POESIA

‘Fotos ruins muitos boas’ e outros poemas

Imagem: Elementary Treatise on Physics, 1868.

fotos ruins muito boas
 
gosto
dessas fotos
ruins, no escuro
do bar
de alguém muito perto
muito longe
em movimento
 
um registro que não
captura. memória
que não se segura
na mão. a pulsação
de um grave
na caixa de som
 
alguém que se vira
que pega a mochila
momentos
de prodígios os mais banais
como um pé que apara
a garrafa que o novo casal
derruba sem ver e
quase se estilhaça
 
uma foto que se
se ausculta, respira
–  queremos gritar
como nos acidentes
de filme, nas ambulâncias
para que todos escutem
e comemorem juntos
a glória – está viva

§

27 pássaros

minha amiga faz origamis
do outro lado do telefone
ela está no vigésimo sétimo pássaro
eu, no quarto dia sem fumar
numa casa sem eletricidade
estamos fazendo companhia uma a outra
esperando o fim dos tempos passar
                em um grande rasante no céu

no viva-voz ouço sua respiração
as unhas marcam as dobras no papel
quando ela chegar a mil
                 poderá realizar um desejo
embora eu não esteja fazendo tsurus
também sigo concentrada
em não perder de vista meu desejo
                  e seus pássaros

e não é de cigarros que falo
ao convocar a imagem dessa grande abstinência
onde até a espera perdeu seu lastro
                 esperar o quê, pelo quê?

ficamos no como
estamos fabricando o futuro
sem rasgar nem usar a tesoura
juntas até que a bateria acabe

enquanto o fim do mundo percorre sua trajetória
                 desenfreada entre os planetas e as estrelas
escuto a noite e a minha amiga
                  dedicada a não perder de vista
o que ainda temos

§

Meu método

Meu método? Caminhar.
Começo sem planejar de antemão,
seguindo pés que ignoram
se eu deveria desejar ou não um hambúrguer
ou uma nova graduação em um outdoor,
pernas que fazem pouco da intuição
de seguir por ali que para lá são os ônibus,
o muro, os carros, os buracos. Não pratico
nem o limite de um gato preto
entre as grades de um primeiro andar
e recebo o resultado, suas lâminas
num relâmpago. É bom acordar
para o impensável. Subir no muro
para catar amora na frente da escola
e achar a copa de um flamboyant
ao longe, do outro lado. Também é bonita
a casinha, a flor, a pracinha. O pé
de jamelão que mancha a calçada.
Tudo. O que existe. Há o mundo. Olha aí.
O profundo anterior fica um pouco mais suave
gasto na sola do sapato. Mais amplo.
É assim que ultrapasso as fronteiras
nos territórios da dor, da saudade,
da ansiedade, da analgesia. Do conformismo
em não fazer as malas dessa casa
que agoniza – meu país, meu globo, eu diria
se não fosse dessas mesmas ideias que fujo,
que me distancio. As lógicas em que
moramos, em agonia. Continuo até de noite.
Quase não sei para onde. Sei que
descendo a rua de volta ao apartamento,
ocorre-me se deveria mudar, ao menos,
de endereço, um dia, para distribuir
em outros lugares meus passeios,
meus passos e os seus modos
de viajar longe, encontrando
no meio do caminho alguma coisa
que não sei de todo, algo
de que nem desconfio.

§

Extraordinário

I

Essa mulher, esse homem
no banco de trás do táxi
apostam, mas não sabem,
que é recíproca sua fome.

No carro, cruzam a cidade
debaixo de chuva, a bijuteria
das fachadas deslizando
em seus rostos, suas pernas,
nas suas mãos ainda sós.

Se conseguirem sintonizar
a música das esferas no rádio,
vão escutar o boletim
extraordinário: o mundo pode,
sim, parar; para que desçam juntos.

II

Que o amor vença tudo
é ainda verdadeiro, mas muito
mais trapaceiro do que parece
à primeira vista. O que vai
no recheio dessas três palavras,
agora, quando lá fora nada mais
é o que era? Antes de pegar o carro
que a protege do aguaceiro
ela viu a noite colocar as cadeiras
de ponta-cabeça por cima das mesas.

Acontece assim: uma luz se apaga, depois a outra.
O último músico pega o case e sai pela porta
segurando um jornal sobre a cabeça
para tentar se proteger do céu.
É como seu expediente, tão despreparado
para o que vem pela frente que chega a ser hilário.
Você já viu uma chuva assim antes?

