POESIA

Seleção de poemas

Imagem: Garoto e anjo, colagem de Léo Tavares, 2025.

[dois poemas inéditos]

Trecho.

na poesia troco
poeira de estrela por poeira de estrada
de um trecho que misteriosamente brilha
quando se descola da sola dos sapatos
deixando um rastro no caminho
para que seja encontrado
quando nos perdermos
                                   de novo.

§

Too sad to tell you.

comecei um poema para relacionar
o bas jan ader ao padre dos balões
e quem dirá ser verdade que
homens tristes
                      ou fazem arte
                      ou servem a deus

deixei para trás por enquanto
para escrever sobre a chegada
ao centro e a saudade da margem
numa outra paisagem para quebrar a cara
para morder a língua e amaldiçoar
essa cidade-pesadelo
de onde quero fugir

é verdade existir
fora das histórias contadas
na infância e hoje isso
                                  me corrói os ossos
                                  me dói a vista
o que resta senão planejar
uma fuga na madrugada e esperar
que durmam todos os vizinhos
para atravessar becos e amar
na certeza do escuro

desaparecerei aos poucos junto
de todos os amores que não tive
deixarei restos de um barco
os pés de um sapato antigo
cheios de uma terra vermelha
como único vestígio
da nossa estória.

§

[quatro poemas de ‘santíssimo’]

Carnaval, 2002.

bate bola bate o pé
se for homem vem aqui
mas não assim tão perto
se for bicha fica aí
que daqui também o sou
a imaginar tiranias
seu corpo no meu
duas bichas mascaradas
encaro sem ser encarado
escondido pelado
debaixo da fantasia
invocado
se for bicha fica aí
é melhor para nós dois.

§

Trovoada.

aqui não chove ainda
mas provavelmente vai
ficando cada vez mais
escuro e lá vem você aparecer
no meu cochilo à tarde
dividindo almofadas
no solitário sofá
de uma sala
onde você
nunca mais
apareceu.

§

Minotauro22atv.

brindo o anonimato com
os homens nos aplicativos
partes de corpos sem saída
as janelas abertas para o nada
da hora em que se acorda sozinho
à hora em que se volta a dormir
num labirinto dentro do outro
contando uma ficção ordinária
da odisseia em banheiros públicos
que levam tempestades aos darkrooms
janelas e portas abertas para o nada
é que eu tô sem local agora
os olhos que só se tocam na tela
goza comigo minotauro22atv
repete sem local e sem futuro
todo sujo da minha própria porra
convencido de que a vida
vista desse mesmo lugar
já foi de maiores encantos.

§

Santa ceia.

seu odor de jesus cristo me constrange
ao chegar atrasado madrugada adentro
de mim este corpo em espera a ouvir
lamuriosas desculpas sobre não ser intencional
aquela jantinha entre homens seus comparsas
inebriados pelo odor do seu suor transformado
em licor ao qual suas bocas bebem da fonte
aqueles homens chamando senhor senhor
acreditando nas boas novas que saem dos
seus lábios rachados e milagrosos enquanto
seus dedos dividem a migalha do pão nosso
seu odor de jesus cristo que chega
antes de você na minha cama
como o ladrão constrangido
pelos pares de dezenas de mãos
masculinas tocando sua pele
antes de voltar para casa.

Rafael Amorim é artista visual, poeta e pesquisador independente, nascido na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Interessado por uma prática artística indisciplinar, atravessa artes visuais e escrita sob perspectivas homoafetivas, periféricas e suburbanas. Na literatura, integrou antologias como “Homem com homem: poesia homoerótica brasileira no século XXI”, organizada por Ricardo Domeneck (Ed. Ercolano), e publicou os livros como tratar paisagens feridas (Ed. Garamond) – vencedor do Prêmio Rio de Literatura na categoria Novo Autor Fluminense –, matrimônio (Margem Edições) e santíssimo (Urutau), este último com menção honrosa no 32º Festival Mix Brasil. Em 2024, participou da mesa “Literatura Periférica” pela Casa da Favela na FLIP. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGARTES-UERJ), tendo passado também pela UFRJ e UFBA.

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