Amilcar Bettega
São Gabriel – RS
Quando entrei na sala ele já estava lá, sentado, com seu caderno aberto sobre os joelhos. Acomodei-me na fileira logo atrás, a duas ou três poltronas à esquerda, e ele já escrevia. Vi, ficou registrado no meu cérebro e não dei mais por isso.
Foi o barulho que ele fazia ao virar as páginas que me capturou a atenção outra vez. As luzes, evidentemente, já estavam apagadas, o filme ia lá pelos seus dez, quinze minutos, mas o homem continuava com o caderno aberto sobre os joelhos, e escrevendo.
Não sem parar. Ao contrário, escrevia aos poucos, notas talvez, entre as mudanças de cenas. Era possível ver o seu perfil recortado na penumbra azulada em que a sala mergulhava quando a imagem projetada era a de uma praia vazia no inverno, sob um céu leitoso e cheio de nuvens. E eu o via, os olhos fixos na tela, a mão segurando a caneta e, de tempos em tempos, rabiscando frases no caderno.
Privado da luz, voltar os olhos para o caderno seria tão inútil quanto ridículo. Não podendo, no escuro, enxergar o que escrevia, o homem estava livre para ver o filme e escrever ao mesmo tempo. Suas palavras nasciam em seu cérebro e se materializavam nas folhas do caderno por meio da mão treinada e conhecedora das distâncias entre as margens da folha, dona de uma aguçada noção espacial e senso de orientação que lhe permitia guiar-se nas trevas como um cego experiente.
A única diferença é que seu olhar não estava preso às frases que desenhavam trilhas na folha, frases já conhecidas — porque formuladas frações de segundo antes de músculos e tendões da mão responderem fisicamente ao comando do cérebro —, ainda que invisíveis ou inacessíveis (tanto à visão quanto à consciência), ou ainda encobertas pela ausência de luz que mergulhava tudo, homem, mão, caneta, caderno, as frases, palavras, tudo numa só massa de escuro.
Embora ligadas — parece-me óbvio que o que escrevia estava relacionado ao que via —, escrita e visão avançavam de maneira independente, dissociadas uma da outra, agindo simultaneamente sobre objetos diferentes.
O homem escrevia e via (não o que escrevia) ao mesmo tempo. De alguma maneira as palavras e frases refletiam o que via, mas tombavam desamparadas nas folhas do caderno, num equilíbrio difícil. Nasciam órfãs, sem parecer que estavam nascendo, mas cruzando uma passagem cega, do escuro para o escuro, água brotando dentro da água.
E assim continuariam as frases, sem rosto nem forma, até o fim do filme.
Quando as luzes voltassem a se acender na sala é que elas se revelariam, e revelariam — com toda a sua corporeidade física, sua plástica concreta de grandes letras meio disformes, palavras desalinhadas numa trajetória levemente ascendente e lembrando uma caligrafia infantil — a sua alma e subjetividade àquele leitor surpreso com o que ele próprio escrevera, vendo aquelas frases pela primeira vez, como se as visse pela primeira vez.
Cuidadoso e hábil, embora seco no trato
com a palavra, Amilcar Bettega é exato para expressar o
instante, pedaço do tempo que captura na linguagem e
provoca a emoção da arte. A narrativa organiza-se em
solilóquios ou colóquios distraídos do narrador com um
leitor virtual, e exclui a possibilidade de
representações realistas. O que importa é a tensão de
um texto conciso, seja ele a descrição de uma paisagem
que se transforma em quase nada, ou a imprecisão da
memória que funde em poeira o flutuar do instante. Nesse
jogo, não interessam enredos e subtextos, mas o ritmo, a
luz, a coisa mínima vista de perto, como se os sentidos
se ampliassem para a leitura do tempo e do lugar. |
Amilcar Bettega nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. É autor de O voo da trapezista (Prêmio Açorianos 1995), Deixe o quarto como está (Prêmio Açorianos e Menção especial do Prémio Casa de las Américas 2003), Os lados do círculo (Prêmio Portugal Telecom 2005) e Barreira (finalista do Prêmio São Paulo 2014). Foi escritor residente do International Writing Program da Universidade de lowa, nos Estados Unidos, em 2010. Seu trabalho está publicado em países como Portugal, Espanha, Itália, França, EUA, Luxemburgo, Suécia e Bulgária. Também atua como tradutor e professor de Escrita Criativa. (Zouk)
Sempre genial.