Lucio Carvalho
Bagé – RS
Guagyiec, Ybumayve, Adipdayú, Doyyan, Chiaymun, Acaddi, Achanay, Seladey, Zelagay, Naygalay, Natrueld, Ymaldoyve, Nayjaleu…
Embora os nomes relacionados acima possam parecer extraídos de algum livro de J. R. R. Tolkien, de uma nação élfica perdida em um bosque de O Senhor dos Anéis ou de uma família remota de O Silmarillion, esta seria uma suposição mais fantasiosa do que fantástica. A realidade é que estes são alguns exemplos dos nomes dos primeiros habitantes do Rio Grande do Sul e do Uruguai, os indígenas das etnias charrua e minuano. Uma sonoridade estranha, bastante distinta da que provém do tronco tupi, e que até hoje intriga os estudiosos, principalmente uruguaios e argentinos. No Brasil, pelo menos de acordo com uma rápida revisão bibliográfica, os estudos linguísticos e históricos mais significativos a respeito das etnias e sua linguagem remontam à primeira metade do séc. XX.
A empreitada é complexa e os dados desta memória obscuros e parciais. Quem quer que palmilhe o estado do Rio Grande do Sul ou mesmo os países vizinhos de fala espanhola, Argentina e Uruguai, em busca da memória viva, de “lembradores” dos idiomas dos antigos povos aborígenes que habitavam a região, por certo não há de dar com ninguém em seu caminho. Se encontrar vestígios materiais é tarefa dificultosa para a própria arqueologia, o que se poderia dizer da pesquisa linguística, cujas matrizes muitas vezes são remotas recompilações e transcrições das quais mal se pode compreender significado ou pronúncia? Pois os nomes acima são exemplos perfeitos desta ignorância: passados mais de dois séculos do seu reconhecimento, ninguém ainda saberia dizer ao que se referem. Permanecem nebulosos e desconhecidos ao ponto do estranhamento.
Infelizmente, não há no séc 21 (talvez não houvesse nem no 20) lembradores dos idiomas charrua ou guenoa-minuano a quem se possa consultar e, portanto, o único caminho disponível para realizar-se essa aproximação é o documental, ainda que seja este um suporte frio e, sobre o qual, qualquer tentativa de revivê-lo parece quase sempre fadada ao forçoso ou ao engano. A verdade é que, mesmo que houvessem, seria preciso considerar que lembradores não são falantes competentes de uma língua, mas conhecedores de elementos residuais encontrados principalmente entre descendentes de falantes de línguas em processo de morte gradual (Campbell, 2019). Não parece se tratar do ocorrido com os idiomas charrua ou minuano, cortados tão abruptamente quanto seus povos foram extintos no processo histórico.
Deste modo, a alternativa restante parece mesmo consistir nas bibliotecas, arquivos, documentos históricos e, menos efetivamente, também a literatura.
No Rio Grande do Sul, estado brasileiro no qual viveram efetivamente e ainda podem viver os últimos descendentes das etnias, a sobrevivência onomástica destes idiomas é inverificável. Enquanto a presença genética parece possível e certa, aliás, num curso geracional bastante breve (Bortolini, 2012), da persistência idiomática não se pode afirmar o mesmo. É certo que é preciso considerar que o primeiro contato das parcialidades charrua e guenoa-minuano ocorreu com os espanhóis e com a comunidade guarani da Redução de Cayastá, na Argentina. Daquele momento até o desenlace da Guerra Guaranítica, em 1753, era o guarani a língua franca que comunicava as diferentes etnias, os missionários franciscanos e jesuítas e a incipiente população (Jacques, 1904). No entanto, a resistência dos “infiéis” charrua e minuano acabou implicando em que seus idiomas fossem conhecidos e estudados, num esforço por sua catequização, assim como aqueles que se integraram às reduções e vida nas colônias acabaram por adotar o espanhol e obliterar a língua materna (Bracco, 2023).
No complexo laboratório etnolinguístico das reduções e suas estâncias, especialmente Cayastá e Yapeyu, na Argentina, nas quais foram reduzidos, os idiomas de charruas e minuanos teriam subsumido rapidamente no espanhol dominante. No entanto, enquanto viveram livremente às margens dos rios Paraná e Uruguai, e mais tarde, na diáspora em direção ao interior do Uruguai e às missões jesuíticas que hoje integram o território brasileiro, seus idiomas recolheram-se no mesmo comportamento arredio dos seus falantes, sendo vagamente conhecido por religiosos, militares e paisanos abrigados em seus toldos.
