ENTREVISTA

Rafael Courtoisie e a festa da linguagem

Imagem: arquivo pessoal.

Por Thomaz Albornoz Neves,
para a Especiaria.

Conheci Rafael Courtoisie na Colômbia, há mais de trinta anos, quando ele já parecia ser bem mais que uma estrela em ascensão nas letras hispanoamericanas. Por ser uruguaio, era o mais perto do conterrâneo que eu, um fronteiriço do Rio Grande do Sul, tinha então em Medellín. Nunca o esqueci. Tempos depois, a vida me levou a morar na sua Montevidéu, mas não o procurei, havia deixado o convívio literário para trás. Definitivamente, pensei naquela época. Mas comprava seus livros e acompanhava com interesse seu caminho.

Agora, um pouco antes da pandemia, Courtoisie veio à fronteira ler poemas e eu soube por conhecidos em comum que ele havia perguntado que fim eu dera. Nosso reencontro teve a intimidade do convívio que teria sido. Rafael traduziu meus versos ao espanhol e escreveu a apresentação para minha poesia reunida e eu traduzi ao português e editei um dos seus livros, Antologia Inventada.

Courtoisie é, claramente, um homem com trânsito livre por universidades, academias e centros culturais do Novo e do Velho Mundo, mas que talvez se sinta mais a gosto nas praças, anônimo, silencioso e contemplativo. O sorriso franco e generoso contrasta com o olhar de um menino que nasceu muito antigo. A sensação que deixa é a de estar sempre de passagem. Imprevisível, é capaz de estar presente por um momento e sumir da cidade sem deixar rastros no outro, livre e desapegado como a sua poesia.

A entrevista que segue foi feita no início do mês de julho de 2025 para integrar a série publicada pela
Especiaria.


Especiaria – Teu verbete da Wikipedia traz uma cidade natal, Montevidéu, e duas datas de nascimento: 22 de novembro e 22 de dezembro de 1958. Em que dia celebras teu aniversário?

Rafael – É 22 de novembro. A outra data deve ser uma premonição.

Especiaria – Quanto te leio, tenho a impressão de estar diante de um criador sem idade, maduro nos livros de formação e de um frescor indefinido nos projetos da maturidade, o que confunde qualquer imagem que através da tua literatura se possa ter do menino que foste. Um menino que, feito jovem, estudaria química e matemática enquanto encontra a poesia. Como o descreverias?

Rafael – A escrita literária em mim, muitas vezes, é uma tentativa de fazer com que aquela criança que brinca com o espanto e as descobertas da vida continue atenta, muito atenta à matéria e ao espírito, às coisas que acontecem no mundo, que as veja sempre pela primeira vez. O corpo envelhece, a pele envelhece, o mundo e a realidade envelhecem, mas a escrita é um procedimento “antienvelhecimento”, uma forma de manter o tempo sempre jovem. E saber é uma forma de desfrutar. E criar através da palavra é criar outro saber…

Especiaria – Esta conversa pretende um retrato de autor, especialmente para o leitor brasileiro. Façamos uma breve retrospectiva. Foste jovem em Montevidéu durante a ditadura e escreveste em tua primeira novela “Vida de cão” (Alfaguara, 1991):

A adolescência é a época em que desaparece o conhecimento do mundo, e não resta nem uma gota, nada da experiência nítida que se obteve na infância; na adolescência reina a secreção das glândulas, e os testículos são o cérebro da adolescência, a adolescência apaga o conhecimento da mente; eu era um caderno em branco e D [a ditadura] escreveu em cima com tinta de sangue; D. era violenta, noturna, instável, completa, incerta, curva, corvo, e voava, mentia, cagava na minha boca, nos meus ouvidos, me cagava com palavras, me cagava ao falar. Cocô. Era cocô. Eu não percebia. A ditadura. Pedaços de vidro.

Até que ponto a repressão e a cinza atmosfera daqueles anos no Uruguay influenciou a formação do poeta que aos dezenove anos escrevia os versos de Contrabando de auroras (1977)? Qual poema te vem ao coração quando pensas nesse primeiro livro?