Essa mulher que quer esquecer o nome
no banco de passageiros da história
sabe, mas não queria, algo que não
alcança. Que tem a ver com o fato
de que nada mais será o mesmo. Que já não é.
E ela sabe, um pouco mais ligeiro
do que pode dar conta. Só quer descer
do carro se esse claro-escuro descer junto.
Nada mais será o mesmo nesse mundo.
Não pegue nenhum atalho.
Não há nada mais extraordinário do que isso.

§

Não escrever

I.
desenhar à caneta
sobre o que foi escrito
há anos. foi possível, mas
é ainda? a caneta percorrendo
a letra antiga, verdades
dez cadernos atrás

II.
amo pensar na casa
em vez de escrever
dicas para cultivo de sálvia
cortinas novas por 79,90
manhas para lavar travesseiros na máquina
adoro comprar sapateiras em vez de escrever
dar banho em legumes, sacos de feijão
me preocupar com a temperatura de bebês

III
para não escrever pesquiso
muito, tudo-tudo, com minúcia
zero o google, telefono, vou atrás
de empalhadores de animais a especialistas
em big data. tomo notas, passo a limpo
monto esse grande mural
com mapas, fotos, notícias na parede
sou quase uma detetive de seriado policial

IV
tão difícil há tanto tempo
seguir com isso que quando algo
se encaminha não consigo continuar
é muita emoção. uma frase! inteira, olha
para tudo, aumenta a música
não me aguento
vou gritar, rolar no chão

V
como você escreve? quem trabalha com isso
às vezes responde. exibe os cadernos
o dia ou a noite. o mate. os truques
aplicativos. philip glass no inverno, paulinho da viola no verão
por pirraça e precisão. pássaro por pássaro
com um vinho da consolação depois de escrever tantos toques
uns suspiros à janela quando não há toque algum
como você escreve? sem contar nada que importe
arruinada em verde e amarelo, perdida da silva
com a voz do samba, a voz do adeus. brasileira de estatura mediana
escrevo com expressões do corpo: com o coração
quebrando a cara, batendo o pé, dando o sangue
igual meu nariz


VI
falo muito sobre como não consigo mais
fazer o que fazia antes, o que já fiz
o que eu fazia antes?
e antes do quê?
o que significa não conseguir?
remoer é um trabalho integral
espero ter deixado claro

VII
não escrevo porque penso muito em romance
porque não ajuda a morte
não paga as contas e ninguém quer ler
é difícil e não consigo criar nada emocionante
tem muita coisa boa sendo feita que me contempla e satisfaz
não escrevo porque amo a escrita
porque tenho esperança e há tanto em jogo
não escrevo porque não muda coisas
e se muda é péssimo para quem escreve, individualmente
não escrevo porque torta por dentro
não escrevo de tanta vida que dá medo
não escrevo porque onde é que isso vai dar
não escrevo porque sim não é resposta
não escrevo, você sabe bem o preço
não escrevo porque estou aqui vai ver de repente fui pra saturno meia hora vendo fotos da lauren bacall quando jovem, frutas sendo depiladas et cetera

VIII
a casa está suja
é preciso escolher

IX
é seu aniversário e é preciso escolher
é outra a arte de estar presente
disponível, brilhando nas festas de ser gente
seus velórios, suas febres, depressões, os batizados

X
o que mais posso elencar
da experiência desse ofício de não escrever
não vou dizer da dúvida
sobre o benefício o sentido
o valor o prazer o sacrifício
o esforço de nadar contra a corrente
o planeta em extinção, o pior pra presidente
no vizinho, no parente, nos perversos de bom-tom
essa desorientação abissal
que nos distrai de fatos óbvios
40 graus de febre na primavera
nos dentes – nada obstante
enquanto dormem as gentes
poetas exaustas
           experimentam
                 uma palavra errada
                      atrás da outra

Moema Vilela é autora de Ter saudade era bom (Dublinense, 2014), Guernica (Edições Udumbara, 2017), Quis dizer (Edições Udumbara, 2017) e A dupla vida de Dadá (Penalux, 2019). Publicou contos e poemas em várias antologias e revistas literárias brasileiras. Atualmente é professora nos cursos de Escrita Criativa e Letras na PUCRS.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *