se despedace
para manter um poema inteiro
e talvez ali
em uma única fração deste descarte
o poema esconda sua melhor parte

observador intruso onisciente
de expectativa equivocada
conhece os pensamentos
revela desejos
sinaliza uma estreita senda
faz ao passado do futuro uma algema
raramente omite opinião
excede a vida decepciona
o que mais te desafia além de um poema
como se não bastasse a rima
tem a sina da maldita razão contra o nosso favor
que nos ensina a amarrar os sapatos
mas não nos concede um único poema de amor

diligente amparo estagnado
protelando a meta daquele que insiste
revelando o medo naquele que sente
em abandonar a crença da idade certa
pois a memória começa onde nasce
e reside aonde escolhe sua permanência

e se tudo que ele oferece não lhe é suficiente
ele sutilmente lhe devolve sua ausência
ao entender o discreto em sua dignidade
um poema sabe o que desfaz
não refaça o que se revelou secreto
não pense que você o conhece
tens acesso apenas ao que ele lhe permite saber
ele dirá quando você atingiu o seu limite
o seu
não o dele

porque um poema que se vende
sempre valerá menos do que pagam por ele

esqueça a fórmula
não há flâmula não há um lema
se for árduo e lhe fizer sofrer
releve
mantenha este caminho não mude a direção
considere ser isso o que ele tenha para lhe dizer
fique atento aos sinais
saiba terminar o que já teve um fim
lembre que nem sempre é leve
o caminho que te leva a um poema

quando traz uma verdade que machuca
tem ali uma mentira que conforta

é o poema quem te conduz
provoca e controla tua distração
te engana te encanta te envolve te trai
te seduz e sugere uma inusitada e confusa conexão
o coelho da cartola o velho do saco
a ampulheta da areia o brinco da orelha
o cavalo do relho a casa da telha
a chama a centelha
decifrar o que diz o poema
saber quando encerrar
se o poema lhe der escolha ou exigir decisão
fique com a dúvida
deixe-o ao menos descansar

a mágica que você tanto procura
está no esforço que você tenta evitar
não há quem não tenha algo de um poema
ele é sutil e constrói sua própria sentença
desfaz alianças dispensa crenças
sugere tramas
acessa lembranças
cogita perdas
janela fechada com chuva lá fora
chá de camomila com meias de lã no frio

um abajur sem pantalhas
um alforje de aço
o andar ocioso de um coxo que manca
uma antiga arandela suspensa no espaço
uma lata vazia com farelo de pastilhas valda
tuas malas ainda por desfazer
sussurram memórias íntimas em uma sala

pirilampos sumindo dos campos

orelhas coladas em conchas do mar
o fraterno ridículo de uma colcha de fuxicos
a paixão de Florbela Espanca
um selo colado o martelo batido
tudo se finda se entrega se encerra
e como uma marca um emblema
a voz se cala se embarga se estanca
da cabeça ou do peito a língua lhe arranca

é inútil resistir a um poema

§

que fim levaram os selos

Patrícia ficou com a frigideira velha
aquela de crosta grossa
onde tu fazia feijão mexido as 3:00 da manhã
que preteou de tanto ficar sobre o fogão a lenha
incrustada de resíduos acumulados pelo tempo
que na sua opinião dava sabor ao alimento

eu fiquei com a máquina portátil
da maleta cinza com vinco de zinco
alça de baquelite que fecha com zíper
e dentro dela tua Olivetti Lettera 35

o radinho Mitsubishi de bolso com capa de couro
também ficou por aqui
esses dias fui testá-lo
e sintonizou em uma rádio porteña
com Gregorio Barrios cantando
“Recuerdos de Ypacaraí”

lembrei do teu ritmo do teu jeito
e apesar de não tê-lo visto
lembrei de você dançando bolero
no “El Viejo Almacén” em San Telmo

e se eu lhe contar que uma criança
com três anos de idade recém feitos
comeu todo o saco com as balas de menta Berbau
tu não iria acreditar

elas viajaram comigo
aquelas da embalagem verde contendo 82 unidades
que você fingia que mastigava
e lembrei do prazer que me dava
ao vê-lo comendo algo que gostava

me fala
que fim levaram os selos
revirei tudo
de tudo encontrei

jornais revistas discos livros
fitas em rolo e cartazes
cartas de Fuscaldo e postais de Cosenza
cachimbos perdidos e um raro cinzeiro de bolso

rapé nos cantos das gavetas esquecidas
que rangem emperradas
sobre uma foto de Monica Bellucci nua
e um antigo santinho de Tommaso d’Aquino

vasculhei por tudo
de tudo eu achei
menos os selos

lembrei que por volta dos meus dez anos
ao ouvi-lo ainda na rua
surgindo em casa assoviando
anunciando sua chegada
eu perguntava se podia mexer nos selos

percebo hoje
que minha atual e estranha adoração
pela vexilologia pela filatelia
minha mínima pesquisa em numismática
é oriunda disso

de ver selos ainda colados
mas aos poucos se soltando
de envelopes mergulhados
em uma travessa rasa com benzina

