Luci Collin
Curitiba – PR
Não param quietas
as duas crianças que o rouxinol ameaça. Dá até pra sentir certa pena. Da ave, naturalmente. Da mínima criatura de venusto canto e que agora se esfalfa num vaivém obstinado e solene tentando talvez furar olhos, talvez arrancar pedaços de pele, destroçar infâncias. Empenha-se em ser grotesca, mas as duas crianças não colaboram. Estão cheias de princípios e certezas nesses tempos de pedagogias. Nesses tempos de perseveranças em que já não se fazem mais cabeças que consentem e bocas tranquilamente chiusas.
Pobre passarico
que veio de paragens remotíssimas e que para reproduzir-se tem que encontrar local apto, segundo uma lista de exigências, como por exemplo: que se cumpra o parâmetro geográfico de um índice de aridez inferior a 0,35. Senão não tem como fazer ninho. É o encargo dessa avezinha humilde. É única a história do rouxinol sôfrego a desempenhar seu papel com desenvoltura. Aqui deve ser março para que se ouça o canto. Aqui deve ser o exato hemisfério para que se ouça. Ser outro hemisfério para que se ouça. Aqui deve ser tudo mentira já que a verdade importada não nos serve e por que serviria? A avezinha tão graciosa de trinados inconfundíveis que aparece desde tempos remotos em lendas, rimas, odes não tem como estar aqui.
Sentimos.
Sim, é um menino e uma menina, caso contrário não seriam chamados de “duas crianças”. Não seriam! Para de argumentar contra uma coisa óbvia. É perda de tempo e ao preço que está meia dúzia, três litros, 40 centímetros, 3 quilogramas de tempo, não percamo-lo. Seria um vacilo quase tão irreparável quanto a tristeza dessa cena em que um rouxinol ameaça essas (duas) crianças. Pobrezinhas. Tão adocicadamente perfeitas. Formarão um casal formidável quando estiverem em idade de cópula e trarão ao mundo lindas fileiras de dentinhos.
Já podemos
devotar um momento de nossa mente fértil nesse exercício de construção dos elementos básicos de um enredo. Serão exuberantes e pluralíssimas as atividades do par, dando origem a séries, multidões, amontoados, farturas. Não possuem o simbolismo de um rouxinol, mas quem se importa? Dobre a língua quando for falar de criancinhas. Quem você pensa que é para falar dos pequinotes, obra maior de algo maior ainda?
São tão curiosos,
investigam, exploram, têm desejo de interagir e descobrir, de manifestar e imaginar e aprender e fazer de conta e todos os objetos se vestem daquela coisa de magia. Pode-se intuir, sentir mesmo o medo dos petizes quando sob ameaça de algum tipo de pássaro, ainda que pequeno, ainda que estrangeiro. Pode-se prever que sentem um medo vívido e viscoso.
Sintamos.
Como negar o que se gesta sob fantasias. Isso pode ter sido também pergunta. As sentenças ativamente se desdobrando em pontos interrogatórios. Sob fantasias, testemunhas presentes dão-se as mãos e saem saltitantemente felizes e alimentadas. Aqui se dispõem as colagens: o corriqueiro, o copioso, o silício, o reescrito, o saltimbanco, o estupefato. Por que pensar o mistério sob tentação? Ciprestes ao acaso dançam. O pensador do neolítico descarta extravagâncias e o que é visto agora é um filmezinho de quinta em que as multidões de personagens são medíocres com seus cincerros.
Perde-se o bonde.
Nós que ficamos pra trás comemos lixo comemos fogo comemos o pão que o diabo comemos bola. Vamos vomitar contas bancárias que não param jamais de engordar. Toda vez que soletramos uma palavra nova é isso: e tudo mais que se fez e refez, e tudo mais que nos faz e tudo mais que bem-fez. Bem feito. A solução para que se possa suportar as vozes contando de si aparências, fingimento, fachadas, caprichos e depois recebendo o jorro de gargalhadas e aplausos frenéticos é pior que qualquer pássaro ameaçando criancinhas. Matilda desejou saber rezar. Cacilda desejou saber esquecer. Cremilda desejou saber jacular. Nilda desejou ser desejável mas não percebeu-se. Hilda desvestiu-se tentando.
Sentiríamos
desconforto ou desconfiança caso já não soubéssemos prevíssemos aceitássemos bem quietinhos. As crianças são postas para dormir. Sorriem em seus sonhos. O rouxinol deixou disso. Ah, nada aqui presta para uma história com pé e cabeça. O piano era azul e também a falta dentro do peito: falta de som, falta de espaço, falta de acontecimentos que fiquem. Desconhecemos as notas e as ondas que elas produzem e eu só penso na mulher-lua, nos ratos dançando, no querido anjo e em tudo que estava naquele poema.
Um lance de gados
aqui e isso na premência de sentir-se tudo uno. Desfile de autorias e as pernas de pau são tão frágeis, essas pernas que sustentam as palavras loucas varridas. Hoje é fácil saber tudo de tudo e dispensamos rouxinóis, sóis, crianças, escaravelhos, paredes, dados e lances. Podemos ser acometidos de apenas dois tipos de reação só dois:
1) clique;
2) bocejo.
Um estalo, um entendimento. Ou uma inércia maturando infinita. No mais é só sombra, no mais é só farsa, no mais é só preguiça, no mais só desperdício.
Dá bem pra saber
quem sabe porque tem uma estrela, uma maçã, uma maçaneta ou uma dor de dente de sorrir forçado. O rouxinol foi invencionice. As crianças nunca estiveram aqui. Passam bem. Quem está sob ameaça não se inventará.
Nem a si mesmo. Nem assim.
Luci Collin, nascida em 1964 em Curitiba (PR), é ficcionista, poeta, educadora e tradutora curitibana. Autora de Querer falar (Finalista do Prêmio Oceanos 2015), A palavra algo (Prêmio Jabuti, poesia, 2017), Rosa que está (Finalista do Prêmio Jabuti poesia, 2020), Dedos impermitidos (contos, 2021, Prêmio Clarice Lispector – Biblioteca Nacional), Olho reavido (poesia, 2022), entre outros. Participou de diversas antologias nacionais e internacionais (nos EUA, Alemanha, França, Bélgica, Uruguai, Argentina, Peru e México). Na USP concluiu o Doutorado e dois estágios pós-doutorais em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Ocupa a Cadeira 32 na Academia Paranaense de Letras.