Rafael – “Contrabando de auroras” foi escrito entre os meus quinze e dezesseis anos. E publicado aos dezenove. É um livro adolescente, mas também com poemas que pertencem ao que eu continuaria escrevendo e sonhando depois. O livro começa com este poema:

Deus não dorme a sesta
assobia um tango
pelas ruas devagar
e tem medo

Naquela época, esse poema dizia muito nas suas entrelinhas, em seu silêncio. Todo o livro foi considerado uma forma de falar sobre a luz e seu poder em meio às sombras históricas…

Especiaria – Quais leituras foram fundamentais para a formação do poeta que foste quando jovem?

Rafael – O peruano César Vallejo foi uma descoberta profunda e comovente. Neruda era uma leitura inevitável naqueles anos… mas o vizinho Brasil nos trouxe Drummond, Gullar, Meireles… e aquela presença sólida e revolucionária de Isidore Ducasse, conde de Lautreamont.

Especiaria – Conviveste com Onetti na Espanha e com Gelman no México. De que maneira o exílio deles chegou a ti? Quanto da ditadura levaste contigo nos anos seguintes à volta da democracia.

Rafael – Eu encontrei Onetti algumas vezes em Madri. Nós o chamávamos de “o Velho”, um homem aparentemente taciturno, uma espécie de sábio um tanto niilista, um tanto existencialista, que finalmente havia alcançado seu objetivo: viver, sonhar, escrever, beber e fumar na cama. Onetti é, de certa forma, um descendente de William Faulkner, mas é essencialmente um escritor que desenvolveu uma epopeia do fracasso, uma epopeia da contingência… isso foi um grande ensinamento. Em Gelman, encontrei um amigo, alguém que havia assimilado a lição de Vallejo para traduzi-la para o futuro. Gelman é também a plasticidade, a variedade, seus heterônimos, suas mudanças, suas muitas palavras, suas “doces” amarguras… Quanto à ditadura, não foi fácil livrar-se de alguns resquícios de escuridão… a luz não chega completamente até que se invente o amanhecer com determinação.

Especiaria – Há décadas participas de festivais, congressos e encontros literários. Foste publicado pelas mais prestigiosas casas editoriais de língua hispânica, traduzido em diversas línguas e lecionaste em universidades dos EUA e da Inglaterra. És um autor premiado e uma respeitada figura pública. Poderias me dizer o que é o êxito para o exitoso?

Rafael – Ah, a palavrinha “êxito”. Nosso herói nacional, José Artigas, encontrou o êxito na derrota. O chamado “êxodo do povo oriental” é comemorado como um feito histórico. Ou seja: o maior “êxito” de Artigas foi um “êxodo”, uma fuga com seu povo, com sua gente. A origem etimológica de “êxito” é “êxodo”, saída. O verdadeiro êxito é sair do momento modificado e avançar na corrente vital do tempo. Fui e sou professor universitário, escrevi vários livros de poesia, narrativa e ensaio. Mas o sucesso é continuar caminhando, continuar respirando. Olhar as coisas novamente, mas pela primeira vez.

Especiaria – Em “Textura” (Ediciones de la Banda Oriental, 1994), primeiro livro teu que me caiu nas mãos -das tuas mãos, em Medellín- encontrei um poeta enigmático, com uma imaginação irrefreável e uma respiração oceanica. O que provocou a escritura desse livro e o que representa em tua trajetória em termos de estilo? Quanto realismo mágico inspira esses textos? Me refiro a uma complexa prosa poética que produz passagens como:

As invasões grossas

Viviam no mar e mantinham os rebanhos de vacas em largas balsas procuradoras, repletas de trigo e cevada. O centeio reservavam para os touros bravos. Alguns domesticavam golfinhos com o fim de entregar mensagens na costa. Quando o mar, que sempre havia sido doce, começou a mudar de sabor, decidiram descer à terra pelos penhascos da Bretanha. No princípio, uns poucos levavam as vacas enjoadas, cambaleando contra as rochas, posto que aqueles quadrúpedes não concebiam a terra firme e temiam pastar daquele mar quieto na suspeita verde. As vacas não entendiam como o esterco não se afundava na campina. Quando viam uma casa, tentavam subir acreditando ser uma balsa. Com o tempo, as vacas se acostumaram à terra e os homens ao vazio de seu espanto, ao tenaz de terra firme que ainda hoje levam figurado, quando se angustiam nas ancas. As ondas cobriram a ilha e depois a orla e depois o continente. Os continentais simularam a língua de Oc, língua marítima, sob a aparência de um idioma para nomear as codornizes, vacas de terra implume.

