Marina Monteiro
Porto Alegre – RS
Paulo Roberto Drumond Neto tem mesmo nome de artista e é. Quando Paulo Roberto Poeta, como é conhecido entre os colegas e o público do Municipal, pega no contrabaixo decanta poesia em cada resmungo que o instrumento pontua nos concertos. Gosta de dizer que o contrabaixo é o tiozão de cara amarrada que traz o peso necessário às composições. No fundo, é um bonachão. Um personagem.
Em noite de concerto, Poeta levita no peso das notas, aterra a partitura enquanto o corpo plana, se distanciando pelo espaço. Não lembra de nada, nem de ninguém, é de família nenhuma, pertencente à música. Além dos ensaios com a orquestra, Paulo Roberto se dedica aos treinos diários, na própria casa. Obsessivo. A comunidade da Maroquinha já até se acostumou àquelas notas pesadas atritando, ora com os ventos fortes de tempestades prometidas, ora com o sol melado escorrendo nas testas.
Na Maroquinha, Gavião canta grosso. Imponente, garante a paz. Todo final de ano Gavião toca na festa que ele mesmo promove, distribuindo peru cidra e brinquedos para as famílias. Gavião é o nosso prefeito, muitos dizem. Recentemente realizou o sonho antigo de abrir uma escola de música na comunidade, para fazer suas crias. Tudo fluido como as notas do contrabaixo. Entre a Maroquinha e o centro, a música faz a ponte, imperando a harmonia.
Assim até um Castor aparecer pelo caminho.
Herdeiro do legado da família Drumond, que nunca teve parentesco com poeta algum, Gavião sempre foi mais dado às coisas sensíveis do que aos negócios da família. Filho único e carregando o nome do avô, entretanto, soube desde pequeno o próprio destino. Assumiria tudo, com respeito ao legado, desde que antes pudesse se formar em música. Essa foi a barganha feita com avô e pai. Garoto prodígio, aos vinte e um estava formado e cumprindo o acordado com a família. Combinado não sai caro, sempre diz Gavião.
Deu sorte, quando formado o avô já ia morto, o pai relaxado, querendo viver o que não tinha vivido jovem, Gavião pegou o negócio um pouco frouxo e atou os nós, foi dando ritmo próprio ao legado, e fez os cofres da família tilintarem sem desafinar. O pai até aposentou e foi morar em Itacaré. Bem-quisto na cúpula, organizado, respeitador das fronteiras, Gavião tinha visão, feito ave de rapina, planava alto e enxergava longe. A alcunha não vinha do vento. Alimentando e alegrando a comunidade, pagando bem os funcionários abrigados pelo guarda-chuva dos negócios, diplomata, fino feito a música que fazia. Não buscava confusão, preferia tudo certo em seu lugar, cada nota em seu tom, não tinha ambição além da conta, já faturava o suficiente para três gerações que talvez nem viessem a existir. Seu verdadeiro anseio era apenas reproduzir partituras. Gavião não tinha fome de poder, achava perda de tempo, um artista nato. Preciso fosse também sabia alcançar os gatunos pelo pescoço e dar sumiço em cada um, fez isso uma ou outra vez quando a ordem na Maroquinha andava ameaçada, mas só fazia pela paz, a paz necessária para tocar sua música sem interrupções. Essa era a métrica. A Maroquinha inteira agradecia.
Foi logo no primeiro período dessa paz esparramada, quando todos na Maroquinha andavam despreocupados, acolhidos pela ordem instalada por Gavião, que surgiu o concurso para ser músico da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, coisa fina, sonho reluzente feito o teto do prédio. Não pensou duas vezes, estudou, prestou, passou. Assim, além de o Gavião da Maroquinha, virou o Paulo Roberto Poeta, contrabaixista do Municipal, alegria das senhoras e senhores finos da aristocracia carioca.
A vida ia boa. Corpo no qual cabia Gavião e Poeta era corpo poderoso. Flanava pelas ruas, fazendo a ponte entre a comunidade e o centro, entre sua origem suburbana e a aristocracia carioca, que ainda se comportava como nos tempos da corte. Achava graça. Podendo fazer sua música, tudo reluzia à felicidade. A métrica da paz de Gavião era sempre medida em notas musicais e melodias. A Maroquinha no seu reinado era território de música, harmonia, fartura, povo agradecido por aquele pai, maconha boa rolando pelas esquinas, sorrisos arregaçados nas caras. Era a comunidade carioca mais bem afinada, onde bicheiros, traficantes e policiais colaboravam uns com os outros e onde político só entrava quando dentro dos propósitos.
Gavião jamais pensou em abandonar suas raízes. As duas vidas em um só corpo não conflitavam. Gavião não bicava o Poeta. O Poeta não melava o Gavião. Na Maroquinha todos sabiam da vida dupla e respeitavam. Vissem Poeta no centro, jamais gritavam, ô Gavião, vissem Gavião no boteco da Maroquinha, ninguém se lembrava do Poeta. Um não intervinha no caminho do outro e, com a paz garantida, um comandante poeta era até motivo de orgulho. A alma prática honrava a herança, a alma sinfônica honrava a própria sina. Jamais uma interferiu na outra ou deixou de comparecer ao serviço.
Assim até um Castor aparecer pelo caminho.
Castor Lopes Anátocles de Andrade e Moura Segundo, ex-coronel do quarto batalhão da polícia militar da cidade do Rio de Janeiro e agora pré-candidato à presidência da República do Brasil, que por um acaso era assim-assim com Maurinho da Xuxa, o imperador da contravenção na cidade, herdeiro dos territórios da Zona Oeste e da Zona Sul, querendo disputar, na sujeira, mais territórios e contando com o padrinho e melhor amigo do falecido pai para isso. Maurinho da Xuxa não comparecia às reuniões da cúpula, queria mudar todo o sistema, impor novos métodos, um rapazote novo, cheio de minhocas na cabeça, mas com poder, dinheiro e influência suficientes para causar.
Maurinho da Xuxa trazia para a contravenção paixão que nunca foi bem-vinda, era preciso ser frio e calculista, realizar as paixões nas mulheres, na arte, na música, e deixá-la fora dos negócios. Gavião sempre soube que Maurinho traria problemas, julgava ter mais uns tempos de paz. O abilolado tinha metido na cabeça que o responsável pela morte do pai era o chefe do tráfico da Maroquinha, o Pocó, e queria porque queria começar uma guerra. Não havia indícios de que Pocó pudesse estar atrelado ao caso, mais provável até que fosse ato de disputa dentro da própria família de Maurinho, isso se não fosse o próprio Maurinho o mandante do assassinato do pai. Essa nova geração de contraventores tinha vindo com veneno nos olhos, andava tacando o terror em toda a organização da cúpula, considerada obsoleta demais para os jovens contraventores. Uns velhotes de reserva, era o que eles achavam, fazendo pouco caso dos anos e anos de experiência que figuras como Gavião tinham. Eram outros os desejos e outras as articulações da garotada, não se contentavam com vida boa, queriam poder absoluto. Deram para achar bom se meter com políticos.
O tal Castor nos últimos tempos andava se enfiando na Maroquinha, ganhando a confiança da comunidade, com promessas de dinheiro fácil, certas ideologias espúrias, infiltrando milicianos da pior espécie lá dentro, aqueles policiais que não conseguiram fazer seus esquemas dentro da corporação, meio frustrados, que se metiam em todo tipo de trambique, dos gatos aos escritórios do crime. A reboque ia Maurinho da Xuxa, se fazendo presente na Maroquinha, provocando os traficantes, incendiando a lona. Pocó andava pressionando Gavião para que agissem rápido, nem só de música poderia viver a favela, precisavam dar o ritmo da guerra, antes que a Maroquinha voasse pelos ares direto para as mãos de Maurinho da Xuxa, e aí não teriam escolinha, maconha boa, musiquinha, festinha de final de ano. Que agissem rápido, ou Pocó iria garantir que Gavião não tivesse mais mãos para tocar seus instrumentos. Pocó deixava passar tranquilo esse clima de arte e cultura, notava que fazia bem pra comunidade, deixava todo mundo calmo, mas tudo tinha limite. O limite havia chegado, Pocó finalizou o papo tirando uma faca do bolso e fazendo um gesto rasgante no ar, cuidaria pessoalmente do serviço, imagina um instrumentista sem mãos? Gavião, sentindo os pulsos, entendeu bem o recado. Hora de agir.
Em tudo isso vinha pensando Paulo Roberto Drumond Neto, o Poeta, enquanto caminhava pelas calçadas do centro, tomando o rumo de casa. Sofria pela perda da paz em meio a uma guerra anunciada. Teria bem menos tempo para a música nos próximos dias. Talvez tempo nenhum. Ossos do ofício, fazer o quê. Ao virar uma esquina, Paulo Roberto vê uma ratazana preta cruzando o caminho. O bicho para e encara Paulo Roberto nos olhos. Um raio percorre o corpo de Gavião de cima a baixo. Não é à toa que esse bicho não fazia parte do jogo. Um rato cruzando caminhos é sempre sinal de azar.
*
De manhã cedo, Carmem Lúcia ligou a tevê resolução 4k de 150 polegadas no jornal matinal, para acompanhar as notícias. Seu amado marido, que já vivia com Deus, achava que não caía bem começar o dia com narrativas violentas, tudo muito sanguinário, ao contrário, indicava que fizessem uma refeição leve e fossem dar uma volta na orla do Leblon, de mãos dadas, mirar o mar e seus mistérios. Alfredo não estava mais aqui, o Leblon já não era mais o mesmo, Carmem Lúcia preferia o que a tevê tinha a oferecer. Nunca mais precisou tomar Omeprazol desde que começou a somar na dieta as desgraças alheias.
Qual não foi a surpresa quando Carmem Lúcia viu esparramado na tela o rosto de Paulo Roberto Poeta, o contrabaixista do Municipal. O homem capaz das mais lindas performances nos concertos do Theatro. Na notícia diziam que Gavião e Pocó haviam declarado, após uma saraivada de tiros e fogos, a abertura da guerra na comunidade da Maroquinha. Carmem Lúcia lembra de quando contratou uma menina da Maroquinha para passar as roupas de Alfredo. A menina vivia dizendo que sua comunidade respirava música graças ao Gavião. Carmem Lúcia não entendia aquela linguagem, sorria para a menina fingindo concordar, imaginava que vivia drogada, mas o trabalho ainda fazia bem-feito, enquanto assim fosse, tudo bem. Carmem Lúcia mudava de assunto e pedia à moça as roupas bem alisadas, Alfredo gostava de ir trabalhar impecável.
A mulher se aboleta no sofá, acompanhando a longa notícia que o jornal trazia sobre o caso, parecia ser feia a contenda. Então o Poeta era um Gavião, entendia de contrabaixo e contravenção, acertava notas, animais e corpos. Produzia música, jogos e espocadas de tiro. Um arrepio levanta os poucos pelos nos braços de Carmem Lúcia. Lembra da última noite que esteve no concerto. Foi sozinha, por falta de companhia. Quem gostava de ir com ela era Alfredo, e Alfredo já não era mais. Carmem Lúcia recorda ter sido justamente Paulo Roberto Poeta quem lhe levou às lágrimas. Ela não conseguia deixar de reparar na firmeza das mãos daquele homem deslizando os dedos nas cordas do contrabaixo. As veias volumosas. Por mais que fossem alguns músicos tocando, sempre um se sobressaía aos olhos e era sempre o Poeta, como era conhecido pelo público. O músico costumava fechar os olhos enquanto tocava, Alfredo dizia que isso era característica de um verdadeiro músico, devoto à arte. Alfredo também julgava Poeta o melhor da orquestra. Conseguia fazer de um instrumento pouco notado pelas pessoas uma verdadeira estrela da noite.
Carmem Lúcia se lembra bem da última vez que foi ao concerto. Naquele dia, Poeta abriu os olhos e olhou na direção do camarote onde ela estava sozinha. Enviou uma piscada. Ela imaginou que havia sonhado ou ficado louca, mas tinha quase certeza, queria ter. Carmem Lúcia ruborizou. Na saída dos músicos do Municipal, lá estava ela, aguardando para parabenizar um a um, e ansiosamente querendo encontrar o Poeta. Fez questão de lhe dar os parabéns pela performance exuberante e apertaram as mãos um do outro. As mãos do músico, firmes e delicadas ao mesmo tempo. As veias volumosas. As mesmas mãos que tocavam o contrabaixo tocando agora as mãos de Carmem Lúcia, provocando um arranjo descomunal. Sentiu a música atravessar o próprio corpo. Poeta pediu o telefone de Carmem Lúcia. Ela lhe passou o fixo, para não parecer fácil demais. Por duas semanas, desde então, vem aguardando a ligação do músico. Agora já imagina o porquê da demora. É mais ou menos esse o tempo que, segundo o jornal, as coisas começaram a esquentar na Maroquinha. Carmem Lúcia se pergunta se a menina passadeira ainda mora por lá, provavelmente sim. Será que ainda diz que a Maroquinha respira música? Será que ainda vive drogada? Será que pega em armas? Será que conhece o Gavião?
O jornal acaba e Carmem Lúcia lamenta ter sido tão descuidada. Deveria ter pedido o número do Poeta também. Agora ligaria para ele, assuntar se estava bem, se tinha vencido a guerra, se já tinha voltado a tocar, se precisava de curativos, oferecer uma xícara de chá. Todo homem precisa de cuidados. Carmem Lúcia imagina aquelas mãos deslizando no contrabaixo. As veias volumosas. Aquelas mãos que apertaram as suas. Pegavam em fuzis e metralhadoras. Contavam notas e notas e notas de dinheiro. Mandavam dar cabo de pescoços e CPFs.
Carmem Lúcia contorce o corpo diante das imagens mentais. Cogita ligar para o jornal, pedir o contato de Gavião. Capaz da polícia aparecer na porta. Só restava mesmo orar e torcer para que Gavião saísse vencedor e que, ao final de toda a chacina, o Poeta enfim ligasse para ela. Quem sabe ainda teria a chance de respirar a mesma música que a menina passadeira vivia dizendo respirar lá pelas bandas da Maroquinha. Carmem Lúcia se ajoelha diante do altar com a foto e a urna de Alfredo, faz o sinal da cruz e se põe a orar. Um ratinho pequeno, cinza claro, aponta a cabeça debaixo do fogão, lá na cozinha. Isso, no entanto, Carmem Lúcia nem imagina.
Marina Monteiro nasceu em Porto Alegre, em 1982, e há 14 anos está radicada na cidade do Rio de Janeiro. Atua como escritora, dramaturgista, atriz, produtora cultural e arte-educadora. Formada em Licenciatura em Teatro pela UDESC, e Bacharel em Filosofia pelo IFCS – UFRJ. É autora do romance Açougueira (Claraboia, 2024), e dos livros de contos Contos de vista Pontos de queda (Patuá, 2021, finalista do Prêmio Açorianos), Em nossa cidade amarelinha era sapata (Patuá, 2019, vencedor do Prêmio AGES, da Associação Gaúcha de Escritores), e Comendo borboletas azuis (Multifoco, 2010).