É deste conhecimento singelo que resulta boa parte do legado linguístico conhecido das etnias e esta é justamente a configuração dada na primeira sistematização realizada por Teodoro Vilardebó, no que resultou o seu Códice. Em meados do séc. 19, quando compilou os poucos relatos disponíveis a respeito da língua charrua, Vilardebó inclusive caracterizou a linguagem utilizada por indígenas e gauchos da época como um híbrido, isto é, uma linguagem comum, mesclada dos subdialetos das parcialidades e pelo espanhol e português. Das fontes que ainda hoje baseiam os estudos dos idiomas, as por ele compiladas são as que mais se mantém: a obtida do sargento Benito Silva, militar que viveu nos toldos charrua, e a de uma mulher indígena que viveu na estância de um certo Manuel Arias e é conhecida simplesmente como a “China de Arias”.
A este exíguo vocabulário composto por poucas dezenas de vocábulos sistematizados, incluindo um precário sistema numeral, nomes de animais e muito poucos substantivos, vêm somando-se termos avulsos recolhidos em pesquisas posteriores, a sua maioria baseada no estudo de topônimos e antropônimos. Do idioma minuano, também uma língua morta, a maior sistematização parece ter sido obtida num documento de catequese utilizado nas reduções e coligido pelo jesuíta Lorenzo Hervás, linguista que produziu o Catálogo de las Lenguas de las Naciones Conocidas, y numeración, división, y clases de estas según la diversidad de sus idiomas y dialectos. Estudos contemporâneos flagram no Catecismo Guenoa, no entanto, grande infiltração de termos guarani (Rosa, 2014).
No Rio Grande do Sul, os estudos de topônimos, predominantes na historiografia da primeira metade do séc. 20, resultaram em poucos achados originais, muito mais em aproximações e coletas de termos não identificados com a fonética guarani. Nos estudos dos padres Carlos Teschauer e Luiz Gonzaga Jaeger, por exemplo, nada consta quanto aos idiomas ou resquícios deles no Rio Grande do Sul, nem em toponímia nem em antroponímia, apenas uma vaga caracterização. O historiador Aurélio Porto, que fixou muitas informações a respeito das missões que hoje integram o território rio-grandense, tinha de charruas e minuanos uma noção quase inteiramente obtida das anotações do Dr. José de Saldanha, geógrafo e demarcador português que aqui veio dar em fins do séc. XVIII. Suas preocupações maiores concentravam-se em compreender a extensão da nação guenoa-minuano que, para ele, incluía a charrua.
Efetivamente, é no trabalho do professor Nelson França Furtado, de 1969, onde será sistematizada a maior coleção de topônimos de origem indígena no Rio Grande do Sul. No entanto, trata-se de um documento até certo ponto desalentador. Logo na apresentação, ele adverte que identificou, lamentavelmente, “sobre a língua dos charruas, nada” (Furtado, 2019). E que, embora considerasse que os minuanos possam ter dado origem a alguns termos, nada também conseguiu precisar por falta de estudo e registro.
Documento curioso foi produzido na década de 50, publicado no Boletim Geográfico do Rio Grande Sul, pelo geógrafo Álvaro Batista Ilgenfritz. Sua apreciação do topônimo “Charrua”, nome dado a um município da serra gaúcha, distante de onde teriam vivido os indígenas, traz muitas suposições lexicais acerca do próprio termo “charrua”, além de elencar alguns termos que ele mesmo considera passíves de deturpação.
No artigo publicado no Boletim Geográfico do Rio Grande do Sul, ele expande seu interesse para os estudos desenvolvidos no Prata e que tratam da procedência linguística e da ancestralidade destes povos. Esta preocupação foi desenvolvida com grande detalhamento no Uruguai, uma década mais tarde, por José Joaquin Figueira, que publicou em 1965 o Breviario de etnología y arqueología del Uruguay. No documento, Figueira resume um panorama do conhecimento desenvolvido por etnógrafos, arqueólogos e linguistas até então a esse respeito. No que diz respeito a origem linguística, explica as hipóteses mais consideradas: as de uma vinculação ao tronco tupi-guarani (Carl Friederich von Martius), a filação ao guaicurú (R. R. Schuller), ao kaingang (Serrano), ao patagônico (D’Orbigny), aruaque (Perea y Alonso) e, finalmente, à hipótese dos idiomas isolados, aventada por diversos estudiosos (Rosa, 2013).
A escassa herança linguística charrua e minuano no Rio Grande do Sul tem dimensão semelhante a dos registros históricos: são tão precárias que quase sempre foi necessária a intervenção literária para a consolidação de um imaginário no qual estão presentes os ancestrais indígenas. Este é um fato marcante na “lenda” de Imembuí, na realidade um conto ficcional escrito e publicado pelo militar e folclorista Cezimbra Jacques e que conta o enlace de uma indígena minuano, Imembuí, com um bandeirante paulista que ganha um nome indigena: Morotin. Cezimbra Jacques inclui no seu texto diversos termos guarani, mas nem ao menos um termo minuano e isso é amostra de sua seriedade literária e histórica. Apesar de ficcionais, tratam-se dos dois únicos nomes supostamente minuano de que se tem registro no Rio Grande do Sul. A explicação mais óbvia para a escassez seria que já na época da Guerra do Paraguai, o elemento descendente indígena já havia se incorporado plenamente e adotado os nomes portugueses*.
