Lucio Carvalho
Bagé – RS
Francis Ponge (1899 – 1988) foi um poeta que se entregou mais a palavra do que à poesia. Serviu-lhe mais a aparência das coisas que a sua essência. Para ele, o texto resulta mais no processo que o cria que do efeito que pode exercer. É nesta dinâmica processual, de certo modo alheia aos campos semânticos do texto, e “aberta” no sentido de que não se conclui pelo poeta, que seus poemas concluem-se como rascunhos de poemas, isto é, como possibilidades em exploração.
Antípoda da lírica, Ponge propõe a “desintoxicação da poesia” e o livro em que amplia seu projeto purificador e esclarece seu método, La Rage de l’expression, ganha agora pela Editora da UNESP uma versão em português. Traduzido pelo professor Jorge Coli, A voragem da expressão é uma coletânea na qual Ponge põe às claras seu método literário, suas variantes e as discussões que realiza no sentido de transcender os limites da expressão poética.
Publicado uma década após Le Parti pris des choses, livro que o diferenciou como um dissidente do surrealismo, trazendo ao território expressivo o debate que o situa entre o formalista e o fenomenológico, aqui Ponge expõe suas investigações linguísticas e seu diametral distanciamento da lírica romântica e vestígios simbolistas.
A seguir, extraído da tradução brasileira de Jorge Coli, um exemplo de sua produção “processual”. O livro pode ser obtido por meio do link de acesso disponíveis na seção de “livros” da Especiaria.
Nota (moção) de ordem a propósito do céu da Provença 19 de julho de 1941 Trata-se de bem descrever esse céu tal como ele me apareceu e me impressionou tão profundamente. Dessa descrição, ou na sequência dela, surgirá em termos simples a explicação de minha profunda emoção. Se eu fui tão afetado, é que se tratava sem dúvida da revelação sob essa forma de uma lei estética e moral importante. Pela intensidade de minha emoção, pela tenacidade de meu esforço para dar conta disso e pelos escrúpulos que me proíbem de atabalhoar sua descrição, avalio o interesse dessa lei. Extraí essa lei, essa lição (La Fontaine teria dito essa moral). Pode ser também uma lei científica, um teorema. Portanto, na origem, um soluço, uma emoção sem causa aparente (o sentimento do belo não basta para explicar. Por que esse sentimento? Belo é uma palavra que substitui uma outra). Trata-se de esclarecer isso, de lançar luz ali, de extrair as razões (de minha emoção e a lei (dessa paisagem), de fazer essa paisagem servir para alguma coisa além do soluço estético, de fazer que ele se transforme numa ferramenta moral, lógica, de fazer o espírito dar um passo em relação a ele. Toda minha posição filosófica e poética está nesse problema. Notar que sinto as maiores dificuldades pelo fato de que um número enorme de imagens vem se pôr à minha disposição (e mascarar, pôr máscaras, na realidade), por causa da originalidade de meu ponto de vista (estranheza seria melhor) — de meus escrúpulos excessivos (protestantes) —, de minha ambição desmedida etc. Bem insistir que todo o segredo da vitória está na exatidão escrupulosa da descrição: “Fiquei impressionado por isto e por aquilo": é preciso não abrir mão, nada arranjar, agir verdadeiramente cientificamente. Trata-se mais uma vez de colher (na árvore da ciência) o fruto proibido, a despeito dos poderes das sombras que nos dominam, ao Sr. Deus em particular. Trata-se de militar ativamente (modestamente mais eficazmente) pelas "luzes” e contra o obscurantismo — esse obscurantismo que ameaça novamente nos submergir no século XX por causa do retorno à barbárie desejado pela burguesia como único meio de salvar seus privilégios. * (Pode-se, para captar a qualidade de uma coisa, se não po-demos apreendê-la à primeira tentativa, fazê-la aparecer por comparação, por eliminações sucessivas: "Não é isto, não é aquilo etc." — questão metatécnica, ou técnica simplesmente.) |
Francis Jean Gaston Alfred Ponge (Montpellier, 27 de março de 1899 — Paris, 6 de agosto de 1988) foi um poeta francês. Ponge desenvolveu sua prosa poética em Doce pequeños escritos (1926), Poemas (1948), La Rage de l’expression (1952), La gran recopilación (1961, 3 vols.), El jabón (1967) e Fábrica del Prado (1971). Também escreveu ensaios como Pour un Malherbe (1965) e um livro sobre crítica da arte, Estudios de Pintura (1948). Exerceu grande influência no desenvolvimento da ‘literatura objetiva’ dos novelistas da década de 1950.