Rafael – Esse livro está parcialmente inscrito num estilo barroco e numa tentativa de se diferenciar do lirismo subjetivo e afetivo da época. Está escrito com raiva, com calma, com amor. Também acho que algumas de suas páginas prestam homenagem a uma forma surrealista de nomear as coisas que estão escondidas debaixo do tapete, de dar uma olhada no subconsciente…

Especiaria – Seria justo afirmar que a dissolução dos gêneros, tão característica da tua obra, se impôs como escolha estética graças a uma sensação íntima de esgotamento da poesia, do ensaio, da filosofia e da ficção convencionais? E se não tanto o esgotamento, foi a atração pela experimentação?

Rafael – É que a escrita, toda escrita, é sempre poiesis. No centro de toda criação está a poesia. Apagar as fronteiras entre os gêneros é uma forma de reencontrar as essências.

Especiaria – Até que ponto a fusão desses limites injetou liberdade criativa no teu impulso poético e provocou essa festa da linguagem que através de mais de quatro décadas tua obra reverbera?

Rafael – Essa é a palavra-chave: FESTA. Em 2013, ganhei em Madri o Prêmio Casa de América de Poesia Americana com um livro publicado pela editora Visor, que continua sendo celebrado até hoje. O título desse livro é “Parranda”. E na América Latina, “Parranda” é uma festa, mas uma festa formidável, com barulho, alegria e luzes. A poesia é festa, a poesia é parranda. Passar da poesia à prosa, da reflexão à imagem surrealista, da métrica e rima tradicionais à mais pura liberdade estrófica e de versos, deu-me a possibilidade de continuar dentro da festa da linguagem.

Especiaria – A dispersão do Eu em teus escritos dá voz às coisas, ao universo nas coisas. Até que ponto a prática do aikidô, a meditação e o mergulho no oriente proporcionou essa impessoalidade subjetiva?

Rafael – Cada um de nós é um corpo. Achamos que temos um corpo, mas na verdade somos um corpo. E parte do corpo é o pensamento. E o pensamento surge do orgânico, dos sistemas físicos, biológicos. Podemos ser sedentários e expressar um pensamento lento, sedentário, e podemos mudar o corpo, o ser, e dar um novo fôlego, um ritmo diferente ao sujeito da enunciação. Às vezes, em parte da minha poesia, o eu desaparece e surge a voz dos objetos, das coisas. Às vezes, o eu engorda, o corpo engorda e faz sombra sobre o que existe, mas essa sombra também revela coisas… A prática de algumas disciplinas corporais é, ao mesmo tempo, uma prática de outro tipo de pensamento…

Especiaria – Passei os últimos dias lendo parte da tua fortuna crítica. O denominador comum que encontrei foi a indefinição, a complexa generalização que a leitura da tua obra provoca. A pergunta obrigatória não foi respondida senão fragmentariamente por, entre outros, Marsilio, Nigro, Sessa, Saavedra ou Marsiglia. Ou seja: quem é, a que se propõe Rafael Courtoisie? Poderias dizer, Rafael, que autor, aos teus próprios olhos, surge das dezenas de livros publicados desde sua estreia em 1977 com Contrabando de Auroras? Esse autor está à altura da tua expectativa?