Mas se da literatura não se deve exigir fidedignidade, tampouco a ela se deve consagrar um estatuto para além da sua estatura ficcional, ainda mais quando se trata de uma produção quase sempre posterior ao tempo dos fatos, como é toda a produção cultural que trata destes povos indígenas. Não obstante a menção aos indígenas charrua e minuano “genéricos” seja abundante no trovadorismo e cancioneiro populares, estas são sempre figuras sem nome, da mesma forma que seus nomes não trazem uma figura consigo, ao menos uma ligeiramente realista.
No Rio Grande do Sul, o charrua foi mitificado ao extremo, repetindo-se aqui a mesma reverberação ocorrida na cultura uruguaia. Mas uma mitificação nebulosa, imprecisa e incomprovável. O indígena é o Chiru (do guarani, “amigo” ou “companheiro”), ao mesmo tempo alguém e ninguém. Tanto é assim que soam estranhos e exógenos os seus nomes, e sua memória indefinível. É o eco do que não está. É uma abundância de ausências. Serão sempre fascinantes como estrangeiros que não resistiram a uma xenofobia primária e invasiva, ainda que muitos dos argentinos, uruguaios e brasileiros contemporâneos carreguem sua ascendência genética e a reverberação fascinante do que permanece desconhecido.
Notas
* Em trabalho apresentado no XVII Congreso Internacional Asociación De Lingüística Y Filología De América Latina, a pesquisadora uruguaia María Claudia López Fernández analisa a presença e representação das línguas indígenas na literatura uruguaia e lembra que, mesmo na tetralogia de Eduardo Acevedo Diaz, os personagens participam quase inteiramente de “intercambios linguistios casi exclusivamente en guarani” (López Fernández, 2014). Assinala ainda que os indígenas poucas vezes são nomeados na narrativa, mantendo-se uma distância e que são personagens que se comunicam em espanhol, porém sem que se dê o contrário. Quando sua língua é falada é descrita como indistinguível.
Referências
Cezimbra Jacques, Mj. João. Frases e vocabulos do Abá-ñêênga Guarany. Porto Alegre: Tyipographia de Gundlach y Becker, 1904.
____________. Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Oficinas graphicas da Escola de Engenharia, 1912.
Bortolini, Maria Cátira. Resposta ao trabalho de Kent e santos: “Os charruas vivem nos gaúchos: a vida social de uma pesquisa de ‘resgate’ genético de uma etnia indígena extinta no sul do Brasil”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 373-378, jan./jun. 2012
Campbell, L. and Muntzel, M. 1989. The structural consequences of language death. In: Investigating Obsolescence: Studies in Language Contraction and Death, N. Dorian (ed.), 181-196. Cambridge: Cambridge University Press. Trad. por Letícia de Souza Aquino para a Revista Brasileira de Linguística Antropológica
Bracco, Diego. Charrúas: genocídio o integración? Montevideo: Ediciones La Banda Oriental, 2023.
DA ROSA, Juan Justino. Historiografía lingüística del Río de la Plata: las lenguas indígenas de la Banda Oriental. Boletín de Filología, Santiago , v. 48, n. 2, p. 131-171, jul. 2013 . Disponible en <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-93032013000200007&lng=es&nrm=iso>. accedido en 26 feb. 2025. http://dx.doi.org/10.4067/S0718-93032013000200007.
Ilgenfritz, Álvaro Batista. Topónimos: Charrúa. Boletín Geográfico de Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Fundación de Economía y Estadística. Vol. 1, n. 4 (diciembre de 1956), pág. 48-58
Furtado, Nelson França. Vocábulos indígenas na Geografia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica, 1969.
Teschauer, Carlos. Porandúba rio-grandense. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1929.
Jaeger, Luiz Gonzaga. O índio no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica, 1957.
Porto, Aurélio. História das missões orientais do Uruguai. Primeira parte. 2ª ed. Porto Alegre: Selbach, 1954.
Saldanha, José de. Diário resumido do Dr. José de Saldanha. Rio de Janeiro: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1938.
Vilardebó, Tedoro Miguel. Notícias sobre los charruas: el Códice Vilardebó. Montevideo: Covadionga, 1963.
López Fernández, María Claudia. Representación de lenguas indígenas en la narrativa uruguaya del siglo xix. In: XVII Congreso Internacional Asociación De Lingüística Y Filología De América Latina (ALFAL 2014). João Pessoa – Paraíba, Brasil.
Baita fenda que se abre no pensamento e ressoa, quando se pensa por caminhos assim, Lucio. Ensaio intrigante e que penetra chamando. Obrigada 🙂