do seu assovio
da marca d’água em um documento vindo de Abruzzo
do picote da goma da lupa da pinça
da tua paciência em manipular um odontômetro
da tua prática em manusear um paquímetro

da efígie de Rino Gaetano
estampada em um selo obliterado

da faccia de Italo Svevo
cunhada em uma lira de prata

minha tristeza minha decepção
inconformado e infeliz
ao saber do pregresso do passado ao ver
Giuseppe Ungaretti em uma foto sépia
sorrindo elegantemente alinhado
trajando um terno risca de giz

a propósito
me diz
que fim levaram os selos

a foto de Pasolini e Tornatore ainda na estante
me lembram tua limitação
teu distanciamento
tua enorme barriga teu italiano ruim

e mesmo assim
o que consome minha memória
infinita é minha curiosidade
e espero ainda descobrir

que fim levaram os selos

talvez eles explicariam
de onde vieram teus aforismos
deixaste todos aqui
e eles ainda me perseguem

– Por que cargas d’água lavaram meu berretto?
– Jovem mancebo aonde tu vai?
– Cabeça de osso pra sopa!
– Tu vai tomar o bonde errado!
– Nem um puto vintém nessa capanga…

aliás tua capanga está ali
no bolso puído da gabardina amarrotada
no velho mancebo atrás da porta

espero que te animes a sair
me perguntando a hora
para não fazer nada
sem encontrar ninguém

pois só hoje percebo
no teu modo da tua forma
do teu comportamento o feitio
tudo que agora realmente importa

não por compreensão
nem por discernimento
mas por uma inusitada identificação
um tardio e inesperado pertencimento

ao sentir a insistente genealogia
que vem da ponta da península
da montanha escarpada
da Calabria que não finda

pois hoje nesta hierarquia eu sou o agora
mas sei que do futuro eu sou o ainda

obrigado por isso

em tempo
antes que eu me esqueça
que fim levaram os selos
de certa forma sem certeza
com receio de soar irônico eu creio
que foi teu zelo com os selos

que me levaram a origem
do histórico e icônico caciocavallo
entender a salmoura da bottarga
perceber o que há de belo o que há de feio
entre o Tirreno e o Ionio

qual é a sina
onde inicia e como termina a biografia
de quem tem suas raízes fendidas
suas cinzas jogadas ao mar
no Stretto di Messina

o legado que da mensagem ainda resta
a serventia do ideal da ideia
no pensamento deixado
por Cafiero por Fanelli e Malatesta

as canetas tinteiro Montegrappa de pena
são realmente muito boas guardei todas

inclusive as penas soltas
que estavam enferrujadas
dentro de uma latinha de cigarro Gitanes
que continua aqui comigo
com as penas dentro dela
mas que agora
não estão mais enferrujadas

enfim
conta pra mim
não lhe pedirei mais nada
que fim levaram os selos

teu sorriso sem dentes
da bebida o recesso
teu polegar decepado por um foguete
tuas centenas de milhares de recortes
tua verdade tua pureza tua ingenuidade
tua adoração por rabanadas
tua singela alegria tua amabilidade

confuso sorrindo confesso
em tudo tu deixou saudade

§

e sem perceber como em um soco

eu estava ali
te ouvindo ler e decifrar
a máquina do mundo

e no 2º andar da City Lights
tu estava comigo
folheando um livro de Carl Solomon
enquanto eu
insistia em um verso de Gary Snider

te encontrar de avental
assando um matambre
tomando negroni em copo baixo
procurando a biografia de Chet na estante

              – que também tem Adam Warlock
              com seus feitiços –

ouvindo um jazzista
que não é novo mas é novo pra mim
foi o que me fez lembrar

que é tu que me tira
do ostracismo de 20 anos
e tomando vinho quando me lê
não fala o que sente
eu me vingo e quando te escuto
não falo o que sinto

é tu que me faz procurar entender
pesquisar mergulhar e ler
um poema lindo sobre sonhos e absinto
em outro tempo escrito por Théophile Gautier

é tu que apaga
o medo do poema em mim
o nexo do poema em mim
o intrínseco do poema em mim

é tu que me leva me joga
e me empurra sem pena
na brecha na saliência
no clarão ressignificado
que só agora me eleva
ao promontório do poema

é tu que rindo
encontra o que em mim expande
que sutil moteja e que revela a senha
de tudo que agora em mim inclui
o velado saber que há em um poema

é tu que beligerante
exclui o patético da rima em mim
o limite da ideia em mim
o trivial ordinário em mim

é tu que converte em notório
o vocábulo fingido
que me encoraja ao inusitado
me desafia

é tu que mostra
o tempo em mim contido
a minha vulgar indecência
a visível mania e quase sina
a inútil busca e insistência
no verso exato coeso definido

é tu que sem perceber
como em um soco
me proíbe de entregá-lo ao limbo
de perdê-lo no vazio infinito
no desperdício triste que existe
me tirando quando eu perdido
fico envolvido sem ar no sufoco

de querer que um poema
sempre faça sentido

Augusto Nesi.

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