Rafael – Ocasionalmente, a visão dessa obra diversificada, dessa multiplicidade, permite-me vislumbrar uma identidade com a qual me sinto confortável. Mas é o olhar dos críticos, analistas e, acima de tudo, leitores que pode fornecer pistas e orientações. As expectativas foram se modificando com o desenvolvimento da obra. Em geral, as expectativas apresentam um horizonte ideal… é gratificante fazer uma síntese entre esse ideal e o real, e comprovar que, de alguma forma, as expectativas são superadas… não no sentido do sucesso, mas no sentido mais profundo…

Especiaria – Quem está contigo como eu estive em algumas ocasiões, lendo poemas juntos, dividindo refeições, ou simplesmente passando uma tarde conversando no pátio de casa, nota a intensidade da tua atenção. A impressão que transmites é a de ser capaz de escrever sobre qualquer experiência, por mais banal que seja. De ser alguém que não perde a oportunidade de esboçar uma impressão, de captar um retrato. Um aspirador. É um poder. De que forma escolhes em que gastar essa intensidade? Ou te deixas levar pelo que ocorre, sem premeditação? Em outras palavras, como o teu processo criativo foi se modificando na medida em que dominavas o ofício? Como ser poeticamente seletivo quando se tem acesso à tirar de tudo algo de poesia?

Rafael – A curiosidade é o motor da história humana e da história individual. A curiosidade leva a grandes felicidades e também provoca enormes infelicidades. Mas como não se sabe de antemão aonde a curiosidade vai levar, o melhor é exercê-la… e acrescentar a intuição. Não é um mérito nem uma virtude, mas manter viva a curiosidade me salvou da pior velhice, a velhice do desdém, da indiferença… aquele gesto de “já sei” que temos às vezes… No meu caso, já com mais de sessenta anos, a “antologia da curiosidade” me permite descobrir tudo o que posso, como uma criança. E, se possível, escrever sobre isso. Mas, junto com a curiosidade como metodologia criativa, é bom exercer, de vez em quando, a rejeição, a intuição de que “por aqui não é”. E não é demais, de vez em quando, fingir tédio. Isso também salva.

Especiaria – No teu livro que traduzi ao português “Antologia inventada” (tan ed. 2021) o leitor se vê diante de uma virtuose expressiva que se coloca ao serviço das vozes que cria ou incorpora. É raro encontrar tanto corpo poético quando o conceito revela-se tão original. A arte conceitual tem essa fraqueza, corre o risco de esgotar-se no encanto da ideia. E a ideia, a longo prazo, costuma tornar-se árida pela repetição. Não é o teu caso, entretanto. “Antologia Inventada” é um logro a cada novo poeta abordado, um tour de force e uma realização de plenitude do ofício. Gostaria de saber sobre o processo de criação desse livro. De onde nasce? Como escrever poemas com a voz de Carver ou Milosz? Até que ponto o pastiche, na tua liquidificadora poética, se torna uma experiência estranhamente real?

Rafael – Há muito “eu” na criação poética. O projeto era brincar de ser os outros, devorar os outros. Como em alguns concretistas e pré-concretistas brasileiros, em “Antologia inventada” há um jogo de antropofagia. Como outras correntes poéticas, devoro outros olhares, me nutro de estéticas, para construir meu eu poético. Esse corpo, Antologia inventada, é feito de pedaços nutritivos dos corpos de grandes poetas que admiro, e de outros que inventei, e de algumas travessuras ou malandragens. É um estado de transe e é uma experiência de dissolução de um eu consuetudinário em outros múltiplos.

Especiaria – Há um centro coeso em ti ao redor do qual giram tantas vozes, uma impessoalidade que se identifique por ser universal ou mesmo onde antes havia uma voz tua, particular, hoje há só vazio das máscaras? Rafael Courtoisie mais que uma voz, é um instrumento tocado pela linguagem?

Rafael – A linguagem nos forma, nos constrói a partir da língua para dentro. A linguagem ergue o corpo físico e psíquico com o qual amamos ou odiamos. As máscaras da criação fazem, de fora para dentro, o verdadeiro rosto. Mas esse rosto também é uma máscara, nele repousa a máscara do nada, a carne do espírito. E assim: é um processo móvel de semiótica, é dialético, não tem fim.

Especiaria – A presença da poesia permanece, depois de tanto tempo, como sendo algo puro, intocado pelas palavras? Ou não existe poesia fora da linguagem?

Rafael – Em um livro publicado no ano passado na Espanha, um pequeno livro intitulado “Es un decir” (É uma forma de dizer), aparece um breve poema que diz: “A poesia coloca o corpo fora da linguagem”. Sim: a poesia é da linguagem, é feita dentro da linguagem, mas aponta, tenta, procura nomear o que está fora da linguagem. E nesse lugar sem espaço, coloca o corpo humano para respirar e sentir.


Sete poemas de Parranda (Visor Libros, Madrid, 2014)

4

Agora cantam os galos
da gramática, os verbos
picoteiam as pedras
dos substantivos.
Engolem milho as galinhas
das palavras. Se erguem
as cristas no curral
da linguagem.

O poeta raposa
rasga e despedaça.

Um alvoroço de plumas.
Um escândalo de patas.

§

6

A festa ocorre nas bordas
onde se juntam as margens
e o rio desaparece
tragado por sua própria água
atrás dos lábios
a fileira de dentes
de pedras submersas
morde a voz da Terra

canta.

§

8

A festa está no pão
sobre a mesa do inverno
e dentro do pão
a festa do silêncio
é pensamento branco
mar doméstico:

a sopa cheia de olhos
amebas nutricias, tépidas
que pesca a colher.

O garfo espera
e a faca mata.

Resta a ausência
sobre o tropo da toalha.

Migalhas de sol
palavras soltas.

§

11

A festa é um buraco
de luz na noite:

Apriessa cantan los gallos
e quieren crebar albores

A noite bicada
por raios de luz

Convusco iremos, Mio Cid
por yermos e por poblados

E a festa seguirá
até sempre e depois.

§

15

A festa é uma pedra no caminho
“maldita pedra” —escreveu Jaime Sabines
“pedra de sol” —Octavio Paz.
A pedra no caminho
lembra que se está
indo
que se tem pés
que os pés
sustentam o corpo
o corpo, cabeça e mãos.
A cabeça bate na pedra
e se pensa com os pés
na festa
na pedra
que já ficou para trás.
A pedra no caminho
revela que é verdade
cada mentira
dói tropeçar
levantar-se
e seguir
é puro gozo.

§

33

A festa radical é ficar quieto
a sós, em silêncio, as pernas
cruzadas, sentado sobre o chão
em posição de lótus, as palmas
das mãos voltadas para cima
o peso do corpo e de sua sombra
repousando sobre as palavras.

A coluna reta, o tom calmo
em equilíbrio, os olhos
fechados, a respiração
metódica, o olhar
para si, o prana
alimenta o universo de cada um
os planetas interiores
se alinham, o sol
brilha invisível
mudo
aos gritos.

§

34

Ainda não chego.
Já vai, já vai.
já chegarei a esse almoço.

Agora vivo numa casa
com um cão absoluto
louros, lavanda, alecrim
tomilho, alegrias e malvões.

De madrugada, às vezes
sinto sede. Preciso
de um copo d’água.
Só na festa de ser.

El sírvete materno no sale de la tumba
—diz Vallejo en Trilce
la cocina a oscuras, la miseria de amor.

Meu pai ferido de mim
e minha mãe
estende a mesa em outro mundo.


Nove poemas da Antologia Inventada (tan ed. Sant’Ana do Livramento, 2019)

V
Um são muitos

No meio de uma multidão
a intimidade é o grito
que não se dá, a palavra
que não se diz.

O silêncio, o voto
que a alma pronuncia.

Baltasar Brum

(Pouco antes de atirar contra o
próprio peito, Montevidéu, 1933)

§

X
Houllebecq Desencarnado

“Os outros são a consciência do tempo em si enquanto que o um (que abarca reconhecidamente mais do que o eu no que concerne a estrutura, autoconhecimento e desconhecimento, pois inclui a condição animal, inata) é o saber do tempo como circunstância, como mera articulação do que exige ser sem ser alcançado.

É o que ocorre com a narrativa de Michel Houellebecq, é o que ocorre com a imbecilidade: é um transcorrer entre o ser em si, e o pretender ser em si, um tipo de alteração ou ruptura do Princípio do Terceiro Excluído, ainda que não tão drástica, bastante próximo do império ostentoso, mas eminentemente débil do banal erigido”.

Jean-Paul Sartre

Fragmento inédito do livro Houellebecq, escrito depois de Baudelaire e de O Idiota da Família, dedicado a Flaubert. Supõe-se que Sartre fala de um escritor apócrifo, mas o sobrenome que utiliza em seu ensaio remete a uma espécie de premonição “bizarra” no sentido francês da palavra: Sartre morreu muito antes que aparecesse o primeiro livro de M. H.
Tradução: Rafael Courtoisie

§

XIII
Para Rodin

O perdido persiste para sempre
o que permanece não está:
Ignoro tudo o que sei.
E sei que ignoro.

Nua de mim
mais para dentro.

Camille Claudel, Paris, 1910

§

XIX
Inédito de Alfonsina Storni

Tu não me viste, Horácio, quando bebi o mar em um gole.
Te escrevi um poema que morto algum pode ler.
Te chamei na noite absoluta, viúva, sonâmbula.
Te chamei na manhã desse dia, mas já não estavas.

Detesto essa canção, Horácio Quiroga, é tão maçante:

Te vas Alfonsina con tu soledad, qué poemas nuevos fuiste a buscar.
Larará, lará, larará. Lará, lará, larará.

Que tolice.
Nenhum!
No mar profundo
só há pedras.

Agora dá-me tua mão
invisível, Horácio.
e beijos sem lábios.

Mar del Plata, 1938

§

XXII
O gigante míope

Uma bicicleta estragada, ferrugem
sobre um monte de Vênus
de lixo
em São Paulo:

um par de óculos
de um gigante morto
e enterrado no Brasil profundo
um golias míope, degolado
abatido
por una horda
de pigmeus, por uma linha
de formigas invencíveis comunistas, brilhantes
de quitina, operárias

os óculos do gigante
—a bicicleta morta, sem espelhos—
olham ao céu
desde o entulho
da cidade
latas, panos, garrafas
quebradas

lixo concreto
de nuestro inmenso y querido
Brasil:
poesia

muda poesia pura
pura poesia muda
suja poesia pura.

Ferreira Gullar, São Paulo, 1987

§

XXXII
Inédito de Donald Trump: Sabemos Quem Matou Kennedy

Um dia como hoje, um 22 de novembro
mataram John F. Kennedy.
Claro que sei quem foi, quem
foram: nós que saímos
em Halloween vestidos com a pele
da morte, com o sorriso de ossos
com a foice na mão
direita: quem? Todos.
Tu também Hillary
“tu também Brutus”
tu também Barack
e Jacqueline e Lyndon
Jonhson. Inocentes são somente
Marilyn, Abbott e Costello, Elvis
Presley, e mais uns poucos, um
punhado apenas: tenho minhas suspeitas
sobre Kerouac, Ginsberg, seu Uivo
soa envenenado. Creio que nem Fidel
nem Francisco Franco
tiveram algo que ver, Mao tampouco.

Hemingway estava bêbado
ou morto, dá no mesmo.

Hoover, esse sim sabe muito
sobre o assunto. E Nixon, e Boris
Pasternak is guilty also, but
I have doubts about
Walt Disney as intellectual
murderer, his hand was maybe Mickey
Mouse. Ese fucking rato
filho da puta assassino
contratado, mercenário, ex marine
ex CIA, homossexual, tranny
sometimes. Just
sometimes, not always.
Margarida é sua cúmplice.
Donald, o Pato Donald
meu tocaio
um corno alegre: pura
pluma e grasnido. O Che
teve que ver, de algum modo
e Cantinflas. Cantinflas
é mexicano! Culpado!
O Che e Cantinflas também
mataram Kennedy.
Eles e nós
somos
os piores.

Abertura dos arquivos confidenciais da CIA, 2020.

§

XXXVII
Endless

A mulher que partiu deixou um silêncio
é impossível pronunciar seu nome
sem que a terra trema, sem que cesse a luz.
A mulher deixou minha pele órfã
das suas mãos. Todas as portas
fechadas, os lençóis em trevas.
A mulher regressou para sempre
ao lugar onde não estou.
A mulher não amanhece em mim.
Ando sem sair do lugar
entro na noite
sem dar um passo.
Me faltam as palavras
a sede arde.
A viagem não tem fim.

Czeslaw Milosz

Manuscrito entregue a uma das suas ex-alunas de Berkeley em 2000, quatro anos antes de morrer. Texto traduzido do polonês ao inglês e do inglês ao espanhol, publicado em uma antologia rústica, sem ISBN. O original carecia de título; o título em inglês teria sido agregado pela ex-aluna para essa publicação e se conserva nesta antologia.

§

XXXVIII
Poemas Zen de amor e desamor ao mesmo tempo

A canção
da jaula
vazia

A mordida
do cão
sem dentes

O voo
da pedra
adormecida

A cabeleira
do sapo
em si mesmo.

A respiração do morto.
A beleza do espanto.
O chapéu sem cabeça.

Não sou eu, sou tu.
Beija-te com meus lábios.
Faz dos dois um corpo.

Princesa Li Dao Po, Dinastia Sai, século VII

Do Livro dos Olhares da Água. O original está escrito em argila com ideogramas arcaicos. O poema foi tomado de uma versão francesa e traduzido ao espanhol pelo antologista em dezembro de 2098.

§

Poema XLV
Fisher’s Short Story

Meu pai tinha um modo especial
para enfiar a isca no anzol
quando íamos pescar trutas
era um modo aprendido com seu pai
e que meu avô aprendeu com o seu pai
de forma que eu sou a quarta geração
em pôr em prática o segredo.
Hoje fui com meus filhos rio acima, remontamos
dois quilômetros além da cascata
armei as varas de fibra de vidro e os molinetes
especiais de linha de náilon transparente, capazes
de resistir noventa libras, muito mais
do que pesa uma truta. “É para caçar
tubarões?”, zombou meu filho maior.
“És Hemingway pescando no Golfo,
papai?”, riu o primogênito.
“Não precisa tanto”, acrescentou meu outro
filho: “As trutas estão cada vez menores,
pela contaminação”, afirmou.
“Sim, o glifosato causa câncer
nos peixes”, zombou o maior.
“Vamos jantar trutas muito magras,
envenenadas”, disse. Y acendeu uma bagana
de maconha. Convidou o irmão
menor e me olhou com deboche
enquanto eu colocava a minhoca viva
no anzol, tal como aprendi
com meu pai. “És um sádico, Daddy”,
disse meu filho pequeno. “Que mal te fez
esse pobre verme? Que crueldade,
Dad! ¿Nunca ouviste falar em veganismo?”
A minhoca se movia, parecia
um signo vivo de interrogação
na tarde de Iowa.
“Os escritores são pescadores
frustrados”, disse o maior. “Ou será
o contrário?”, acrescentou o outro.
Os dois riam, riam
às gargalhadas pelo efeito
da canábis. Pareciam aproveitar muito
o momento. Muito.
Acho que meus filhos não gostam de pescar.
Nem de ler. Eles gostam
de ver como o fumo sobe
ao cérebro.
O pai do meu avô,
meu avô e meu pai
eram bons pescadores
de trutas.
Mas as trutas estão
cada vez menores
e escassas.
Acho que a tradição
morrerá
comigo.

Inédito de Raymond Carver

Do livro inédito Travels with Nobody, traduzido por encomenda ao espanhol peninsular. A editora solicitante faliu na última crise espanhola. O tradutor não conseguiu publicar a obra, até agora, na América Latina. Talvez as versões dos poemas requeiram uma adaptação: não é fácil substituir “baseado” por “bagana”, salvo no Río de la Plata, e a expressão “cigarro de maconha” soa algo artificial. Esse tipo de situação ocorre em quase todos os textos. Seria necessário criar outra versão ou traduzir novamente todo o livro. E a agência literária pede mais de dois mil dólares pelos direitos. Too much, certainly.

Rafael Courtoisie (Montevidéu, 1958) é um dos mais reconhecidos autores ibero-americanos contemporâneos. Sua obra é objeto de numerosas teses universitárias na Europa e nos EUA, além de ter sido traduzida ao inglês, francês, italiano, português, entre outros idiomas.

Um comentário sobre “Rafael Courtoisie e a festa da linguagem”

  1. Alicia Hernández disse:

    Belleza condensada!

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